31 janeiro 2007

Estes dias que passam 46

37, 3 pela tarde

Eu sou um leitor de jornais assaz complicado. Detesto ler os casos de polícia menos ainda os ecos do jet set. Uma excelente (e bonita!) amiga atribuía esta minha incapacidade a um imenso super-ego que me levaria a só considerar o meu umbigo desdenhando os alheios mesmo incluindo partes pudendas. Aqui para nós, ela considerava-me um snob rematado e trazia à colação a minha ojeriza a grandes ajuntamentos, o meu princípio de comparecer nas festas e jantaradas com o meu carro (“para te poderes pirar quando quisesses sem dar cavaco à maralha...”) e a minha fraca propensão para contar amores e desamores (“que não contes aos teus amigos do peito, percebo perfeitamente, são uns fuxiqueiros e sobretudo os homens adoram gabar-se, dizia-me pesarosa, mas a uma amiga é diferente. Nós mulheres sabemos ouvir e tomamos normalmente o partido dos nossos confidentes”). Eu bem lhe dizia que a minha vida sentimental era quase tão chata quanto a descrição geográfica da Bélgica, mas ela não desamparava a loja. A certa altura desisti de refutar-lhe os argumentos. Pior a emenda que o soneto. Se até ali eu era o que era a partir daquele momento passei a ser uma versão pequeno burguesa do Sacher Masoch, versão lusitana.
Foi pelas razões acima aduzidas que tenho mantido silêncio sobre o estridente caso do sargento pai adoptivo e respectivo oponente. Primeiro, sabendo pouco ou nada do caso, achei que o sargento era um herói. Vejamos:
1. uma infeliz mãe solteira, vendo o fruto do seu pecado repudiado pelo presumível pai, entrega a criança para adopção
2. obrigado pelo MP a reconhecer a criatura, o pai biológico perfilha a criatura e
3. jura vingança. Assim
4. reivindica a criança
5. arrancando-a aos cuidados estremosos do casal que a queria adoptar.
6. o dito casal resolve num imenso acto de amor não entregar a criança.
7 . a mulher esconde-se com a criancinha e o homem arrosta sereno e altivo a prisão.
Contado assim, e foi assim que a imprensa contou o caso, eu, como a Dr.ª Maria Barroso, umas senhoras juristas e uns milhares de cidadãos conspurcámos o nome dos juízes que tinham decidido a favor de um pai biológico ausente e desinteressado.
Todavia, um amigo meu, zangado e vindicativo, veio informar-me que as coisas eram diferentes.
a. o pai biológico antes mesmo de ser convencido da paternidade, anunciou que assumiria integralmente o seu papel de pai no caso de se provar que a criança era filha dele
b. e de facto, no exacto momento, em que viu provada a sua paternidade imediatamente perfilhou a criatura
c. entretanto o casal “adoptante” que se fora “esquecendo” de desencadear o processo de adopção, logo que a vê perfilhada avança com o seu pedido, notoriamente inepto visto que havia pai, perfilhante e garante da educação da criança
d. tudo isto se passa durante o primeiro ano da criança
e. o que significa que se esta tivesse sido como se ordenava no primeiro de vários processos desencadeados pelo pai biológico entregue a este nada de grave ocorreria para o equilíbrio psicológico da bebé.
f. todavia os “adoptantes” recusaram entregar a criança e criaram toda a espécie de dificuldades ao pai biológico que nem sequer pode ver a criatura
g. o caso arrastou-se durante 3 ou 4 penosos anos e terminaram
h. com a condenação do sargento Gomes a um largo par de anos por sequestro.
Ponhamos que esta segunda versão é a mais conforme com a verdade. Estaríamos, assim, perante uma campanha histérica e imbecil, outra mais, contra a Justiça. Pior, estaríamos perante a manipulação descarada da opinião pública, coisa que poderia ser mesmo criminalizada se se verificasse ser comanditada pelo advogado do réu, por personalidades ligadas à protecção de menores e similares. Porque esses sabem bem o que passa.
Sempre esperando que o caso seja assim, a que vem agora um encontro entre as partes promovido pelo Ministério Público para transferência “gradual” da posse da criança? A que vem, se é que é verdade, a promessa de excarcerar o individuo justamente preso por sequestro? Que é que se prepara? Voltaremos a ver juízes contra procuradoria disputando por interpostos pais biológico e “pseudo-adoptante” a carninha frágil de uma criança de cinco anos? Pretender-se-á transformar uma sentença clara numa mascarada que, traduzindo em miúdos, devolva a propriedade da criaturinha aos pseudo-adoptantes fortalecidos por um apoio mediático e histérico que acabará por premiar o sequestro e desfavorecer o pai biológico, que tem contra ele a terra, o facto de ser pobre, de ser mulherengo e não sei que mais?
Sempre dentro da mesma ideia, que os factos relatados no acordão do tribunal são verdadeiros, parece-me meridiano de que foi a teimosia dos pseudo adoptantes que levou a este estúpido e trágico desfecho que não acaba na prisão do sargento mas continua na saga tonta de uma clandestinidade de mãe adoptante e criança que qualquer cabo de esquadra resolveria num par de horas, na reviravolta da mãe biológica que afinal também quer entrar na fotografia e na exposição canalha que se faz do pai biológico que, queira ou não, está definitivamente convertido num ogro se calhar pedófilo.
As leitoras terão verificado que ainda não me pronunciei sobre o aborto. São várias as minhas razões. E uma delas está já nesta história. Uma mulher engravidou. Engravidou sem possibilidades de criar a nova vida que trazia na barriga. Porque era muito religiosa manteve a gravidez. Talvez houvesse alguma alma caridosa que tomasse conta da criança. Depois foi o que se viu. Para a entregar mentiu sobre a paternidade. Os adoptantes foram-se distraindo e só deram o passo decisivo quando apareceu um pai. Ou quando acharam que a criança era perfeitinha e adoptável...
As razões seguintes basta ver o que a campanha vai trazendo ao de cima. Estas famosas questões fracturantes herdadas da falecida juventude socialista distinguiram-se pela estridência e pelo facto comezinho de com o barulho das luzes se evitarem temas bem mais graves e urgentes. Depois ainda não houve uma alminha gentil que me explicasse porque é que um tema deste género não foi debatido no seu local: o parlamento. Transferir a discussão para a população através do expediente do referendo é não só amesquinhar os pais da pátria mas sobretudo permitir que o populismo mais canalha, a argumentação mais miserável apareçam sob a luz forte da verdade sem sequer a protecção de um diáfano manto de inteligência. A única virtude, triste consolação, é mostrar, urbi et orbe, a nossa verdadeira face.
Como de certeza vou apanhar nas orelhas pelo meu tom tristonho convém dizer em minha defesa que ando com um pertinaz resfriado, alguns momentos de febre, a boca a saber a papel de música, dores no corpo, e a restante parafrenália própria da época. A culpa deste longo estádio semi-febril deve-se ao facto de ter interrompido a convalescença do primeiro resfriado para com mais uma centena de amigos celebrar os primeiros cinquenta anos da Regina Valente. Valeu a pena, apesar de tudo. Rever amigos de que não tinha notícias há dez ou quinze anos (e vivemos todos na mesma pequena cidade). Olhem companheiras e companheiros, podíamos todos estar bem pior. Atrevo-me mesmo a dizer que estamos muito melhor do que esperava. Então o mulherio está que ferve!
A latere: depois do último boletim sobre o meu peso, tenho a grata notícia de relatar que com o resfriado e respectiva dieta perdi mais dois quilos. Ou seja: faltam quatro quilos para me converter num modelo.
A latere de novo: O Público apresenta a história do blues. Oito dvd imperdíveis que há mais de um ano a farmácia de serviço noticiava em primeira mão. Demorou a chegar a um preço popular mas a partir de agora não há desculpas.

30 janeiro 2007

Tudo a bombordo 5

Mudar a vida ou mudar o mundo? Mudar a vida e o Mundo!

Mortos vamos e expulsos e incriados
mas é em nós que os planetas e os mais corpos do
espaço
molham as mãos
e esmagam a cabeça

Mário Cesariny Planisfério e outros poemas, 1961

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite

Herberto Hélder A colher na boca, 1961

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento digo-te adeus
e como um adolescente
ropeço de ternura
por ti

