20 junho 2006

Farmácia de serviço nº 23

En flanant par la rive gauche

Agradeço-te meu Deus por me teres criado Negro,
O branco é uma cor de circunstância
O negro é a cor de todos os dias
E eu carrego o Mundo desde a manhã dos tempos.
E o meu riso sobre o Mundo, à noite, cria o Dia.

Agradeço-te meu Deus, por me teres criado Negro.

(Bernard B. Dadié)



Pois é, amigas e amigos, freguesia gentil que me frequenta o estabelecimento mais do que ele merece. A farmácia optou por um horário irregular e só abre a porta quando algo de realmente interessante acontece. Para vender pílulas, amuletos, remédios para emagrecer bastam os supermercados e muita outra farmácia dessas de cruz verde com director técnico e toneladas de produtos de beleza à vista do público pagante. Que lhes preste! Esta botica vende produtos menos chamativos mas garante a qualidade de tudo o que apregoa.

E hoje?, perguntará a minha especial leitora que há tempos me mandou um amável mail. Pois hoje, meu anjo, hoje dá-se noticia de última hora ou, se V quiser, de primeira hora: acaba de se inaugurar o Museu do Quai de Branly, mais propriamente o Musée des Arts Premiéres, em Paris, claro está. Não sei se era V. que não tinha razão suficiente para ir de propósito a Paris, como se isso fosse necessário, mas enfim. Agora já tem: Corra, asinha, asinha, à cidade luz e amande-se para este novíssimo museu onde se reúnem quantidades impressionantes de peças de África, América, Asia e da Oceânia. Suponho que para ali convergiram não só as colecções do Musée de l’Homme mas identicamente as do da Porte Dorée.
E como é que chega lá, pergunta V? olhe é do mais fácil que se pode imaginar. Ponha-se, digamos, no cruzamento do Bd de St Michel com o Sena, virada para Notre Dame. Vá pelos cais que estão à sua mão esquerda. O passeio não é demasiado longo e tem imensas possibilidades. Logo à partida há uma série de bouquinistes dos melhores que conheço. Um tem um stock respeitável de “pléiades” a preços que desafiam toda a concorrência. Logo a seguir encontra outro respeitável colega que vende bd da melhor. E por aí fora e ainda nem sequer se chegou ao cruzamento da rua Gît-le-coeur que este seu criado frequentava muito por mor duma livraria que vendia in illo tempore os (pasme-se!) “cahiers marxistes-leninistes”com vaga direcção de Althusser! De todo o modo continue sempre, e ali para meio do quai de Conti há-de encontrar uma excelente galeria de arte negra. Vale a visita.
Continue sempre pelos cais. Do outro lado começam a aparecer o Louvre e o jardim das Tulherias, falta-lhe o palácio incendiado durante a comuna mas se lá for passear verá que não perde o seu tempo. E não perca o pequeno mas maravilhoso Musée de l’Orangerie. Além das Nymphéas do imortal Monet está lá a colecção Jean Walter Paul Guillaume, benditos sejam que deixaram para a clientela desta botica renoires, cézanes, gauguins monets utrillos e sei lá mais o quê. Um regalo!
Na zona do cais Voltaire recorde esse homem enorme, esse pensador hors pair, o pai de Zadig o defensor da liberdade. Recorde sobretudo, ouça os ecos se puder, a sua estadia ali na casa de um príncipe de sangue, as multidões que lá acorreram para celebrar o autor de Candide que aliás terá mesmo morrido ali.
Depois entra pelo cais Anatole France, autor estupidamente esquecido hoje, prémio Nobel nos anos vinte, jornalista polémico, autor da frase assassina “pensamos que morremos pela pátria e afinal morremos por um par de industriais!”
E chegamos ao cais de Orsay o penúltimo desta caminhada que não terá no total mais de três quilómetros. É inútil falar-lhe do museu de Orsay. A esse V já foi e fez muitíssimo bem que as colecções residentes fazem chorar de inveja as pedrinhas da minha calçada (título de um livrinho de poemas de amigo meu dos temos de Coimbra cujas aventuras alguma vez contarei).
Do outro lado do rio o elegante 16eme, as ruas dos grandes costureiros, um outro Paris. E os Grand e Petit Palais, não os esqueçamos. No Grand está uma exposição de arte italiana recente de que só ouvi dizer bem.
E eis-nos no cais de Branly (acentue bem o i final, cá por coisas, que a língua francesa é muito traiçoeira).
E prontos!, como dizia alguém. Antes de chegar á ponte de Iena e à “torre”, ali está ele, novinho em folha, o museu de Branly com uma parede vegetal e entrada pela rua de l’Université, por onde V. também podia ter vindo. Bastava fazer o Bd de St Germain até cruzar com esta e vir por aí fora. Também não está mal como passeio. Olhe aí tem bom caminho para o regresso. E que belas livrarias, galerias, a Gallimard tão perto para já não falar da Maeght e algumas lojas de perder a cabeça (e os morabitinos, digo eu, cliente ocasional de algumas). E como o dia foi longo mas a noite é ainda uma criança que tal comer umas belas moules mariniére ali quase em frente do Deux Magots antes de chegar á Lipp (boa mas cara e ligeiramente conservadora). A Crazy Grazy, volta e meia, é lá que se perde e come-lhe cá com uma vontade!.... Depois dá uma voltinha pelas livrarias em frente que têm o civilizado hábito de estarem abertas à noite, e caso queira, há bom jazz nas redondezas.
Se V quiser espreitar o novíssimo museu, álibi cultural de Chirac no fim da página tem os dados.
E já que estamos com a mão na massa ora aí vai disto. Os cavalheiros que mandam na política francesa adquiriam o hábito excelente de deixarem, como testemunho do mandato presidencial, uma obra cultural de qualidade. Lembremos Pompidou e o seu Centre, Mittérrand com a Biblioteca, ou a Pirâmide, emblema do projecto do Grand Louvre. Chirac que é reconhecidamente um conhecedor das artes ditas primitivas deixa este legado exemplar: Branly. Conviria perguntar como é que em Portugal se lhes segue o exemplo mas não estraguemos a festa.

Museu de Branly: www.quaibranly.fr

2 comentários:

josé disse...

Nesses bouquinistes da rive gauche, andei há uns tempos, a mercar raridades da bd e outras assimiladas.
Gastei uma tarde de Sábado completa e um estafa que não cansou porque por gosto corri, até percorrer todo o lado esquerdo, passando ainda ao direito.
Vi de tudo um pouco: velhas revistas do tempo da guerra. Selecções sem fim;cromos e colecções dos últimos cinquenta e para além.
E fitei revistas que nunca vira ao vivo e merquei logo ali ao preço da pechincha: Rock & Folk que me faltavam e Métal Hurlant que só vira em catálogo. Alguns álbuns de bd francesa e belga, que são as melhores do mundo. Passei os olhos em velhas Lui que me assaltavam os sentidos quando era um jovem curioso...de novidades belas. E fiquei esquecido da Actuel.
Não faz mal- fica para a próxima.

M.C.R. disse...

AMitterrand também, claro. O diabo do homem tem uma lista de trabalhos públicos de grnde nível, cfr. culture.gouv.fr/culture