05 julho 2007

Diário Político 55


“eles”

Por vezes olho para mim, ao espelho, no momento de fazer a barba (essa prerrogativa masculina tão em desuso hoje em dia em que fica bem uma barba de dois dias para nos dar aquele ar negligé que nem os nossos hábitos nem o nosso modo de estar na vida justificam minimamente) e pergunto-me em que país vivo. Pergunta ociosa, dirá alguém. Mas pergunta, de qualquer modo, digo eu. É que por muito que me expliquem esses politólogos que têm mesa posta nos jornais do costume para dizerem as coisas do costume pela retribuiçãozinha do costume, ainda não percebi porque é que temos este sistema de eleição de deputados.
Vejamos isto por partes: os partidos que existem por aí, de quatro em quatro anos organizam as suas listas de deputados, e apresentam-se virtuosamente ao eleitorado. O eleitorado vota distritalmente num número exagerado de cavalheiros de que só conhece a fidelidade partidárias e a meia dúzia de nomes que encabeça a lista.
Antes que alguém me reponte que nos distritos pequenos (V. Real, Bragança, Guarda, Beja, Castelo Branco, Évora ou V do Castelo) as listas são de tal modo exíguas que toda a gente conhece as personalidades(??!!) que as compõem, direi que isso sendo verdade, é perfeitamente insignificante. Dúzia e meia de deputados não riscam quando de facto as eleições se ganham ou perdem em Lisboa, Porto, Braga, Setúbal, Coimbra e Aveiro.
E é daqui que quero falar. Destes distritos onde se decide de facto quem vai governar. Alguém me explica o mistério dos deputados fantasma que, uma vez passada a eleição, se perdem na natureza, nos ministérios, nas administrações de organismos participados e num sem número de coisas que de comum com as anteriores só têm uma característica: acolher os fugitivos do parlamento.
Aliás, qual será o interesse de pespegar as pouco fotogénicas fotografias daqueles excelentíssimos candidatos por tudo o que é outdoor quando se sabe que, em termos de frequência parlamentar os cavalheiros vão rapidamente passar à clandestinidade.
Dir-se-ia que S Bento está infestada de piolhos, que anda por lá o fantasma de Canterville ou aqueloutro mais ameaçador de que o velho Marx falava. Em S. Bento aquela malta não põe os pés. Nem mortos. Não que eu queira ver os pais da pátria mortos, que ideia!, mas gostava de saber que mal lhes fez o Parlamento para que foram eleitos e onde não aparecem senão no dia em que se verificam os mandatos dos deputados. Depois, desandam e vão tratar da vida.
Convenhamos que o estimável público os vê partir com a maior das indiferenças. Para eles isto começa a ser normal.
Mas voltemos às nossas devoções: alguém de juízo acha que é a mesma coisa votar dois quarteirões de deputados em Lisboa ou apenas um por um circulo mais restrito. Veja-se mais de perto: O maior partido em época normal não acredita que em Lisboa (outra vez) consiga eleger mais de 20/25. Portanto tenta arranjar uma dezena de nomes fortes, outros tantos um pouco mais fracos e o resto é como um bodo aos pobres: entra a pequenada que vai à sede, às reuniões e que “dá o litro” pelo partido. Com uma pequena falha. Os nomes fortes só ali estão para dar cor. Uns, se o partido ganhar, irão para o governo. Outros terão de fazer o sacrifício de ir engrossar a administração de uma empresa onde se paga decentemente a presença destas conspícuas criaturas. Dois ou três cairão na asneira de ir para a assembleia, presidi-la, secretariá-la, presidir a uma comissão ou dirigir o grupo parlamentar. Alguém, solícito, conseguir-lhes-á uma “assessoria” pingue e pouco trabalhosa para arredondar a miséria do pré parlamentar. E garantir-lhes-á um bom emprego pouco trabalhoso mas bem pago, para depois.
Entretanto o parlamento fica com a composição normal: seis figuras mais ou menos cimeiras e dois centos de criaturas que têm por missão levantar o rabo e votar na hora necessária. Para isso, de facto, não há necessidade de tenores. Basta um coro de província. Afinado quanto baste.
Quer isto dizer que os círculos uninominais resolveriam esta crise de valores de que padece o parlamento? Não sei! Sei apenas que o actual sistema promove a mediocridade, o poder absoluto dos aparelhos partidários e a crescente apatia do público. Ao votar numa molhada de criaturas de que só conhece o cabeça de cartaz, ao saber que, se este for eleito, não desempenhará o cargo, o eleitor sente-se impotente e armadilhado. E enganado. Mesmo que não saiba dizê-lo com clareza, pensará confusamente que a hora que perdeu em ir até uma assembleia de voto, foi mesmo perdida. Pior começará a olhar para o repolhudo grupo de personalidades que gastam fundilhos no plenário e meias solas nos Passos Perdidos, como uma gente diferente dele, incapaz de fazer algo de útil mas ganhando por isso mesmo mais, bastante mais do que a média dos cidadãos.
Quando lê os jornais e vê que na maior parte dos países vizinhos as pessoas conhecem o seu deputado, chateiam-no com pedidos, ameaçam-no de abandono para a próxima eleição, o cidadão português enfurece-se. Quem é o seu deputado? Onde está se for necessário chamar a atenção para um problema, uma questão qualquer ou tão só para perceber o alcance de uma lei que o mesmo votou?
Insensivelmente, começa a olhar para os seus representantes como se olha para um astronauta americano, um artista de circo, enfim alguém diferente. E é aí que semanticamente estabelece a diferença entre nós, os que votam, os que mourejam, os que vêem diariamente cair-lhes em cima leis e impostos, decretos e taxas, resoluções de toda a ordem que o atingem, o empobrecem, o fazem duvidar dos benefícios da democracia e do sistema. E começa a falar d’ “Eles”. Os Outros. Os que mandam. Os que te pedem o voto e depois não dão mais sinal de vida até daqui a quatro anos.
Com algo ainda de pior: o cidadão elegeu “alhos” e S Bento está cheio de “bugalhos”. Quem é esta gente? Eu não os conheço de parte alguma... nunca os vi. Ou, se os vi, não lhes conheço mérito suficiente para sequer encher a sala nobre duma Câmara de Província em dia de reunião da Assembleia Municipal.
E a resposta começa a ser evidente: não vale a pena. “Eles” ganham sempre. A merda muda mas as moscas são sempre as mesmas. Ou vice-versa.
Tudo isto me vem à ideia agora que os jornais noticiam as conversações entre PPD e PS. Para começar já há pouco que discutir, uma vez que o segundo já deitou fora algumas das suas propostas. Estamos já na fase de saldos. A montanha arrisca-se a parir um rato. Um rato e não só: uma desilusão a juntar às que se vão sentindo dia a dia. “Eles” vão cozinhar qualquer coisa e o mexilhão (isto é, nós) vê o mar bater na rocha. Com as consequências que o resto, pouco elegante, desta expressão, indica.