Alexandre O’Neil No reino da Dinamarca, 1958


Ainda nem comecei este texto e já gastei uma página! Tentei desesperadamente reduzir as citações mas, como já disse, e agora repito, eu sou cão que conhece dono e pago com pontualidade as minhas dívidas. E se me abrigo à sombra luminosa de três grandes poetas é porque lhes devo muito, muito mais do que sou aqui capaz de exprimir. Tempos houve em que era capaz de recitar de cor centos de versos deles, coisa a que hoje já não me atreveria. Não que lhes tenha perdido o gosto, a música, a respiração mas apenas porque, provavelmente eles já são tão parte de mim que me permitem ir tentando ler outros e apropriar-me de outros. Mas basta que me passe ao alcance um dos livros que citei e mais um quarteirão de outros e eis que regressa intacta a esperança, a alegria e a permanente novidade do poema.
Acabei o meu texto anterior (publicado aqui em Dezembro do ano passado) dizendo que aos meus 19, 20 anos de idade me cruzara com o surrealismo. Deveria ter escrito, apanhei com o surrealismo em cima porque foi isso mesmo o que me sucedeu. Apanhei com ele e foi como se de repente, descobrisse um outro mundo e uma outra sensibilidade, e uma outra maneira de ver, fazer, viver, agir política.
Os meus leitores que me desculpem. Eu, canhoto de pata e de coração, não passava de um perdido rapazote, de origem burguesa, com uns fumos de intelectual. Em casa, trabalhadores manuais não havia. Na família também não. Nos meios que frequentava idem, aspas, aspas. Claro que na meninice os meus colegas de escola eram filhos de pescadores, que eu frequentei, deus seja louvado, a escola oficial. Depois, aqui e ali, encontrei pessoas que de perto ou de longe pertenciam ao mítico mundo do trabalho mas não exerceram sobre mim influência que se visse ou que eu recorde. Os poucos comunistas que entretanto terei conhecido (e nesse tempo, não havia ninguém que se confessasse comunista a um rapazola deslumbrado e papalvo) eram intelectuais. Como eu começava a ser, queria ser e acabaria por ser. Portanto as imagens do mundo do proletariado que me chegavam eram todas via romance ou ensaio.
E é bem sabido que os burgueses passados ao campo da revolução dão na maioria das vezes em pernósticos. São duros, implacáveis e exigentes. A moral bolchevique beberam-na com tal ânsia que ficam permanentemente bêbados de verdade de linha justa, de posições correctas, tudo muito enfeitado de citações, penosamente tiradas de livros que, as mais das vezes, tiveram a sua época e foram brandidos mais como arma de arremesso ocasional do que como tratados de ciência política e social. Isso que agora parece tão claro, era nos tempos obscuros, difícil de perceber. E como não tínhamos o viático da origem proletária obrigavamo-nos a brandir os pequenos catecismos como verdades eternas.
É sobre este espesso pano de fundo que a fogachada surrealista fez efeito. Ponhamos que a leitura dos primeiros livros surrealistas e julgo que os três citados terão sido de facto os primeiros, me “tirou do sério”. Que, a derisão por um lado, e a fundura deslumbrante me permitiram adivinhar que era possível ser de esquerda sem ser infeliz, sem ter remorsos de calçar sapatos, sem sequer me obrigar a jejuar por nunca ter tido fome.
Por outro lado, a primeira, e pouco significativa, prisão sofrida permitiu-me começar a ser capaz de saber que poderia levar a cabo acções revolucionárias sem receio de mais tarde, uma vez preso, delatar companheiros, camaradas e amigos. E que o campo da acção revolucionária era de tal modo amplo que não era obrigatório ser do pc para estar nele. E mais: que se podia estar nele, de igual para igual com os militantes comunistas. Com uma diferença: os “compagnons de route” nunca teriam, nunca tiveram, por trás deles e ao lado deles a fabulosa máquina de auxilio aos presos políticos que o PC proporcionava aos seus militantes. Mas isso, mesmo nessa altura, não parecia ser demasiadamente grave ou importante. E, mesmo que eventualmente esteja a ser injusto, permitia a muito boa gente também não ser arrastada pelas sucessivas vagas de prisões que de 62 a 65 varreram organizações inteiras do pc que caíram por traição interna, falta de coragem na polícia, imprudência manifesta, provocação policial etc... Porque a história exemplar de heroísmo dos comunistas não pode ocultar a acção de responsáveis políticos do partido (e no campo universitário não foram assim tão poucos...) que entregaram à polícia dezenas e dezenas de militantes. Nem pode ocultar que quando se tratava de combater dissidentes, o partido e os seus órgãos de informação não se coibiram de denunciar os seus ex-militantes. Como exemplo bastará citar a denúncia contra João Pulido Valente, Rui de Espiney e Francisco Martins Rodrigues, fundadores do “comité marxista leninista português” e da sua organização de massas, a FAP (Frente de Acção Popular). Retrospectivamente nada justifica a campanha levada a cabo pelo PC, que de resto se virou contra o partido. Convém lembrar que o clima intelectual dos primeiros anos sessenta estava moldado pela revolução cubana que despertara um enorme entusiasmo pelas primeiras independências africanas e, porque não, pelos anos Kennedy. A União Soviética aparecia nesta fotografia sob duas imagens: a do senhor Nikita Krutchov que lançara a guerra ao culto da personalidade, que pusera um satélite no ar, que repetira a proeza enviando o primeiro homem para o espaço e a dos seus imediatos sucessores que voltaram a fechar o país. Por outro lado a China emergia como o pais do grande salto para a frente, dos revolucionários de pés nus, do poeta Mao Tse Tung, enfim do pais que apoiara a Coreia do Norte e o Vietnam onde mais uma vez começava outra guerra. Tudo isto, esta multiplicidade de referentes político-sociais, esta (para nós) generosa e anárquica divisão do bloco progressista em diferentes centros de poder, permitia ser de esquerda sem ser “revisionista”, permitia voltar a ouvir falar dos velhos trotskistas, dos países rebeldes a Moscovo, sobretudo (e só, aliás) a Jugoslávia. A nova ideologia, um pouco fourre-tout dava direito a uma dose de Cuba, outra de guevarismo, uma pitada de anti-racismo com molho universitário estado-unidense, algum terceiro mundismo. E nesses novos “horizontes vermelhos” a cartilha soviética e stalinista perdia terreno para fórmulas mais ousadas e mais liberais. A espessa armadura ideológica dos anos 30 e 40 desfazia-se com as novas ideias. O capitalismo popular em que o Ocidente europeu entrou em cheio em finais de cinquenta tornava mais sinistra a fotografia a preto e branco do leste. Parafraseando um título célebre de Remarque, “a oeste havia algo de novo”.
Éramos jovens, sabíamo-lo, não tínhamos patrões ideológicos e isso era também alimentado pela nova literatura (nova de vinte trinta anos!) pela nova música (e aqui a irrupção do rock e derivados foi fatal) pela nova arte (Picasso é agora admirado por milhões) e pelo cinema. A televisão traz o mundo para dentro de casa e será a melhor arma dos vietnamitas. O turismo de massa arrasa Espanha e Portugal varrendo com leis imemoriais de decência nas praias, trazendo para o convívio dos iberos a liberdade, o sexo e as nórdicas, mesmo que isso fosse as mais das vezes um exagero. A democracia passou a ser um referente de vida. Mesmo a direita portuguesa estava acossada, embiocada no seu canto, aparvalhada com os biquínis nas praias e uso de calças pelas mulheres. A guerra colonial obriga as mulheres a entrar no mercado de trabalho. A emigração torna ainda maior essa necessidade de recorrer à mão de obra feminina. E uma mulher que trabalha é algo que deixa de ser dócil, de fazer fretes de andar às ordens do senhor prior da freguesia. Em meados de sessenta o mundo bisonho e português já não era. Ou melhor era um cadáver a quem ninguém passava o atestado de óbito. E isto que era muito, talvez não se visse com a precisão que aqui resumo mas via-se, e de que maneira, com os óculos surrealistas que alguns de nós tínhamos espetado no nariz. Podíamos mudar a merda do mundo e, de passo, a merda da vida.
Pela parte que me tocava, era um programa de acção e peras.


Nota: nunca pensei que ao responder a um desafio de alguns leitores deste blogue sob a minha viagem pelas ideias e emoções de uma vida desse tanto pano para mangas. Disso me desculpo mas o que isto deve ter de longo, chato e repetitivo, só sairia se eu me levasse muito a sério e me corrigisse, apagasse, reescrevesse e mais não sei quantas coisas. Assim optei por indo pondo estes ovos de avestruz, que devem dar uma omeleta desenxabida deixando-os tal e qual saem do dedinho teclador. Têm a humilde vantagem de serem frescos. O que por si só não é qualidade mas isso, como dizia no final do texto 4, é outro falar.

29 janeiro 2007

imprevisto


nada me disseram sobre a adrenalina
a escalar-me o peito
quando te visse,
a tornar-me a garganta, deserto.

o teu cansaço nunca foi previsto
enquanto sonhávamos os mais altos sonhos;

não foi previsto o teu silêncio
na felicidade a me abraçar todas as manhãs.

calo a minha voz
nesta noite infindável.
só os meus olhos falam de ti,
mergulhados num lago.


silvia chueire

28 janeiro 2007







A Sentença de Salomão

Painel cerâmico assente no topo da Sala de Audiências do
Tribunal Judicial da Comarca da Moita
Júlio Pomar, 1993

27 janeiro 2007

Farmácia de serviço nº 29

Interactiva até dizer chega!
Antes mesmo de avançar com as receitas dediquemo-nos por um breve instante no uso de expressões como a do título. Eu venho de uma família de contadores de histórias, de faladores contumazes e de, milagre!, de gente que se escrevia longas cartas. Então a minha Avó, a “Velha Senhora” era um ver se te avias. Dia com menos de três cartinhas enviadas e outras tantas recebidas não era dia que prestasse. A coisa era de tal modo que, neto mais velho (entre dezasseis!) tive de lhe declarar que o tempo não me sobrava senão para um bilhete e de longe em longe. Nem isso a desanimou: volta que não volta aí estava uma carta da antepassada, uma folha grande preenchida em todos os sentidos porque a excelente senhora se era pródiga na escrita era de uma assustadora sovinice quanto ao papel. Lê-la era um vero percurso de obstáculos. Aparte esse dificultoso zigzaguear literário a avó tinha o hábito de usar expressões que só eram perceptíveis ao estrito círculo familiar, coisa que a minha mãe também herdou. Não só punha alcunhas espantosas e brilhantemente cruéis a quase todos os conhecidos como deformava até à exaustão o português corrente para dar significados delirantes a certas palavras. Sobretudo isso, ela conseguia tornar-se perceptível a qualquer criatura com quem privasse. Portanto está o título desculpado. Até dizer basta, até vir o Guedes, querem dizer exactamente a mesma coisa e não perguntem porquê.
Perguntarão sim, e isso já se aceita, o porquê do interactivo. Ora nada mais simples: três leitores, três, a bem dizer duas leitoras gentis e o camafeu do Manel Sousa Pereira, mandaram-me dicas para uma “farmácia de serviço”. Ora aqui está o que se chama uma boa coisa. Eu a dar às meninges que nem um doido, para me lembrar de qualquer coisinha e elas e ele a mandarem dicas que chegam e sobram para as nossas encomendas. ‘brigados, muit’ obrigadinhos” leitoras Zita e Inês e o referido Pereira. Então aí vai disto:
:Pereiremos para começar:
“Atrevo-me a mandar-te esta sugestão para pores na tua "Farmácia de Serviço"; Trata-se de uma edição da "Livros de Papel" -

"Foster e Val - Os Trabalhos e os dias do criador de Prince Valiant" e não só, claro, também do melhor desenho (BD) do Tarzan do E. R. Burroughs, que ao que parece o nosso Hal Foster desenhava só para ganhar algum e dar de comer à família ao tempo do colapso bolsista dos finais de 20.

O livro com formato de álbum é uma belíssima biografia de Harold Foster da autoria de Manuel Caldas que pretende, além de tudo o mais, assinalar os 70 anos do inicio da publicação desse extraordinário "Prince Valiant in the Days of King Arthur" que para nós, catraios dos finais de 40 princípios de 50, era o "Príncipe Valente na Corte do Rei Artur" que saia aos Domingos no "Primeiro de Janeiro" e só já nos finais de 60, se não estou em erro, apareceu em Álbum.
Esta edição tem ilustrações muito boas e um texto muito bem escrito !!! A não perder por 22,50 euros (na FNAC). Creio, mesmo que o deveríamos comprar para oferecer ao nosso "sobrinho neto" Pedro Simas Santos antes que o Avô o encha de Manaras e coisas do género.
Um abraço Manel S.P. “
Pronto, MSP, pronto, já está. Boa ideia, mano, óptima, mesmo. Então a malta pode lá esquecer-se do Príncipe Valente? E não havemos de contribuir para a educação do “nosso sobrinho neto” Pedro?
Apesar, de pensar, que alguns Manaras também lhe não farão mal. E já agora uma dose de Crepax e ... por aí fora... se é que estás a ver o fio à meada.
A leitora Zita escreve um testamento e só no fim é que me increpa: “E não se esqueça de falar na biografia do O’Neil.” Claro que não Zitinha, então logo eu, que sou do mais O’ Neil que há. Fique sabendo que tenho tudo, ou quase. De facto falta-me uma primeira edição da “ampola miraculosa” mas dou de barata essa falha porque tenha uma edição facsimilada. Com a vantagem de custar cem vezes menos. Eu sou um leitor e não um bibliófilo. E não era o filho da minha mãe que ia estender sessenta ou setenta milhardas das antigas para ter uma primeira edição. Credo! Abrenúncio!
A leitora Inês (eu diria a desassossegada leitora mas, se calhar, ela levava a mal) também enche uma boa folha, discutindo pontos de vista com um belo humor e muita, demasiada, simpatia. Non sum dignus! Inês. Nom sum dignus!. E termina –isto deve ser uma nova moda feminina – com esta pequena violência: “E pode falar dessa sua prima Maria Manuel se é que é a mesma que se anuncia no Mil folhas do Público com um livro escrito a meias com Ana BenaventeDamas, Ases e Valetes”! E continua a sofisticada Inês posta no seu desassossego: “mesmo que a tal Benavente seja a mesma do eduquês!” Ora toma que já almoçaste! Eu não tenho a certeza certíssima da Ana ser uma adepta do “eduquês”. A Ana Benavente que conheci e conheço, era uma porreirinha que se podia convidar para um bom almoço de cozido à portuguesa, se é que me faço entender. Claro que isso (que é forte virtude) pode viver a meias com o tal “eduquês”. Às vezes esta malta estrangeirada (outra virtude!) tem manias deste estilo. Querem salvar a pátria com doses de coisas muito novas cá e demasiado velhas lá. Dito isto, eu estava a guardar a prima Maria Manuel lá mais para o Verão. Digamos para as “correntes de escrita” da Póvoa. Claro que já li uma versão das “Damas, ases e valetes” uma variação memorialista e simpática dos anos de chumbo. E que dizer disso, sem cair na louvaminha familiar ou na hiper-critica? Ora que não sendo o “retrato da ricardina”, também não é o que resumimos, os jogadores de cartas, “só me saem duques!”. Traduzindo para os não aficionados da cartolina e para a minha amiga Sílvia: não é uma obra imortal mas também não envergonha ninguém. Ou seja está dentro do “corriente, moliente” do que se lê bem e se promete voltar a nova incursão literária das autoras se eles persistirem.

