19 março 2005

DISCURSO SOBRE A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA DOS HOMENS *

-excertos

por Etienne de La Boétie (1530-1563)

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No momento, gostaria apenas que me fizessem compreender como é possível que tantos homens, tantas cidades, tantas nações às vezes suportem tudo de um Tirano só, que tem apenas o poderia que lhe dão, que não tem o poder de prejudicá-los senão enquanto aceitam suportá-lo, e que não poderia fazer-lhes mal algum se não preferissem, a contradize-lo, suportar tudo dele.

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Tal entretanto é a fraqueza dos homens! Forçados à obediência, forçados a contemporizar, divididos entre si, nem sempre podem ser os mais fortes. Portanto, se uma nação, escravizada pela força das armas, é submetida ao poder de um só (como foi a cidade de Atenas à dominação dos trinta tiranos), não é de se espantar que ela sirva, mas de se deplorar sua servidão, ou melhor, nem espantar-se nem lamentar-se: suportar o infortúnio com resignação e reservar-se para uma ocasião melhor no futuro.
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Em primeiro lugar creio não haver dúvida de que, se vivêssemos com que os direitos que recebemos da natureza e segundo os preceitos que ela ensina, seríamos naturalmente submissos a nossos pais, súditos da razão, mas escravos de ninguém. Quanto a saber se em nós a razão é inata ou não (questão debatida a fundo nas academias e longamente agitada nas escolas de filósofos), penso não errar, ao acreditar que em nossa alma existe um germe de razão que, reanimado pelos bons conselhos e bons exemplo, produz em nós a virtude: ao contrário, esse mesmo germe aborta abafado pelos vícios que muitas vezes advém.

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Numa só coisa, estranhamente, a natureza se recusa a dar aos homens um desejo forte. Trata-se da liberdade, um bem tão grande e tão aprazível que, perdida ela, não há mal que não sobrevenha e até os próprios bens que lhe sobrevivam perdem todo o seu gosto e sabor, corrompidos pela servidão.
A liberdade é a única coisa que os homens não desejam; e isso por nenhuma outra razão (julgo eu) senão a de que lhes basta desejá-la para a possuírem; como se recusassem conquistá-la por ela ser tão simples de obter.

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Tomai a resolução de não mais servirdes e sereis livres.
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A verdade é que o tirano nunca é amado nem ama.
A amizade é uma palavra sagrada, é uma coisa santa e só pode existir entre pessoas de bem, só se mantém quando há estima mútua; conserva-se não tanto pelos benefícios quanto por uma vida de bondade.O que dá ao amigo a certeza de contar com o amigo é o conhecimento que tem da sua integridade, a forma como corresponde à sua amizade, o seu bom feitio, a fé e a constância.
Não cabe amizade onde há crueldade, onde há deslealdade, onde há injustiça. Quando os maus se reúnem, fazem-no para conspirar, não para travarem amizade. Apóiam-se uns aos outros, mas temem-se reciprocamente. Não são amigos, são cúmplices.
Ainda que assim não fosse, havia de ser sempre difícil achar num tirano um amor firme. É que, estando ele acima de todos e não tendo companheiros, situa-se para lá de todas as raias da amizade, a qual tem seu alvo na equidade, não aceita a superioridade, antes quer que todos sejam iguais.

* o texto completo do Discurso pode ser lido, entre outros locais (está editado em Portugal por ed.Antígona) - em http://www.geocities.com/Athens/Column/8413/servidao.html

6 comentários:

Primo de Amarante disse...

Temos gostos semelhantes. Já em tempos fiz referência a La Boétie. Tenho a 2ª edição (1997) do "Discurso sobre a servidão voluntária". Para alem de me ajudar a compreender o Maquiavel, ajudou-me a compreender muitos "bem-amados" do nosso tempo, como Ferreira Torres, João Jardim, Filipe Meneses e outros.

Primo de Amarante disse...

Já, agora, é interessante comparar o texto de La Boétie com um outro de E.Kantorowicz sobre "morrer pela pátria no pensamento político medieval". No meu ponto de vista, a Idade Média tem, paradoxalmente, muito a ver com o nosso tempo, sobretudo com duas expressões políticas (irracionais, de certa forma)que hoje são dominantes: a demagogia populista e o terrorismo. Há um texto de Charles S. Peirce "Fixação da crença" (in: Antologia Filosófica, Imprensa Casa da Moeda) á luz do qual se percebe o funcionamento dum princípio da tenacidade nesse "irracionalismo".

Primo de Amarante disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Amélia disse...

Está a ser demorado colocar um comentário...e ontem nem comsegui...
Compadre: não conheço esses textos que refere.Onde poderia eu encontrá-los?

Primo de Amarante disse...

O texto "Morrer pela Pátria" de E.Kantorowiez foi publicado por "Edições João Sá da Costa Lisboa". Sobre a "Fixação da crença" de Charles S. Peirce é um capítulo da obra "Antologia Filosófica", publicada pela Imprensa Casa da Moeda

Silvia Chueire disse...

Está mesmo complicado comentar.Obrigada, Amélia, pelo texto que nos deu a ler e pensar.

Beijos,
Silvia