Os meninos, o mar e o tempo
Os dias nublados têm vantagens incomparáveis. Mesmo se for domingo, como hoje. Não é preciso procurar lugar para estacionar o que já é um bom começo. No “Ferreira” (não, não se trata do nosso leitor e amigo, este Ferreira é o dono epónimo da esplanada onde leio o jornal logo que o calendário marca o fim do inverno) posso escolher a mesa tão raros são os fregueses hoje. E não está frio, notem. O sol é que brilha pela ausência. Há mesmo quem diga que o nevoeiro prega pequenas partidas, chegando a molhar brevemente os mais corajosos.
A praia está deserta, ou quase: um casal vestido e dois meninos pequenos que diante de nós começaram por molhar os pés, depois despiram-se e brincam dentro da água num recanto protegido por rochedos: dois enormes de cada lado e um punhado de pequenas rochas mais à frente. Ondas de dois ou três metros quebram fora desta espaço e enchem com a sua espuma a crista das rochas. Ondas que correm de longe, amarelas e ameaçadoras. Os garotos gritam falsamente alarmados e depois mergulham no palmo de água brincalhão em que a onda temível se transformou. E levantam-se em gargalhadas. Os pais sorriem. Da esplanada, sorrimos todos. Uma senhora francesa, com o cão ao colo, uma habituée do Ferreira, murmura para o cão que é uma vergonha para ele, ali no quentinho em vez de fazer a sua “petite baignade”... O cão não parece comover-se. Nem sequer rosna. Para ele o Verão ainda não começou.
O jornal, abandonado num canto da mesa, deixo-me embalar pelo espectáculo e lembro-me de uma outra época, noutra cidade, mais habitável. Éramos um grupo numeroso de meninas e meninos que iam crescendo juntos, Verão após Verão. Também nós desafiávamos os dias cinzentos, as marés vivas, a água fria. Em dias mais tempestuosos, o senhor Fonseca, padrinho da Rosa, tomava o comando das operações. Juntava a ranchada de miúdos e, ala que se faz tarde, para os rochedos de Buarcos. Um quilómetro bem comprido, feito de pequenas corridas, voltas e reviravoltas, esperando pelo senhor Fonseca que nos admoestava brandamente. Se alguém se atrever a molhar os pés antes de chegarmos para a próxima não vem. Essa terrível e risonha ameaça chegava e sobrava. Um bando de miúdos, chilreantes como pardais, avançando pela praia sob a batuta de um senhor de cabelo branco, sorridente que traz parte do peitilho do fato de banho para baixo. Ou seja, avança em transgressão. Felizmente que o cabo do mar, o senhor Ramalho, o conhece e finge que não vê o meio peito masculino, exibicionista e ilegal. Até os rapazinhos que somos, levam fatos de banho com peitilho. A lei é dura mas é a lei. O país dos brandos costumes correria um risco enorme se fossemos de tronco nu!
Anos depois, graças à pressão turística dos inícios de sessenta, já o passeio era em tronco nu. O dos homens, claro. O top less ficou para as filhas, melhor para as netas. O que não mudou foi o espanto da água, a carícia das ondas, os passeios à beira mar, os avisos dos pais, a falta de frio que a miudagem padece.
Olho em volta. A senhora do cão já se foi. Se calhar o bicho queixou-se do frio. Duas corajosas ocupam a mesma mesa. Olham para os petizes que, incansáveis, fintam as imaginárias ondas e mergulham. Não têm frio diz uma. Naquela idade o frio só começa quando se fica roxo. Rio-me. Elas ouvem, viram-se, e riem-se comigo. O Verão começou, digo. Muito devagarinho, responde uma delas. Para eles não, diz a outra. Concordamos em silêncio. Meia hora depois, acabado o jornal, levanto-me e cumprimento-as. Nunca nos vimos mas o Verão, mesmo com nevoeiro, tem destas coisas. Au
na gravura: Buarcos visto do viso ou talvez de "Palheiros" também conhecido por "a praia". As leitoras desculparão esta fraqueza mas este texto vai em memória de Luis Neves e de Teresa Estrela Esteves.
E para a Rosa, o Tané, a Nitucha, o Nélito, os manos Esteves, a Luisinha e mais uns quantos, ou seja, os da praia.