retrato da ricardina”: no jogo da lerpa o conjunto das 3 cartas máximas de trunfo: ás, manilha e rei. Ou seja: todos os restantes jogadores perdem e depositam na mesa uma soma igual ao somatório das apostas anteriores.
Só me saem duques”: expressão de profundo desânimo em jogos de azar e que significa que se obtém sistematicamente as cartas menos valiosas.

25 janeiro 2007

Trabalho em equipa


Porque, como dizem no Gato Fedorento, a vida não é só agricultura… aqui vai uma imagem com piada que substitui as já conhecidas mil palavras.

Imagem retirada do blogue "A Baixa do Porto"

Diário Político 40

Est modus in rebus!

Parece que o senhor Primeiro Ministro que nos foi dado ter neste invernoso Janeiro de 2007 entendeu brindar o Parlamento e o País com um vibrante exemplo do seu estilo oratório. S.ª Ex.ª terá uma vez mais mostrado que não tem medo das palavras e muito menos dos que dela (Sexa) se atrevem a discordar. Já uma vez dera mostras do seu robusto talento e refinada educação ao dirigir-se desabridamente ao Chefe da Oposição. Agora para provar que, para si, não há diferença entre filhos e afilhados entendeu qualificar uma proposta do Engenheiro João Cravinho, deputado do PS. “Asneira” assim qualificou S.ª Ex.ª uma proposta do deputado. “Asneira” repetiu uma vez mais não fosse haver algum surdo no distinto areópago ou perder-se esta pérola de delicada oratória na geral desatenção parlamentar.
Se S. Bento fosse um campo de futebol e o Senhor Primeiro Ministro um comentador desportivo de algum jornal de províncias, ainda se perceberia a rude elegância da apóstrofe. O futebol, quando não chafurda no escândalo continuado da compra de árbitros e na especulação de jogadores, tem direito a tiradas deste género, qualificado de “viril” por quem desculpa alguma jogada mais violenta, uma carga num adversário perigoso, um empurrão e meiguices semelhantes.
Todavia o Sr. Primeiro Ministro não estava num recinto desportivo, numa feira semanal, numa discussão à mesa de um “sueca” puxada entre quatro cavalheiros amigos que vão jogando as cartas segundo um rito antiquíssimo que pede berros ao parceiro, desafios aos adversários, uma piscadela de olhos, vá lá uma canelada. Depois, acabado o jogo, vem uma garrafa de bom tinto (Mouchão nunca, a pedido de uma senhora brasileira e médica que nos frequenta o blog e não permite consumo de álcoois de qualidade na sua ausência!) umas fatias de presunto recém cortado, alguma rodela de salpicão e pão que acompanhe. E a zanga da jogatina logo se desfaz porque, como bem ensinava o imortal Terence Reese (a propósito do bridge mas a regra pode alargar-se à sueca), o melhor de uma partida é no fim podermos insultar o parceiro. Faz parte do jogo.
Mas, como ia dizendo, Sexa não estava no futebol, nos touros ou numa sala fumarenta a bater a cartolina. Estava no Parlamento. A responder à Oposição. Como Primeiro Ministro de dez milhões de criaturas. E dizer que uma proposta de um senhor deputado do seu próprio partido, sobre questões que afligem a sociedade portuguesa, que estão na boca de todos, que concitam as criticas unânimes da opinião pública, é uma asneira pode ser deselegante. E mais deselegante se tal proposta já tiver sido retirada pelo proponente. Ou seja: dizer que a proposta “X” é uma asneira, sabendo perfeitamente que tal proposta já não existe, significa apenas uma tentativa de desqualificação do pacote de propostas entretanto mantidas pelo mesmo deputado.
E, já agora, quem é esse cavalheiro, esse engenheiro João Cravinho, alvo deste façanhudo substantivo?
Pois nem mais nem menos do que o mesmíssimo homem que o governo presidido pelo Sr. Primeiro Ministro entendeu ser o homem ideal para ocupar um alto e honroso lugar numa importante instituição europeia. Mas há mais: este deputado, autor da defenestrada asneira, foi Ministro em vários governos nos últimos anos, é apontado unanimemente como um distinto especialista, um homem de uma seriedade a toda a prova, um político que nunca precisou da política para criar um currículo invejável desde muito antes do 25 de Abril. E mais ainda: um homem de coragem que, com mais uma ínfima minoria da população portuguesa, se bateu pela democracia e pela liberdade quando isso significava arrostar perigos que o Sr. Primeiro Ministro nunca afrontou e de que não deve fazer a mínima ideia.
Os actos ficam com quem os pratica. E com quem silenciosamente os vê perpetrar e não se sente capaz de sequer se indignar, de dizer “alto e pára o baile”. É por isso que este blogger eleva aqui a sua fraca voz, perante um pequeno auditório, sem grandes esperanças que a sua atitude comova demasiada gente.
Convém para finalizar, fazer aqui o chamado registo de interesses: conheço o João Cravinho há mais de trinta anos. Sou amigo dele e honro-me da sua amizade. Não conheço nem me interessa conhecer o Sr. José Sócrates. A meu ver não honra o nome helénico que tem mas isso é outra conversa.

Estava este texto pronto quando li a notícia da morte do Professor Doutor Oliveira Marques. Nunca o conheci excepto por leituras. Tenho, todavia, uma dívida pendente com ele. Entre outros livros, a “História de Portugal” esse manual em dois volumes gordos saída ainda antes do 25 A. Curiosamente, tinha a ideia que estes dois volumes substituíam um outro gordíssimo também com o mesmo título e publicado meses antes mas já não me lembro. A “História...” de Oliveira Marques foi um acto de coragem e de cidadania, num tempo fosco em que, como acima disse, “apareciam raros navegantes no mar vasto*”. A comoção entre os meus amigos com o aparecimento deste livro foi enorme. Finalmente, uma luz ao fundo túnel. Finalmente uma História com H grande. E que vinha até ao consulado de Marcello Caetano! Um manual que nos permitia tentar perceber qualquer coisa no meio da louvaminha historiográfica geral. Obrigado Professor Doutor Oliveira Marques. Foi bom tê-lo lido nesses anos de chumbo e cinza.

* “aparent rari Nantes in gurgite vastoVirgílio, Eneida, I, 118.

23 janeiro 2007

Um país a duas velocidades

Na passada sexta-feira tive oportunidade de visitar profissionalmente o Biocant Park, em Cantanhede, e fiquei agradavelmente surpreendido com a qualidade da investigação que ali é produzida, suportada em equipamentos de ponta a nível mundial e em jovens quadros universitários. Um projecto que aposta na ligação às universidades de Aveiro e de Coimbra e na atracção de empresas que desenvolvem projectos de investigação na área das neurociências. Ali está, por exemplo, a Crioestaminal, empresa que faz a preservação de células estaminais a partir do cordão umbilical e que tem “clientes” de vários pontos da Europa. O Biocant Park está já a estudar a ampliação do seu espaço e Cantanhede pode ter encontrado na biotecnologia a “chave” do seu futuro.

Dois dias depois, o JN publicou esta reportagem sobre a emigração de jovens marcoenses para as obras de constrição em Espanha. Jovens sem qualificação ou sem emprego à medida das suas habilitações e das suas expectativas e que se vêem obrigados a emigrar, a partir à aventura, em condições pouco seguras. Para alguém como eu, que se preocupa e envolve nos problemas da sua terra, Marco de Canaveses, esta é uma realidade há muito conhecida e que medrou num ambiente de elevado abandono e insucesso escolar, com falta de emprego qualificado e de indústrias e serviços atractivos, com falta de oportunidades para quem chega à vida activa. Até quando? Como dar a volta a esta realidade? O que pensam disto os responsáveis pela governação do território?

Dois exemplos tão distantes que nem parecem estar separados apenas por umas dezenas de quilómetros, no mesmo país, no mesmo século XXI.

22 janeiro 2007

Estes dias que passam 45

Tal como no mediterrâneo “as coisas vão cair do alto com ferocidade e darão depois a luz e alimento” (as azeitonas). Por este atalho de vinha em Fiesole ia a andar Leonardo ou acaso aqui (Milão Romagna) ou nas ardenas viu os mortos transportar os vivos”
Fiama Hasse Pais Brandão: “in memoriam” O texto de João Zorro


Está escrito desde há muito que por muito incerto que o mundo seja, uma certeza subsiste: todos morreremos. Mais cedo ou mais tarde, mas a Parca não se esquece nem se engana.
E à medida que vamos avançando em idade mais e mais a presença da morte se torna frequente. É natural. Os que connosco cresceram desaparecem mais naturalmente do que os mais novos. E desaparecem em maior número. O nosso mundo vai-se povoando de sombras e memórias, de ausências e óbitos.
Apesar de sabermos isto perfeitamente, raras vezes, ou nunca, nos habituamos. Pior cada vez mais a morte nos aparece como uma blasfémia, algo de não natural, contrabandeada em salas horrendas e impessoais onde, envergonhadas, as famílias depositam os seus mortos.
Mas basta de pregar no deserto e recordemos uma vez mais a Fiama e o Denny e velho abbé.
A Fiama apareceu-me em livro nos idos de 60 0u 61: um livrinho tosco, “O aquário” edição de autor, com data de 1959. Uma prosa poética que, na altura, não me terá cativado demasiadamente. Mas que, mesmo assim, me fez comprar fielmente os 14 livros que terá publicado, incluindo neste número a Obra Breve e dois folhetos da Inova. Se me falta algum foi por que se me escapou. Porque a Fiama, que nunca conheci pessoalmente (e ao que sei tantas vezes nos cruzámos nesses primeiros anos sessenta) era uma força discreta se é que isto se pode dizer: quem a lia ficava preso, “enganchado” mas ao reler agora alguns versos dou-me conta, mais uma vez, da “discrição” da “não publicidade” do calado ofício desta enorme mulher.
A bem dizer, ela já morrera: notícias de amigos comuns davam-na como extremamente doente, incomunicável, um Parkinson tremendo e maleitas anexas. Há anos que não escrevia, que não podia escrever. E isso, num poeta, é pior do que a morte.
Quem me lê, dirá agora, mas porque é que nunca a referiste entre tantos livros, na “farmácia de serviço”? Por isso mesmo, porque até eu, seu leitor recorrente me esquecia ou não sabia da gravidade da doença. E depois, tinha a vaga ideia de que a “Obra Breve” ( 1991, Teorema ed. somatório excelente) ainda andava por aí à venda. Se anda, não hesitem, leitores e amigos: é um grande livro que reúne quase toda a produção poética de Fiama Hasse Pais Brandão. Quase seiscentas páginas da melhor literatura da segunda metade do século passado, do seu século!

