20 abril 2005

Farmácia de serviço 9

Mozart em Pasargada

Por algum lado eu havia de começar, nesta lufa-lufa de pagar dívidas antigas. E começo (aliás já comecei: ainda não fiz outra coisa senão agradecer a tantos músicos, poetas, pintores etc... o que me deram neste último meio século.) por Manuel Bandeira, que descobri pelos meus vinte anos, numa edição da Minerva (que ainda por aí corre em alfarrabistas amáveis). Desfiz-me desse exemplar quando encontrei Estrela da Vida Inteira (Livraria José Olímpio editora).
Bandeira foi portanto uma revelação: para um rapazola que arrastava pela faculdade de direito o seu mal de vivre e um considerável desprezo pela coisa jurídica, o modernismo foi uma revelação. Pela primeira vez irrompia nas minhas leituras um prosaísmo poético, um tu cá tu lá com as coisas mais elementares que subitamente se transformavam em objecto poético. Eu li-o entre estarrecido e maravilhado, de rajada. Foi tal o espanto que meti o livro na mala e levei-o para férias, em Nampula. Aí fui lendo e relendo, dei cabo da paciência a familiares e amigos que, porém, não ficavam indiferentes ao que ouviam. Ora oiçam, também:

Madrigal tão engraçadinho

Teresa, você é coisa mais bonita que eu vi até hoje na
minha vida, inclusive o porquinho-da-índia que me de-
ram quando eu tinha seis anos.

Teresa
A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do
corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.


Nova poética

Vou lançar a teoria do poeta sórdido.
Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito,
Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito
[bem engomada, e na primeira esquina
[passa um caminhão, salpica-lhe o paletó
[ou a calça de uma nódoa de lama:
É a vida.

O poema deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.

Sei que a poesia é também orvalho.
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens
[cem por cento e as amadas que
[envelheceram sem maldade.

Chegados que fomos a este ponto, a leitora começa a descobrir porque é que tantos e tão bons poetas portugueses citam continuamente Bandeira, porque é que Alexandre O’Neil lhe chamava “avôzinho”. Claro que também terão reparado que eu fiz apenas citações de poemas que pela sua contundência recordo. Obviamente a lira bandeirante tem outros registos:

Consoada

Quando a indesejada das gentes chegar
(não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga.
- Alô iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(a noite com os seus sortilégios.)
encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
a mesa posta, cada coisa em seu lugar.

O iBook adverte-me neste momento que a receita vai já longa. Mau, Maria! E a Kamikaze que me pede para ser conciso. Paciência! É que ainda não contei o resto. Estava, pois, eu em Nampula, convalescendo duma bruta crise académica (a de 62, para ser mais preciso...) tratado a belos caris de camarão (se quiserem eu dou a receita...) e uma paixão assolapada por uma coleguinha de Lisboa. Um dia o meu pai entra triunfante em casa com uma molhada de discos debaixo do braço: tão bom freguês era da livraria-discoteca que, em chegando remessa nova, era ele o primeiro a ouvir e escolher o que queria. E nesse bendito dia, entre outros que não recordo, havia dois que me desgraçaram para o resto da vida “Lonely woman” pelo Modern Jazz Quartet e “eine kleine Nachtmusik” de Mozart. Olhem manos, endoidei! Passava horas a fio a ouvir estas duas preciosidades. E tão funda foi essa emoção que logo que tive um gira-discos, os dois primeiros LP que comprei foram, adivinhe-se, estes. E também foram os dois primeiros Cêdês, claro.
Alguma vez falarei do MJQ porque agora já só tenho tempo para Mozart. Alguém, grosseiro mas bem intencionado, disse um dia: Mozart é como o porco: aproveita-se tudo! Ámen, digo eu, embora acrescente: fica é pelos olhos da cara. E numa estante grande, mesmo por baixo dos livros de poesia lá estão arrumadinhos os 181 volumes da Integral de Mozart. Aliás não estão todos: há sempre um par deles que viajam comigo no carro, em alta grita (neste momento: Zaide, der Schauspiel Direktor e die Gärtnerin aus Liebe!)
É com Mozart que vos deixo. Com Mozart visto por Bandeira.

Mozart no céu

No dia 5 de Dezembro de 1791 Wolfgang Amadeus Mozart
[entrou no céu, como um artista de circo, fazendo
[piruetas extraordinárias sobre um mirabolante cavalo branco.

Os anjinhos atónitos diziam: Que foi? Que não foi?
Melodias jamais ouvidas voavam nas linhas suplementares
[superiores da pauta.

Um momento se suspendeu a contemplação inefável.
A Virgem beijou-o na testa
E desde então Wolfgang Amadeus Mozart foi o mais moço dos anjos.


Modern Jazz Quartet: Lonely woman (Atlantic 8122-75361-2
Mozart: Integral, Philips. O escriba lamenta não poder indicar uma ou algumas obras de Mozart: é tudo bom, muito bom, excepcional.

Vai esta em memoria de Marcelo Heinzelmann Corrêa-Ribeiro, João Semana devotado, caçador (de caça grossa!), inveterado fumador e jogador de bridge cantor de fado de Coimbra. Poucos tiveram tantos doentes quanto ele. Poucos receberam menos dinheiro das consultas. Mas muitos ainda o recordam. Com alegria e afecto. Era conservador mas solidarizou-se sempre com os filhos, o que é normal, com os amigos e até com simples conhecidos, o que é muito mais raro. Tinha um defeito: apreciava escassamente jazz pelo que devolveu à procedência a “Lonely Woman”. Ó doutor que falta de cavalheirismo!

1 comentário:

Silvia Chueire disse...

Obrigada por este fantástico post. Muito obrigada.


Silvia