Os dias nublados têm vantagens incomparáveis. Mesmo se for domingo, como hoje. Não é preciso procurar lugar para estacionar o que já é um bom começo. No “Ferreira” (não, não se trata do nosso leitor e amigo, este Ferreira é o dono epónimo da esplanada onde leio o jornal logo que o calendário marca o fim do inverno) posso escolher a mesa tão raros são os fregueses hoje. E não está frio, notem. O sol é que brilha pela ausência. Há mesmo quem diga que o nevoeiro prega pequenas partidas, chegando a molhar brevemente os mais corajosos.
A praia está deserta, ou quase: um casal vestido e dois meninos pequenos que diante de nós começaram por molhar os pés, depois despiram-se e brincam dentro da água num recanto protegido por rochedos: dois enormes de cada lado e um punhado de pequenas rochas mais à frente. Ondas de dois ou três metros quebram fora desta espaço e enchem com a sua espuma a crista das rochas. Ondas que correm de longe, amarelas e ameaçadoras. Os garotos gritam falsamente alarmados e depois mergulham no palmo de água brincalhão em que a onda temível se transformou. E levantam-se em gargalhadas. Os pais sorriem. Da esplanada, sorrimos todos. Uma senhora francesa, com o cão ao colo, uma habituée do Ferreira, murmura para o cão que é uma vergonha para ele, ali no quentinho em vez de fazer a sua “petite baignade”... O cão não parece comover-se. Nem sequer rosna. Para ele o Verão ainda não começou.
O jornal, abandonado num canto da mesa, deixo-me embalar pelo espectáculo e lembro-me de uma outra época, noutra cidade, mais habitável. Éramos um grupo numeroso de meninas e meninos que iam crescendo juntos, Verão após Verão. Também nós desafiávamos os dias cinzentos, as marés vivas, a água fria. Em dias mais tempestuosos, o senhor Fonseca, padrinho da Rosa, tomava o comando das operações. Juntava a ranchada de miúdos e, ala que se faz tarde, para os rochedos de Buarcos. Um quilómetro bem comprido, feito de pequenas corridas, voltas e reviravoltas, esperando pelo senhor Fonseca que nos admoestava brandamente. Se alguém se atrever a molhar os pés antes de chegarmos para a próxima não vem. Essa terrível e risonha ameaça chegava e sobrava. Um bando de miúdos, chilreantes como pardais, avançando pela praia sob a batuta de um senhor de cabelo branco, sorridente que traz parte do peitilho do fato de banho para baixo. Ou seja, avança em transgressão. Felizmente que o cabo do mar, o senhor Ramalho, o conhece e finge que não vê o meio peito masculino, exibicionista e ilegal. Até os rapazinhos que somos, levam fatos de banho com peitilho. A lei é dura mas é a lei. O país dos brandos costumes correria um risco enorme se fossemos de tronco nu!
Anos depois, graças à pressão turística dos inícios de sessenta, já o passeio era em tronco nu. O dos homens, claro. O top less ficou para as filhas, melhor para as netas. O que não mudou foi o espanto da água, a carícia das ondas, os passeios à beira mar, os avisos dos pais, a falta de frio que a miudagem padece.
Olho em volta. A senhora do cão já se foi. Se calhar o bicho queixou-se do frio. Duas corajosas ocupam a mesma mesa. Olham para os petizes que, incansáveis, fintam as imaginárias ondas e mergulham. Não têm frio diz uma. Naquela idade o frio só começa quando se fica roxo. Rio-me. Elas ouvem, viram-se, e riem-se comigo. O Verão começou, digo. Muito devagarinho, responde uma delas. Para eles não, diz a outra. Concordamos em silêncio. Meia hora depois, acabado o jornal, levanto-me e cumprimento-as. Nunca nos vimos mas o Verão, mesmo com nevoeiro, tem destas coisas. Au
na gravura: Buarcos visto do viso ou talvez de "Palheiros" também conhecido por "a praia". As leitoras desculparão esta fraqueza mas este texto vai em memória de Luis Neves e de Teresa Estrela Esteves.
E para a Rosa, o Tané, a Nitucha, o Nélito, os manos Esteves, a Luisinha e mais uns quantos, ou seja, os da praia.
Sem comentários:
Enviar um comentário