Denny Doherty, “Mamas and Papas”, ah quanta alegria me deram as suas canções. A nossa geração deve muito a este quarteto. É bom sermos devedores de tanta gente e sentirmos isso. É provável que isso nos incline a alguma modéstia e igual dose de generosidade. Como a Fiama, ele era outro sessentão. Como ela, podia olhar para trás sem medo do julgamento. Como ela, encheu a nossa vida de música e de alegria. Depois de “Mama” Cass chegou a vez de Denny... Ponham um dos seus discos e ouçam-no com atenção e digam-me se, durante um breve momento, não foram tocados pela “Graça”.
God bless you Denny!

Um santo que foi um herói. O abbé Pierre morreu hoje. O corpo já não aguentava mais. E aguentou muito, há que dizê-lo. Esse homem franzino, doente pulmonar desde novo, a pontos de ter de sair do convento porque o regime de clausura era demasiado severo. Foi aliás graças a essa fragilidade que escapou milagrosamente á prisão quando os alemães o foram buscar à paroquia onde era padre. Duas vezes preso duas vezes evadido, o compromisso resistente deste homem que salvou inúmeros judeus passando-os pela fronteira suíça, continuou na defesa dos sem abrigo e na constituição da associação Emaüs. E não deixa de ser simbólico que a morte só o tenha levado depois de em França se anunciar uma legislação sobre o direito ao alojamento.
Como os meus leitores sabem, sou um absoluto, total agnóstico*. Com uns laivos de anarquista, já agora. E uma desconfiança visceral das igrejas todas. Mas nem isso me impede de pensar que este homem está agora à mão direita do Deus em que acreditou, um deus de pobres de perseguidos, de damnés de la terre, esses mesmos a que a canção se refere.
Também já aqui disse que gosto de pensar que os mortos todos os nossos mortos, são um elo entre nós e os que os precederam, manias adquiridas em África e no estudo dos mitos africanos. Espero que estes três que agora nos deixam dêem de nós uma boa imagem aos que esperam notícias deste pobre planeta.
Soll es sein! Muss es sein!

* para mim um agnóstico é alguém que não crê na existência de um Deus mas que nem se dá ao trabalho de fazer apostolado desta sua não crença como ocorre com certos ateus.

20 janeiro 2007

aditamento à Farmácia de Serviço nº 28






Com a cumplicidade da enteada Ana e muita teimosia de ambos foi vencida a incapacidade do boticário. Eis aqui a vera imagem do novo livro da dupla José António Barreiros e Carlos Barradas: uma excelente aposta!

A pedido do leitor Ferreira


MSP, MSS e MCR expõem-se à curiosidade das gentis leitoras, em todo o esplendor da sua beleza...


Na ocasião celebravamos, com dois outros "comparsas ou pouco estáticos", a inauguração do bloco escultórico «Os Artistas» na cidade de Vila do Conde, da autoria do Escultor Manuel Sousa Pereira.

Farmácia de serviço nº 28

Não há concertos de violino para ninguém

Antes mesmo de explicar o título convém que se escreva que esta é a 35ª edição de “farmácia de serviço” tendo em linha de conta que há três fds que não tinham número. Espero assim aquietar o trémulo coração do exigente leitor Manuel Sousa Pereira que, além de imprimir todas as minhas balivérnias tem o feio hábito de me apontar erros de numeração.
Dito isto passemos aos factos:
Em tempos que (felizmente) já lá vão, um cadáver político que fez carreira na vida pública portuguesa, desempenhando cargos que não pareceriam adequados ao seu extravagante perfil, resolveu anunciar urbi et orbe o seu exagerado amor por uns concertos de violino de Chopin. A opinião pública ficou esclarecida quanto ao seu background cultural e à sua capacidade para exercer um cargo importante na área cultural. Não terá sido a única vez em que a personagem elucubrou um sainete deste estilo mas foi seguramente o que mais êxito despertou. A boa disposição do publicou subiu umas décimas se atentarmos nas gargalhadas mas houve alguns cavalheiros, mais ensimesmados, que se persignaram várias vezes temendo pelo futuro da já dificultosa vida cultural portuguesa.
Agora para tirar teimas a Brilliant Classics e a www.abeillemusique.com oferecem aos leitores incursionistas, aos lusitanos em geral e ao mundo uma integral de Chopin em 30 discos com a seguinte divisão: os primeiros 17 discos trazem a obra toda do genial polaco. Os 13 restantes constam de gravações históricas de altíssimo gabarito (lambam-se ò pecadores:Moiseiwitch, Horowitz, Rosenthal, Braillowsky, Dinu Lipatti, simon Barere, Rachmaninov, Rubinstein, Pachmann e mais uns quantos tão bons como estes). Ou seja: um milagre! O segundo milagre é o preço: 30 euros! Isto parece uma feira mas não o é. Isto é a acção da rapaziada dos Brilliant Classics e da abelhinha já citada. Aqui para nós muito à puridade a tal integral de Chopin só tem um defeito: esqueceram-se dos concertos de violino! Aliás quem se esqueceu foi o falecido Frederico (Chopin, Fred para os amigos e Freddo para o violista cadaveroso). Vejam bem a que cumes de conspiração chegaram os inimigos políticos do nosso político in partibus! Toda a gente a fazer-lhe fosquinhas, a desmentir-lhe a portentosa cultura e a capacidade política.
Fora este pequeno defeito, corram a comprar a caixinha! Rápido antes que se esgote.

A segunda parte deste receituário vai toda para o 13º passageiro da dupla José António Barreiros/Carlos Barradas (ou vice versa). Ora toma lá banda desenhada de excelente traça e texto a afinar pelo mesmo diapasão. Uma edição O Mundo em Gavetas, simpática e novel editora, muito cá da casa mas nem por isso menos interessante. Esta malta, a do m.e.g., não brinca em serviço e veio para ficar (como dizia um anúncio qualquer) e no caminho partir alguma loiça. Ao leme da singular embarcação uma companheira, uma amiga, e uma visionária: Kamikaze herself! Fica desde já, e por este único meio, avisada que quero o livrinho para ontem, que o pago na íntegra – e só : aguente os encargos do correio, que a publicidade não pode ser de borla! – e que se eu não conseguir pôr um boneco do livro como julgo ser (in)capaz que o ponha a MEU PEDIDO, sefaxfavor!
Do autor Barradas só a opinião do MSP, especialista de bd: porreiríssimo! (sic)
Do autor JAB: raios partam o gajo que tem jeito para tudo (observação venenosa de mcr roído de inveja).
Os pedidos do livrinho deverão ser feitos para omundoemgavetas@gmail.com que também pode ser visitado em www.omundoemgavetas.com

Por uma vez

Quem me vai lendo sabe que não comungo das ideias de Paulo Portas e nem sequer simpatizo com a personagem algo pavoneada. Mas desta vez julgo que Portas tem razão e eu próprio já me tinha questionado sobre o tema antes de o ouvir.
Se a lei (concorde-se ou não com ela) não permite que os magistrados tenham intervenção de natureza político-partidária, impedindo-os de se manifestarem e de concorrerem a actos eleitorais, será que no caso de um referendo já é permitido que os mesmos magistrados intervenham em iniciativas partidárias apologistas de uma das opções em jogo? Não concordo de todo com essa eventual excepcionalidade.
O que é mais incómodo para a posição de um magistrado: integrar uma lista para uma autarquia e participar activamente na campanha de um candidato, por exemplo, ou manifestar-se abertamente a favor ou contra a despenalização da interrupção voluntária da gravidez? Julgo que ambas são igualmente inconvenientes para a sua condição de magistrado, independentemente de os mesmos terem naturalmente direito às suas convicções pessoais.
A isto haverá que acrescentar, no caso vindo a público, que o mediatismo e a aura de justiceira que se colou à imagem de Maria José Morgado (não terá sido por isso que lhe foi entregue o processo do “apito dourado”?) não podem servir para lhe proporcionar um estatuto diferenciado dentro da classe.
Por outro lado, e apesar de tencionar votar Sim no referendo do próximo dia 11 de Fevereiro, recuso-me a trazer à colação a teoria de Maria José Morgado de olhar para a despenalização da interrupção voluntária da gravidez como um contributo para aumento da receita fiscal, porventura soprada ao ouvido pelo infalível e omnipresente Saldanha Sanches.

18 janeiro 2007

em pedra

tentas transformar em pedra
o que é sentimento
com a tenacidade de um alquimista
em busca da secreta fórmula,
além – ou aquém, não sei – dos átomos.

talvez consigas,
talvez o mundo te seja prodigioso
e te mostre a face mágica.

pessoalmente acho vão esforço.
pessoalmente, eu, que não creio em magias,
quedo a cabeça sobre as almofadas,
a pensar, enquanto um blues galga as paredes:

essa tenacidade no amor seria preciosa.



silvia chueire

Au Bonheur des Dames 47


*
Três amigos conversam diante de chávenas vazias num dia feio, triste e húmido. Estão numa esplanada envidraçada praticamente deserta, frente a um jardim onde vagueia um perdigueiro atrevido. Discutem a vida, o mundo, eles próprios e as suas circunstâncias.
Basta olhá-los para saber que são barcos que viram muito mar, muitos portos, algumas tempestades e, porque não?, uma que outra brisa marinha, fresca e repousante, brisa com cheiros de terra próxima, um vago perfume de laranjais carregados, de acácias vermelhas, de terra quente depois da chuva.
Três amigos como três marinheiros, três pescadores reformados, olhos que viram os nevoeiros da Terra Nova, os sinos de bordo, as roncas do porto discutem o mundo, a vida, eles próprios.
E há alguma vivacidade, demasiada porventura, nos argumentos que trocam, nas interrupções, nos gestos vivos malgrado as cabeças já brancas como as barbas que, estranhamente, ou nem isso, todos usam.
Noutro tempo, noutro lugar, os ecos da conversa alimentariam a ideia de uma discussão apaixonada, quase colérica. Mas basta ver o cuidado com que se dirigem a um deles, o que espeta a orelha, com a mão em arco como se ouvisse mal, para perceber que daquela conversa está arredado o azedume, o escárnio, o sarcasmo. Há nas pausas que fazem, nos pequenos e raros silêncios que ponteiam uma afirmação mais vigorosa, uma subtil teia de carinho a fazer a sua caminhada.
A amizade é um percurso de obstáculos, semeado de saídas falsas, de becos, alguns alçapões. Exige a quem a pratica um constante cuidado, paciência redobrada e fôlego, muito fôlego. Os amigos, diz-se, são o sal da terra e como o sal necessitam de muita água salgada, algum vento, muito tempo, outro tanto de sol. E da constante labuta do marnoto, lavrador de minerais, alquimista humilde e necessário para que a onda nos chegue à mesa, e com uma pinga de azeite um pão, um tomate e duas sardinhas, nos faça descobrir o milagre quotidiano de uma conversa, com amigos, justamente, mesmo que seja numa esplanada deserta, num dia cinzento e triste, diante de um jardim no inverno, com um perdigueiro ao longe que corre sem saber que três velhos companheiros discutem o mundo, a vida eles próprios.
Depois levantam-se, um deles deixa umas moedas sobre a mesa, vestem os capotes, dirigem-se para a porta, abrem-na sem pressas e seguem lentamente passeio fora até à curva do caminho...

