Há algures no Portugal profundo, um jornalista que um dia decidiu fazer um jornal que fosse algo mais do que um repositório de datas de aniversários e notícias de baptizados. Ousou dar verdadeiras notícias, ousou investigar e, sobretudo, ousou afrontar os poderes instalados, tantas vezes mais estreitamente ligados entre si do que era suposto e do que aconselha a prudência. Como era previsível, comprou guerras atrás de guerras. Coleccionou uma vasta horda de inimigos poderosos e a admiração dos cidadãos comuns. De um momento para o outro, passou a ter a condição de arguido em permanência e a ser alvo privilegiado da má vontade dos poderes instalados.
Num dos seus muitos julgamentos, em que era ofendido um advogado estabelecido na comarca, o jornalista em causa entendeu que não queria ser julgado pelo juiz que se preparava para dar início ao julgamento, alegando que, uma vez que já o tinha visado no seu jornal, entendia que o magistrado, por muito sério que seja, não deixa de ser humano, e talvez não tivesse as condições de imparcialidade para um julgamento justo.
O seu advogado compreendeu os argumentos e, depois de conversar com o magistrado, deduziu o incidente de recusa. Que o magistrado não acolheu. A Relação também não. O Supremo, idem.
Regressou o processo à primeira instância, para ser julgado pelo mesmo magistrado.
O advogado do arguido, em longo e fundamentado requerimento, invocou uma questão prévia, alegando que, in casu, a acusação tinha sido deduzida pelo assistente, quando deveria ter sido deduzida pelo MP, uma vez que o assistente era advogado e, de acordo com a acusação, tinha sido visado nessa qualidade e por causa do exercício das suas funções. Pretensão indeferida. O julgamento durou cinco sessões. No fim, o magistrado, em longa sentença, considerou, em termos particularmente violentos, que o arguido tinha cometido o crime de difamação através da imprensa de que vinha acusado, mas entendia que a nulidade invocada pelo arguido fazia sentido, pelo que declarava nula a acusação e os actos subsequentes.
Rumou o processo ao MP que, diligentemente, copiou a acusação particular inicial e deu origem a nova maratona de julgamento - mais cinco sessões.
Os factos eram naturalmente os mesmos, os documentos os mesmos, as testemunhas as mesmas. O julgador era outro. O arguido foi absolvido. Desta feita, não por qualquer questão processual, mas porque entendeu o magistrado que o arguido não tinha praticado qualquer crime.
Coisas destas dão que pensar. E muito. E se dão que pensar a quem está por dentro das coisas da justiça, imagine-se o que pensarão as pessoas que vêem a justiça por fora.
1 comentário:
há muitos marcos a abater por esse país fora...
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