pel'o mexilhão

d'Oliveira

razões de configuração do computador levam-me a pedir boleia para este texto ao colega de blog m.c.r.

4 comentários:

Informática do Direito disse...

Creio que põe muito bem a questão, meu caro.
Ponho-lhe aqui mais uma: o sistema de atribuição de mandatos baseado no método de Hondt.
Por estranho que pareça, pouca gente conhece realmente bem o que é esse tal método.
Eu também passei vários anos sem perceber, até que um dia, por dever de ofício, fui obrigado a fazer um apuramento eleitoral.
Fiquei realmente admirado.
O método de Hondt, baseado em divisões sucessivas, leva a que os últimos Deputados de um qualquer partido mais votado sejam eleitos com 5%, 10% dos votos que foram necessários para eleger, digamos, os primeiros 20 Deputados de cada bancada.
O resultado é que com 43 ou 44% dos votos, um partido tem a maioria absoluta dos Deputados.
Estranha aritmética esta, em que 43 ou 44% equivalem a 50% + 1.
Já ouvi alguém defender o sistema de Hondt com o argumento de que ele favorece a criação de governos estáveis de maioria, mas o argumento parece-me francamente fraco: se o voto popular não deu a maioria absoluta dos votos a nenhum partido porque raio de carga de água deverá o sistema eleitoral fazê-lo ?

d' Oliveira disse...

Por razões de indisponibildade tive de pedir ao MCR que me publicasse este post o que agradeço

JSC disse...

Concordo com a leitura que faz da nossa vida partidária e do peso do Parlamento. Também me parece que o metido de Hondt não é equitativo embora o mais usado nas democracias ocidentais. É óbvio o distanciamento entre os deputados eleitos e os eleitores que os elegeram. Todos parecem concordar que o actual sistema político-eleitoral está desacreditado. Mas em que é que isso incomoda os políticos? Eles sabem que vão continuar a ter o poder e a usar esse mesmo poder segundo o entendimento que fazem do serviço público ou das parcerias público-privadas. Por sua vez, como diz,
os politólogos que têm mesa posta nos jornais do costume continuarão dizerem as coisas do costume pela retribuiçãozinha do costume”.

Qual é a probabilidade de se alterar este estado de coisas? Muito baixa. É que a luta por integrar a tal lista que vai dar acesso ao parlamento começa na luta pelo poder do órgão concelhio de cada partido, que é ganha por quem influenciar meia dúzia de famílias ou pequenas associações culturais ou desportivas locais. Depois segue-se a luta pelo controlo da Distrital do partido e assim sucessivamente. O que pretendo ilustrar é que, em muitos casos, o sistema envolve o próprio povo que convive nessas associações ou grupos recreativos.

Ora, segindo a tendência actual, cada vez menos os governos governarão para toda a população. Se Trás-os-Montes ou o Alentejo tivessem peso eleitoral os governos teriam que se ocupar dessa gente. Como não têm peso eleitoral as políticas seguidas a nível central farão com que percam cada vez mais população que foge para o litoral, onde encontra os equipamentos de saúde e outros que faltam nas suas terras.

Algum eleitor do Porto, Lisboa ou de Braga vai penalizar o governo porque este fechou, por hipótese, a maternidade em Bragança ou o Centro de Saúde em Elvas ou porque fechou uma escola em Cinfães e os alunos foram transferidos para um contentor a 7 ou 8 KM? Penso bem que não.

Mas como é que mexendo no sistema eleitoral se pode alterar esta realidade?

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Concordo plenamente com as observações feitas. Há que fazer alguma coisa para vincular de modo efectivo o compromisso dos deputados eleitos perante os seus eleitores. Não sei, contudo, se os círculos uninominais, por si só, trazem mais vantagens ou inconvenientes. É que poderemos cair facilmente numa vertente populista, tão visível nos nossos meios autárquicos.
Como mero exemplo, posso dizer que reside no meu prédio um deputado da Nação e eu não faço a mais pequena ideia do seu trabalho e do seu envolvimento na resolução dos problemas da minha cidade ou até da minha freguesia!
Mas devo dizer que não é só o nosso parlamento que merece ser questionado. Na semana passada assisti a uma sessão plenária do Parlamento Europeu, com as presenças de Durão Barroso e Angela Merkel, e a sala só contava para aí com metade dos eurodeputados.