* Fotografia de grupo: m.s.p. e m.s.s. numa esplanada no Foco com m.c.r.

o título deste texto só foi encontrado depois dele estar escrito: fica no fim que é para aprender!

16 janeiro 2007

Diário Político 39

3 notícias e 1 epitáfio

A pergunta é: haverá algo mais detestável do que um tirano?
A resposta é: outro tirano abrigado à sombra de um estrangeiro fingindo ser um tribunal imparcial, regendo-se por regras de direito comummente aceites pela comunidade internacional.
Traduzindo em miúdos: um patifório de baixa extracção, chamado Saddam Hussein, governou o seu pais com mão de ferro, esmagou impiedosamente os oponentes, travou comanditado várias guerras encomendadas por amigos que rapidamente, uma vez a basse besogne realizada, se tornaram inimigos.
A fantochada do julgamento de Saddam, com assassínios de advogados de defesa, com a expulsão dos advogados estrangeiros (por todos o ex-procurador geral dos Estados Unidos, Clarke), com a substituição de juízes ligeiramente independentes por outros cada vez mais dependentes, é uma trágica anedota que, cedo ou tarde, terá consequências pouco agradáveis. Para os ocidentais sem dúvida, para os americanos de certeza e para os iraquianos todos.
Não contentes com o miserável espectáculo dado com a execução de Saddam, eis que hoje, ou ontem, é indiferente, rolaram mais duas cabeças. De tudo isto pode já retirar-se uma consequência: os principais crimes do regime do BAAS ficaram por julgar, se é que “aquilo” podia ser chamado julgamento. Mas há pior: ficaram por conhecer os cúmplices – e não seriam poucos... – dos crimes. Quem beneficiou? Ou doutra maneira: será que estas mortes expeditas não servirão outros eventuais e futuros acusados?
E no meio disto tudo: sabendo-se que nada do que é feito pelo “regime iraquiano” escapa ao rigoroso controle americano, como é que isto é possível? Que significa esta pressa toda?

2 Outra pergunta: seria monsenhor Wielgus, colaborador emérito da polícia política polaca do anterior regime, caso único?
Resposta em tom de pergunta: e tu, perguntador, és ingénuo, parvo ou as duas coisas ao mesmo tempo?
Resposta mais séria: neste momento já são noventa os piedosos sacerdotes polacos acusados de dar uma mãozinha à pide deles. Noventa? Por favor, camaradas religiosos, mais um esforço e chegarão à centena...

3 O O curioso Partido Popular de Espanha não suporta a ETA. Até aí estamos de acordo. Com gangsters não há namoros. Todavia se for possível convencer os gangsters a desistir do seu percurso de crápulas, a submeter-se à legalidade e à justiça, poder-se-á, pelo menos discutir com essa gentuça.
Todos os anteriores governos de Espanha, repito todos, passaram por essa fase, tentaram honradamente fazer a paz, discutiram com os encapuzados e viram as suas esperanças e os seus esforços frustrados. Porque a ETA tem duas caras: uma política e outra militar; porque a ETA sabe que na legalidade não terá um voto mais dos que o seu partido gémeo (Herri Batasuna) já conseguiu; porque a ETA sabe, sabe-o toda a gente, que só o terror tem refreado as cozes contrárias e feito fugir os seus opositores; por outras palavras: se a paz se fizer é provável que HB passe a ser um grupo marginal meramente simbólico sem representatividade nem apoio de massas.
Tudo isto, justificaria a meus olhos que um governo, de direita ou de esquerda, tentasse uma vez mais – e apesar de tudo – trazer a ETA ao redil. Foi o que fez Aznar mesmo sem trégua. Foi o que fez Zapatero depois de um trégua de longa duração.
Mas a ETA não é, e provavelmente nunca será, um grupo político normal. E porque o não é, voltou a matar, agora, que estava a um passo de se tornar normal.
Vai daí, o vozear estridente do PP aumentou de tom. E aumentou porque, durante uns meses, receou um acordo de paz que reduziria as suas possibilidades de regressar ao poder a breve prazo.
Perante o ataque miserável da ETA, e as duas mortes que ocasionou, mais duas a acrescentar ás mais de oitocentas que já cometeu, o governo Zapatero sai fragilizado porque tentou a paz. Sai fragilizado porque, e em política isso é imperdoável, foi suficientemente ingénuo para acreditar que esta vez, seria a boa vez. Mas o seu crime é só esse: ingenuidade.
E é por isso que o PP agora não quer nada senão o impossível: o regresso ao pacto anti-terrorista celebrado há anos e caído em desuso. Tal pacto, entre PP e PSOE exclui os actuais aliados parlamentares do PSOE. Voltar a ele é condenar o PSOE à minoria, e mesmo contando com a referida ingenuidade deste, parece que neste ponto o PP estica demasiado a corda.
E tanto a estica que entendeu não apoiar a manifestação que por toda a Espanha fez sair as multidões à rua contra a ETA. O PP começou por dizer que só compareceria se lhe garantissem que o dialogo com a ETA acabara. Depois perante a inanidade desta postura, exigiu que nas manifestações se usasse a palavra liberdade. Quando esta palavra foi incorporada voltou atrás dizendo que o PSOE não garantia que para o futuro não houvesse de novo conversações.
Ora bem: nenhum partido em Espanha, PP incluído, pode garantir que alguma vez, mais outra, se sentará a uma mesa com a ETA. Depois, o PP não quis ouvir a ETA que bem alto proclamava através da sua boca legal (Herri Batasuna) que o atentado só ocorrera porque o PSOE não abdicara de nada. Ou seja o atentado sucedeu porque o PSOE tivera exactamente a atitude que o PP jura que ele não teve!
Alguém compreende? Não? Então não percebem nada de política. Como eu!

4 Não tem nada a ver mas esta semana morreu um dos grandes: Chamava-se Jean Pierre Vernant e era uma sumidade em história da Grécia clássica. Aqui à minha frente estão duas obras fundamentais dele (“El individuo, la muerte y el amor en la Grécia Clásica” e “Mythe et pensée en Gréce ancienne”, esta em conjunto com Pierre Vidal Naquet). Vernant era além de um intelectual brilhante e modesto, um homem com uma vida exemplar, herói da resistência e pessoa pouco dada a obediências cegas. Foi um dos militantes mais inconformistas que o PCF teve e depois de abandonar o partido continuou a fazer estragos por onde passou. Curiosamente este homem politicamente irascível era um professor dedicado e quatro dos actuais historiadores (que no Le Monde de sexta feira testemunharam) deixam claro que não só o admiravam mas também que lhe deviam forte encorajamento para as carreiras.
Não sei porquê mas acho que os três casos acima descritos não surpreenderiam o velho professor.

13 janeiro 2007

Portugal no seu melhor

Todos os dias somos surpreendidos com as mais diversas manifestações do bom "portuga". Há dias, chegou a cá a casa uma embalagem de detergente comprada num hipermercado que trazia lá dentro cinco-alarmes-cinco. Qual não foi o nosso espanto com o chocalhar da embalagem, assim que começou a ficar mais vazia.
Avisado o hipermercado, ficámos a saber que os alarmes deveriam ser de bebidas (em consequência das festas recentes) e que era uma razia mais ou menos habitual, sobretudo aos domingos de manhã. Dá para imaginar os bandos que se distribuem a comer e a beber à borla e a meter nos casacos as garrafosas, obviamente depois de retirar os empecilhos dos alarmes. Com um bocado de sorte, pais e filhos alinhados na mesma estratégia!
Será que não conseguimos descolar deste xico-espertismo mavioso?

Au Bonheur des Dames 46

Memória luminosa de alguns dias de Maio

Em Maio de 1962 Portugal tremeu mas mão mudou. Ou melhor: mudou mas poucos deram por isso. Por outras palavras, os vencidos das jornadas de Maio de 62 ganharam o combate do futuro, deram uma imagem completamente diferente de Portugal a todos quantos vieram ver o que se passava no país do silêncio e do medo. E vieram muitos porque a história acelerara subitamente nesse deserto extremo da Europa. A guerra de Angola, a perda dos restos do império na Índia, a agitação estudantil, o interminável ciclo de greves e manifestações mais ou menos dirigido pelo partido comunista, a estrondosa demissão do reitor da universidade de Lisboa, um antigo delfim de Salazar chamado Marcello Caetano levavam a pensar que depois do golpe de Botelho Moniz, da tomada do Santa Maria, do avião panfletário de Palma Carlos e da intentona de Beja (todos ocorridos em 1961 e contemporâneos da perda de Goa e do início da guerra colonial) o regime português estava por um fio. E mesmo que se desconhecesse um plano nesse ano gizado por Franco Nogueira (abandono negociado de Timor, Macau, Guiné, São Tomé e Cabinda) o que não é de todo em todo verosímil (pelo menos para as centrais de espionagem das grandes potências) o facto é que Portugal começava a valer uma missa para os grandes órgãos de imprensa internacionais. Uma forte emigração clandestina e um igualmente forte incremento do turismo compõem o resto da fotografia de fundo de um pequeníssimo acontecimento que vou narrar. Não é importante senão para os que o viveram com uma única excepção: o António Mendes de Abreu na altura com dezasseis anos sempre sonhou fazer parte deste grupo de que só escapou por ser demasiado novo aos olhos da pide, coisa que ele nunca lhes perdoou.
Já por aqui se contou que na sequência do Dia do Estudante de 1962 e sua brutal interrupção e consequente repressão as universidades de Lisboa e Coimbra entraram em greve. Mais forte e, sobretudo, mais longa em Lisboa há que dizê-lo. Talvez por isso, pela má consciência que nos assaltava ao vermos que a nossa Associação e a nossa Universidade deixarem os colegas de Lisboa sozinhos, entendemos forçar o destino e provocar uma reviravolta na atitude coimbrã. Para o efeito ocupámos a sede da Associação Académica que estava encerrada pelas autoridades. A polícia desalojou-nos e dos duzentos ou trezentos ocupantes enviou quarenta e quatro para Caxias. Os quarenta rapazes foram divididos em dois grupos à chegada e o mais pequeno deles (doze estudantes se a memória me não falha) foi enfiado numa cela miserável, subterrânea onde até uma parede escorria água. Como uma da camas estava colocada junto dessa parede o colchão estava podre e embebido. O colectivo da cela entendeu pôr os três mais novos e mais franzinos em duas camas que se juntaram. Ainda me recordo de ver o António Bernardes, “mor” da “Rãs-te-parta” e o Zé Orlando Bretão olharem para os nossos três benjamins a dormir como quem olha para um filho. A vida nesse local infame escorria lenta e desagradável tanto mais que nunca se saía daquele pequeno espaço. A comida era a que se pode esperar de uma prisão e raras vezes nos chegavam coisas de fora que repartíamos irmãmente. Até que um dia, proveniente da sala maior onde estariam os nossos companheiros chegou um frango e algumas vitualhas mais. Dramático, como convinha a um açoriano da ilha Terceira, o Bretão guinchou que ali devia vir uma mensagem. Para espanto meu, céptico como qualquer pessoa que vem de Buarcos, a mensagem existia e, apesar de inócua, causou grande excitação e forte dose de “efe-erre-ás”. E cortou por um breve instante a tristura clausural que nos roía devagar.
Tudo isso porém desapareceu quando fomos avisados que os nossos solícitos carcereiros nos iam mudar de instalações. E foi assim que nos juntámos ao grosso do pelotão numa cela enorme, dividida ao meio por umas instalações sanitárias. As janelas davam para um corredor para onde abriam outras duas celas. O corredor, por sua vez, abria várias janelas para um pátio. Estávamos numa casamata, das cobertas por terra, fora da área principal onde se ergue o reduto propriamente dito. Nesse pátio, a que –se bem me lembro - nunca tivemos acesso, passeavam-se à hora do recreio muitos dos presos do golpe de Beja. Foi em tom de fado menor numa versalhada pungente e de pé quebrado que nos contaram as desventuras enquanto do lado de cá se respondia com idêntica falta de métrica que nos apresentámos. Os nossos vizinhos da esquerda, mais tarde viemos a saber que eram ferroviários não se manifestaram mas do lado direito, horas mais tarde elevou-se uma voz lindíssima a cantar modas alentejanas.
Eu sei que, nesta altura da historieta, alguém vai reclamar: cadeia, estudantes alentejanos a cantar modas só num romance neo-realista de saldo. E está cheia de razão a criatura vociferante. Bom, cheia o que se diz completamente cheia, não. É que mesmo nestas historietas com que vou desfiando pequenos pedaços da minha insensata biografia, há cenas destas, mau gosto a rodos mas duma verdade como punhos. Portanto, Caxias, casamatas asquerosas, estudantada refilona e alentejanos a cantar. Na altura, ninguém acusou a policia por via deste cocktail de mau gosto e muito menos nós que naquela idade estávamos por tudo mesmo por um neo-realismo piegas e de segunda.
O cantor, viemo-lo a saber chamava-se, se a memória não me engana, Belchior e era sapateiro. Ele e os camaradas vinham, também se não me engano, da zona de Évora. E era ele, apesar de sapateiro quem, digamos, dirigia a cela onde inclusivamente haveria algum regente agrícola. E cantavam. Ai como cantavam... Eu, não sei se já aqui o disse, tenho costela alentejana: o meu avô materno e todos os seus familiares eram de Niza e arredores. A minha mãe dá-se mesmo ao luxo de considerar Niza como a sua terra, mesmo tendo nascido a milhares de quilómetros dali. E em nossa casa, em Buarcos, os primos do Alentejo eram visitas frequentes: apareciam carregados de coisas que não estávamos habituados a comer, ou então cozinhadas de uma outra maneira que, ainda hoje, me fazem suspirar. Também é verdade que tenho boa boca, muito apetite (sobretudo agora que ando a seguir uma ligeira dieta que já me tirou dez quilos...) e uma queda pelo cação de coentrada, pelas migas e mais um par de especialidades do Alentejo.
Todavia, naquele longínquo Maio de 62, não era nisto que eu pensava, sequer na parentela alentejana, mas apenas no acaso feliz que nos juntara, apesar das grades a um grupo de alentejanos combativos. Os nossos melhores cantores (e aí mais uma vez se distinguia o Zé Bretão e o Germano Rego de Sousa –esse mesmo que chegou a bastonário da ordem dos médicos ) gargarejavam para o lado de lá canções populares dos Açores e baladas coimbrãs enquanto os alentejanos respondiam com os seus coros e sobretudo com o seu primeira voz, Belchior o sapateiro.
A certa altura, comprados que estavam os guardas – graças ao talento do Carlos Mac-Mahon que negociou com o director da cadeia um largo par de regalias para nós (!!!) e esportulava os cerberos com generosidade – conseguimos mandar para a cela dos alentejanos farta dose de vitualhas que familiares e amigos constantemente nos traziam (direi que nunca comi tão bem no meu tempo de estudante como neste meu primeiro período de Caxias). Nem sei mesmo se não terá sido leitão da Bairrada em quantidade que se visse para um grupo de alentejanos. Em troca, mandaram-nos cerejas. Era o que tinham, desculparam-se. Famílias longe e sem meios. Essas cerejas repartimo-las com cerimónia, gravidade e um fundo nó na garganta. Sabíamos o que representavam e o que valiam, vindo de quem vinha. E sobretudo essa troca de presentes dava-nos um pouco a impressão de que entravamos num outro clube, mais reservado que o Grémio Literário, mais exigente e sobretudo muito mais solidário. Eu não sei, ou sei mal, como é que cheguei a Caxias, que pensava daquela experiência que ia viver. Todavia sei como saí. E se o meu amigo, e leitor ocasional, Rui Namorado ler esta descosida crónica, ele que também partilhou estas forçadas férias prisionais, gostaria de lhe dizer e com ele a todos quantos ainda estão vivos, que aqueles dias me marcaram indelevelmente, me deram amigos para a vida inteira, mesmo que muitos de nós se tenham perdido de vista e que os lembro sempre que vejo uma modesta cereja. Não sei se isto é ser fiel a uma ideia, a da liberdade, ou apenas teimoso. Sei que trago esta marca e que isso me tem ajudado a (sobre)viver.

Em memória de Alfredo Soveral Martins, João Quintela, Abílio Vieira, Luís Bagulho, Alfredo Fernandes Martins e Jorge Bretão

11 janeiro 2007

o leitor (im)penitente 10

Ele há dias assim: está um cavalheiro muito tranquilo, a apanhar o vago sol de inverno, absorto diante duma “bica” (os leitores do Porto & seu termo farão o favor de ler “cimbalino”) a tentar arranjar argumentos para não ler mais um editorial do Senhor Fernandes do “Público”, medida salutar e profilática que se recomenda vivamente aos que são dados aos humores biliosos e/ou coléricos, e zás, cai-lhe em cima um fantasma do passado. E os fantasmas, leitora Maria José Albarran, nunca vêm (abra-se um parêntesis dos dificultosos: eu pus vêm, mas de repente, uma das enfraquecidas meninges que me resta perguntou, soturna: tens a certeza que o plural do presente do indicativo 3ª pessoa é assim mesmo três letrinhas e chapelinho? Ai meu rico rico são Tomé padroeiro da dúvida metódica! No que me fui meter. É ou não? Felizmente tenho aqui atrás um prontuário que me sossegou. É mesmo como escrevi! Ora tomem lá, treponemas pálidos da nova TLEBS!) sozinhos, que são como as cerejas. Em convocando-se um surdem logo dois ou três. O único fantasma que aparece sozinho é o de Canterville (e rebimba, leitora MJA!) que o da ópera reformou-se.
Bom, estava eu vagamente ensimesmado na explanada do “Sanduíche bar”, diante duma “flausina” que lia a “Hola” (hoje, que ontem era a “Gente” e anteontem devia ser a “Caras”) e aparece-me a Helena Pato.
Convém explicar que a Pato ora convocada, Lena para os amigos de há exactamente quarenta anos, ainda não passou ao estado gasoso. Está viva, julgo, e desejo, e de boa saúde (idem, aspas, aspas). Só que a dita cuja escreveu um livrinho que ontem encontrei num saldo. Eu resisto pouco a quase tudo e nada a saldos de livros. Vai daí comprei o livrinho “Saudação, Flausinas, Moedas e Simones” (Campo das Letras, 2006) porque me parecia que a autora era a Lena Pato do meu longínquo e coimbrão ano de 1964. Tinha de ser por uma série de coisas que batiam certo (natural de Mamarosa, ex-dirigente da Associação de Estudantes da Fac de Ciências de Lisboa nos inícios de 60, um texto dedicado a um Noales (ora nesse tempo se a memória não falha ela seria casada com um exilado político desse nome...) enfim demasiadas coincidências para não ser verdade. E vai daí tirei-me dos meus cuidados e apanhei a minha enteada Ana espetei-lhe diante do olho bonito uma fotografia de grupo nos idos de 64 (Eurico e Otílio Figueiredo e respectivas Berta e Gabriela, João Rezende e Laura Barros Moura – que já não está por cá- o Fernando e a Ruth, casal porreirinho que perdi de vista há séculos e a Maria João e eu, namoradinhos de fresco. E a Lena Pato, sem par (o marido exilado etecetera e tal...). e a contracapa do livro já citado). A Ana nem hesitou: é a mesma pessoa, basta olhar para a linha entre o nariz e a boca(!!!???). Pronto é mesmo a Lena.
Ora bem, falo deste livro porque pairam por este amável blogue alguns leitores curiosos que se queixam da falta de documentos relativos à história recente. Este pequeno livro de quase crónicas, escorreito e generoso, fala de um percurso, aliás de vários, de pequenas memórias, do ar do tempo que se respirava por aquel entonces. E dá-me prazer ver a Lena, com quarenta anos em cima, com coragem para passar a escrito alguma da sua vida. Se alguém a conhecer, digam-lhe que o Marcelo, o malandro “anti-revisa” que lhe deu o desgosto da notícia da queda do Krutchov se lembrou subitamente dela com a ternura de um velho combatente. E que hoje em dia acha que, mal por mal, o senhor K era melhor do que o seu sucessor Brejnev...fraca consolação.
2 O fantasma seguinte, amabilíssimo também, chama-se Marcela Torres. Não por ser Marcela, coitada, ela, como eu, não há-de ter tido qualquer culpa no nome que lhe puseram. Nada disso. A Marcela (e o Zé Bento) era da minha geração e foi uma amiga, uma enorme amiga. Foi também editora (Afrontamento), militante do MES, ex-MES, e tudo o resto. Era também filha do Flausino Torres, um intelectual comunista de primeira água que levou a sério o seu compromisso, tão a sério que teve que se exilar com a idade com que muitos vão para a reforma. E no exílio não se calou, não abdicou da sua liberdade critica ao ponto de enfrentar Álvaro Cunhal à conta da Primavera de Praga. Dessa vida, pelo mundo repartida, deixou farta documentação. E foi o neto, o Paulo Torres Bento, filho da Marcela e do Zé, que eu vi quase nascer, quem se encarregou de organizar um belo livro que agora a Afrontamento, editora de que ainda se falará, publicou. “Flausino Torres documentos e fragmentos biográficos de um intelectual anti-fascista”, prefácio e organização de Paulo Torres Bento.
3 Ele tem um bigode farfalhudo, bigode que faria o falecido “tovarich” Yossip Vissarionovitch Djugatchivilli, conhecido no século por Stalin, morrer de inveja. Um bigode destes daria direito a gulag. E boa parte dos poemas, idem. Falo do Fernando Echevarria, um poeta mais ou menos secreto. Ou melhor, um poeta cuja qualidade é inversamente proporcional ao conhecimento público. Um belíssimo poeta, raios partam o homem. E um livro, um senhor livro, 900 páginas ou quase! Só uma editora maluca da cabeça é que punha cá fora um tijolo destes. Ou então trata-se de uma senhora editora a quem tiro o meu chapéu. O livro vem belamente encadernado, traz uma caixa a envolvê-lo e resuma cuidado e amor por parte da editora. Assim, sim!
4 Fechemos este ramalhete com mais um amigo: Rui Graça Feijó, dr.phil. (ho la la!) por Oxford, 50 anos feitos. “Timor, paisagem tropical com gente dentro” prefácio de outro amigo, Jorge Sampaio. Editorial Campo da Comunicação. São cinco ensaios de análise política da autoria de quem foi assessor de Xanana Gusmão. Rui G. Feijó tem algumas qualidades e entre elas a menor não será a de escrever bem, concisamente, elegantemente. Um pouco à inglesa mas isso vem-lhe de ser “fellow” de Oxford. Poder-se-á não concordar inteiramente com as suas análises (eu não frequento nem frequentei a missa timorense e menos a timorfilia lusitana) mas há inteligência e generosidade no que RGF escreve.
Isto não é um favor! Eu não faço favores nem ao meu pai, em matéria literária. Era o que faltava. Nesta botica exclui-se o amiguismo. Mas também não aceito que o facto de ser amigo me torne mudo ou maneta.
Já mesmo em fim de texto sai-me à liça um curioso “Eça de Queiroz e os seus clones”. Até que enfim que alguém sai ao passo do professor Saraiva! E da sua tese, tirée par les cheveux, sobre a mãe de Eça. Eu, assisto aos programas do idoso cavalheiro num misto de espanto pela audácia e de fatalismo de pecador que procura redimir-se com o pequeno e semanal sacrifício de o aturar. Já o ouvi, com estas que a terra há-de comer, dizer que a Serra da Boa Viagem (Buarcos) teria esse nome porque quando os barcos zarpavam do Mondego a cerca de cinco quilómetros, a rapaziada na serra agitava os braços e berrava boa viagem! Deviam ter cá um destes vozeirões!... António Eça de Queiroz, bisneto de Eça, escreve com cuidado, bem mesmo, e acerta umas tantas ou quantas... Ainda só espreitei mas o que vi promete. Aqui para nós, o Eça anda a ser bastante maltratado por uma gente que não deve ler o que o homem escreve. Às tantas andam a ler o conselheiro Acácio e confundiram a criatura com o criador.

Quem quiser saber o que é um treponema pálido (brrr!) vá a um dicionário especializado. Para a gntinha da TLEBS não há frete, favor, obséquio, fineza, mercê o que quer que seja. Arrenegados!

10 janeiro 2007

Exemplos

Dois exemplos de sinal contrário:

- Cavaco Silva introduziu uma mudança nas viagens oficiais ao estrangeiro: no caso da visita oficial à Índia os convidados pagam as suas despesas. Parece-me que faz todo o sentido já que, na sua maioria, se trata de empresários e esta viagem é certamente encarada como um bom investimento.

- O Governo gastou 95 milhões de euros em consultadoria no ano passado. Com tantos estudos que existem no nosso País, muitos copiados uns dos outros, parece-me um pouco absurdo tal montante, tanto mais que Sócrates teve sempre um discurso a defender mais acção, já que os diagnósticos estavam feitos.

STCP

O que se está a passar com a alteração das carreiras dos STCP é uma caso de evidente gestão danosa do ponto de vista do cliente. Por detrás das alterações efectuadas estão certamente uns números que precisavam de ser modificados ao nível do equilíbrio financeiro. Todavia, a gestão de um serviço que tem utilidade pública indiscutível deve cumprir a sua missão de satisfação das necessidades para que foi criado, atendendo também, evidentemente, à boa gestão dos meios financeiros. O que se está a passar é que as decisões parecem ter tido em conta apenas essa última componente do sistema esquecendo a outra: as pessoas. As alterações estão a transtornar visivelmente o quotidiano de milhares de pessoas e, por arrastamento, o de muitas empresas. A factura está a ser paga pelo cliente e pelo País. Quanto maior for o tempo de transporte mais impacto negativo tem na produtividade e na qualidade de vida das pessoas.

Parece que a administração dos STCP recuou em algumas decisões mas manteve o modelo de base pelo que as mudanças que produziu funcionam como remedeios e não correspondem ás reais necessidades dos clientes. Como me disse um dos utilizadores diários deste meio de transporte: os STCP não têm o sentido do serviço público, limitam-se a transportar pessoas como animais, amontoados, quanto mais melhor. Nem que para isso as pessoas estejam em filas um tempo interminável, suficiente para fazer transbordar os autocarros.

09 janeiro 2007
















de outono


tenho olhos para ver
os teus olhos de outono
a me falarem na distância,
teus gestos.

é sempre outono,
a nossa estação.
as horas correm entre as árvores
do lugar onde te espero.


silvia chueire

08 janeiro 2007

Estes dias que passam 44

De delatione in partibus orientalis

O arcebispo metropolitano de Varsóvia demitiu-se da sua nova função em plena missa de investidura. Porque durante vinte anos, sob o pseudónimo de Greg, tinha colaborado com a polícia política do anterior regime. Como mais uma enorme multidão de polacos. A notícia em si só assume alguma importância porque, desta vez, é um arcebispo católico, na catolicíssima Polónia, quem serviu o anterior regime comunista de que, dizia-se, a Igreja era o mais formidável e encarniçado inimigo.
Indo por pontos. Os regimes tirânicos baseiam muito do seu poder numa extensa e labiríntica rede de informações. Muito mais do que na repressão pura e dura. O finado, e nunca assaz chorado, professor doutor Oliveira Salazar dizia mesmo que “bastavam uns safanões dados a tempo” para aquietar as massas. O resto era intendência: polícia e respectivos informadores e reserva de empregos públicos fossem eles quais fossem a quem mostrasse sinais de obediência absoluta. E assim funcionou o “suave” Estado Novo. A “oposicrática”, o “reviralho”, rosnava do seu canto, guardado por fora pelos bófias fardados e por dentro pelos delatores. Empregos na função pública, viste-os... E se, porventura, alguma rês se tresmalhava, rapidamente a expulsavam desse redil pobrete que era o emprego por conta do Estado. Sucedeu assim com a militaragem desassossegada, com um gordo grupo de professores universitários e mais uns quantos que se tinham infiltrado ou entretanto se tinham convencido das excelências da democracia. Quando veio o cataclismo (o 25 A) foi-se a ver e nem se acreditava: a bufaria tinha infectado o corpo da grei em dose cavalar. A legião, e apaniguados, criara uma gigantesca rede de dezenas de milhares de delatores. Com pormenores extraordinários como o de um solícito cidadão que, segundo o relatório da autoridade competente, estava a denunciar por ciúmes. Pelos vistos o/a denunciado/a punha-lhe uma desmedida cornadura!
Isto por cá. E no resto do mundo? Pois no resto do mundo, a começar pelos nuestros hermanos foi um vê se te avias. Ainda a guerra civil ia no princípio e já nas zonas”libertadas” pela “cruzada” salvadora de Franco se enchiam praças de touros com “vermelhos”, sindicalistas, anarquistas, mações, ateus e similares. Denunciados pelos bons. Com uma ligeira diferença: uma vez metidos no touril, raros eram os que escapavam ao famoso “paseo al campo”. O exército franquista achava que não se podia dar ao luxo de deixar para trás presos... Presos precisam de guardas, a cruzada não podia dar-se a esse luxo e além do mais aquela gentuça nunca teria serventia para o glorioso destino duma Espanha regida por Franco.
Isto não serve de desculpa a muito crime cometido na outra banda. Também por lá se limpou o sarampo a muito presumível inimigo, fosse frade, comerciante ou proprietário agrícola, empresário ou rico.
Na França ocupada, cidadãos zelosos e admiradores do Marechal (maréchal nous voilá!) encarregaram-se de indicar às autoridades muito judeu ou outros facciosos do mesmo gabarito. Na Alemanha foi o que se viu: os campos de concentração começaram por encher-se de oponentes políticos antes de começar a época de caça aos judeus. Na Itália havia um pequeno distinguo: os oponentes menores eram obrigados a beber uma litrada de óleo de rícino e isso por vezes bastava para divertir a rapaziada dos “fascii di combatimento”. Mas o sistema delatorial era o mesmo e tinha os mesmos resultados.
O sistema soviético levou o processo a requintes de perfeição. Conseguiram mesmo eliminar quase todos os primeiros comités centrais bolchevistas. Sobraram quatro ou cinco gatos pingados que nunca terão percebido que milagre lhes caíra em cima.
Dito isto, voltemos à amantíssima Polónia, filha abençoada da Igreja. Que um dos mais importantes hierarcas tenha durante vinte anos sussurrado aos ouvidos meigos da polícia política um par de informações não espanta. O mesmo fizeram dezenas ou centenas de milhares de polacos, igualmente católicos, apostólicos e romanos. Para sobreviver? Para chatear o indígena? Por dinheiro?
Por mil e tal razões! Porque o Estado tirânico inquina a sociedade, torna-a enfermiça, tacanha, miserável e delatora. Apenas me espanta que Monsenhor Wielguz não tenha sequer pensado na hipótese de alguém vir a saber do seu namoro com as autoridades.
Todavia, também isso faz parte do modus vivendi das sociedades que acabam de sair do sono da razão. A mera dignidade cívica é uma palavra desconhecida quando se é politicamente analfabeto e quando nos ensinam, ou tentam ensinar, a viver medrosamente abjectos. E isso, essa inércia, essa incapacidade de dar à liberdade um outro sentido mais alto e mais nobre do que olhar para o lado e invejar o vizinho, é maleita que só muitos anos de democracia plena podem fazer curar ou pelo menos reduzir a doença a um par de casos sem remédio.
E mesmo neste caso, na democracia plena e vivida durante gerações basta que algo suceda, um desastre, um atentado e logo aparece uma multidão capaz de passar da informação cívica e desinteressada à denúncia caluniosa e ao vício antigo do mexerico e da insídia.
Lembremo-nos deste caso apenas por isso: no melhor pano cai a nódoa. E num sistema de miséria intelectual, moral e social a doença pega de estaca e espalha-se como fogo em campo seco.

Dez anos

Faz hoje dez anos que me despedi pela última vez do meu amigo Henrique David. A família e os amigos ficaram cedo demais privados do seu convívio e da sua alegria de viver.

Conhecera-o em 1984, quando entrei na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) e o tive como professor da cadeira de Métodos Quantitativos para as Ciências Humanas e Sociais – um cadeirão para os alunos de letras mais desligados das matemáticas. Ao longo do curso, reunimos um grupo extraordinário e ficámos amigos para a vida. Tal como outros amigos comuns, jamais esquecerei as nossas conversas, as cumplicidades, os jantares e as festas (ai, as festas!) na sua casa da Aguda. Como tantas vezes disse, o Henrique tinha a melhor biblioteca e a melhor adega que eu conhecia.

O Henrique David tinha-se formado inicialmente em engenharia civil, mas acabou por encontrar na história e na demografia os temas da sua predilecção. Tinha uma valiosíssima biblioteca, onde se destacavam as obras relacionadas com os estudos demográficos, a história e a cultura medieval, os estudos islâmicos, as fontes documentais para a investigação histórica, a história de Portugal e a estatística para as ciências sociais, com exemplares raros no meio universitário. O espólio foi doado por sua filha à FLUP e está hoje disponível em sala própria na biblioteca da Faculdade.

Os professores franceses Philippe Roudié e François Guichard escreveram em Setembro de 1997, por altura do cinquentenário do nascimento do Henrique, um bonito texto em sua homenagem, de que me permito retirar a seguinte passagem: “Éramos oito na sua bonita casa. O anfitrião tinha-se afadigado em volta dos fogões e, embora já soubéssemos que ele era um professor e investigador de elite, revelou-se-nos também um cozinheiro de excepção. Com o seu grande sorriso hospitaleiro, acolheu-nos em redor de uma mesa sumptuosa, guarnecida de uma paleta de vinhos magníficos – particularmente uma verdadeira colecção de Barca Velha – cujos esplendores nos queria fazer descobrir. “ O Henrique era mesmo assim e confesso que foi em sua casa que bebi pela primeira vez um Barca Velha.

O seu nome está consagrado na toponímia portuense, julgo que pela mão do então vereador Rui Feijó, numa rua perpendicular à Rua do Gólgota, uma zona romântica, precisamente nas traseiras da antiga Faculdade de Letras. Gosto de passar aí e de ver o nome do Henrique David a olhar para mim.

07 janeiro 2007

Diferenças

Ontem
Ontem ao ver o jogo entre o Liverpool e Arsenal para a Taça Inglesa tive a sorte de ver:
- Um grande jogo, combativo, com técnica, com garra, com ritmo;
- Um campo cheio de adeptos,
- Adeptos do Liverpool que já quase no final do jogo, quando o Arsenal ganhava por 3-1, entoavam cânticos de apoio ao seu clube.
Tudo isto foi lindo, soube bem.

Hoje
Hoje ao ver o resumo dos jogos para a Taça de Portugal tive o desconsolo de ver:
- Pouca técnica, alguma garra (sobretudo dos ditos pequenos), pouco ritmo;
- Campos quase vazios na sua maioria;
- No Dragão, grande adesão de adeptos em número mas com falta de apoio, apenas o silêncio frio face ao resultado.

Realidades diferentes? Sobretudo culturas diferentes.

Se existiam dúvidas…

A SIC acaba de anunciar que três crianças – Texas (EUA), Índia e Paquistão – se suicidaram por enforcamento ao imitarem a forma como Sadam foi executado e que as televisões têm mostrado e comentado.

Não vai longe a polémica acerca da influência da televisão nas crianças e nos indivíduos menos capazes de discernir o real do virtual. Como se antevia, a forma desastrosa como as potências ocidentais se têm portado no Iraque também se manifestou na forma como acabaram com Sadam. Triste é a imagem que deram a todos nós e em particular ás crianças. Eu virei a cara para o lado por não suportar ver tais imagens, mas uma criança que faz numa situação destas, com a curiosidade que lhes é natural? Absorvem tudo, à sua maneira. A comunicação social fez, também aqui, um mau trabalho, com a apologia à banalização da morte.

Se existiam dúvidas do poder deste meio de comunicação social sobre as crianças este caso dá-nos uma resposta.

06 janeiro 2007

Estes dias que passam 43

Confissão tardia de algo que as leitoras já sabiam,
passeio pela infância e desabafo
ou três em um, como nos saldos da época

Eu sou um trapalhão. Um trapalhão velho e obstinado. Uma espécie de dinossáurio repetente que só não passa a fóssil porque alguém se esqueceu de o avisar que os da sua espécie são apenas um motivo para filmes de terror em Hollywood. Coisa aliás perfeitamente natural em Hollywood ou, pelo menos, de acordo com o nome. Onde é que poderia haver dinossáurios senão num Bosque Sagrado?
Só que o meu bosque sagrado já não é. Em tempos eventualmente mais felizes porque eu era menino e o meu universo cabia entre o rio e a serra, por trás da minha casa, entre Buarcos e Figueira, no sítio chamado Praia (e antes Palheiros, mas já lá iremos...) havia uma grande mata. A mata de Sottomayor. Digamos que aquilo eram quarenta ou cinquenta hectares (para quem sabe o que isto é) de árvores enormes, cedros, abetos, pinheiros, teixos, alguns eucaliptos (já!) e outras tantas acácias. No meio umas esplendorosas figueiras que no momento azado davam figos suculentos que nós (o Nélito, os irmãos Esteves, os Neves e mais uns quantos) fanávamos sob o olhar risonho de um par de guardas. –“Lá anda a garotada aos figos... “ – “Mais trabalho para o dr. Marcelo...”
E, maravilha das maravilhas, na mata entre figueiras, um forte. Enfim, um forte não, um baluarte! Um baluarte com ameias enormes. O baluarte de Palheiros, que era esse o seu verdadeiro nome. Para quem não teve a bênção de viver a sua meninice entre o parque de Sottomayor e a praia, convém explicar que este posto militar foi erguido cerca do século XVII para “cruzar fogo” com o castelo de Santa Catarina que guardava a foz do rio Mondego e as muralhas de Buarcos que protegiam a enseada. Terá sido erguido durante os Filipes ou mais tarde por ordens de Castelo Melhor o grande ministro de D João IV.
E “Palheiros” porquê? Ora provavelmente porque por esta linha de areia entre a mata e o mar se terão erguido pequenas casas de madeira, de pescadores de passagem ou da terra, com o seu andar térreo em vão para guardar botes, lanchas ou bateiras. Palheiros como os de Ovar e da costa Nova ou do Cabedelo, do outro lado, entre a Gala e a foz do rio.
Com o progresso os palheiros terão dado lugar a casas feitas de mais sólido material e assim se perdeu o topónimo.
Fundamentalmente, o baluarte, destinava-se a repelir a piratagem, fosse ela barbaresca ou inglesa. Depois, os anos passaram, as duas povoações cresceram, foram lançando casas uma contra a outra até se encontrarem por aqui, na Praia. O baluarte, inútil foi invadido pelas úteis figueiras. E para trás os Sottomayor mantiveram a bela tapada cheia de árvores (em parte transformada em parque infantil e local de merendas) até ao seu palácio edificado já nos fins do século XIX ou mesmo depois, não sei, nem me interessa.
O que me interessa é que durante cem, duzentos ou trezentos anos, entre a praia e a estrada para Tavarede e para os Quatro Caminhos, havia uma mata, que para nós meninos, era uma floresta. E que essa mata aguentou tudo, fogos, talas, queimas, ambições até aos anos oitenta do século passado. De repente, a Figueira foi assolada por uma gentuça de caninos longos e olhos rapaces. Compraram tudo o que podiam comprar. Para modernizar diziam. Que a cidade parara no tempo, que o século XIX já lá ia, que os anos trinta e quarenta eram passado (era verdade!) que os cinquenta e os sessenta tinham assistido ao triunfo dos algarves e que era preciso betão, muito betão para transformar uma cidade amável e pequena numa espécie de Albufeira de segunda, sem o calor sufocante, sem os ingleses pé rapado, sem perceber que a costa de prata não pode competir com outras costas mais a sul mas que deve procurar o seu próprio caminho de estância turística...
E quando viram uma mata, gozo de gerações de garotos, refúgio de outras tantas levas de adolescentes namoradeiros e pecadores, descanso de idosos que picnicavam entre as árvores, vá de arrasar tudo, de talar tudo, de betonar, de erguer ruas tristonhas de andares com apartamentos fechados onze meses em doze. O crime, se foi perpetrado por estranhos, por aves de arribação e mau agoiro, teve todavia cúmplices na terra, uma quinta coluna de exaltados cidadãos que em nome do imediato rebentaram com muito do futuro possível e com todo um passado.
Quem quiser ver uma terra a saque faça o favor. A Figueira espera por si.
Mas tudo isto, esta jeremíada sentida, vem a propósito de quê? Ora de mim, das minhas trapalhadas, dos títulos dos meus textos, melhor das séries onde os vou colocando às vezes arbitrariamente. E de facto tudo o que queria era comunicar pesaroso que a série “Estes dias que passam” (e não “que correm”, como alguma vez escrevi) tinha até hoje dois números 45 e outro par de 46. Já corrigi! Não que isso importe muito os leitores, se os há, excepção feita ao Manuel Sousa Pereira que lê e imprime, estoicamente, as minhas balivérnias. Esta correcção (a enésima desde que por aqui escrevo) é para ver se ele não me volta a azucrinar o bichinho do ouvido. Trapalhão sempre, mas disposto a reparar o que pode ser reparado. Ao contrário dos espertalhaços que chegam a uma terra, sugam-na até ao tutano e desandam quando já nada mais podem tirar dela.
A propósito: o texto já estava pronto desde há dias mas esperava data propícia para aparecer. Acontece que o “Público” fala hoje em duas páginas de Buarcos. Vamos andando que não diz nada de errado. Todavia, por muito buarquense que seja, tenho de dizer que se algum dos leitores quiser comer da mais autentica cozinha marinheira faça o favor de passar o rio, entrar na Gala em direcção da praia e perguntar pelo “Carrocel”. E peça um dos pratos com nomes esquisitos. E dê-me depois notícias!
Um texto sobre o Heimat (mais uma alemoada, leitor Ferreira, isto quer dizer terra natal, região) tinha de ser dedicado aos figueirenses, antigos habitantes da “praia”: Ana Leal de Oliveira, Rosa Carlos, António Pinguel e Octávio Correia Ribeiro. Sem esquecer Maria Manuel Viana, nascida e crescida mais lá para a cidade. Azar dela! E em memória de Marcos Viana, homem de cultura, de honra e fino conhecedor da gastronomia regional.