31 dezembro 2006

2007

Que 2007 seja um ano de encontros, de diálogo, de valorização da vida e dos afetos. Um ano de PAZ !

Meu abraço carinhoso a todos,

Silvia

Diário Político 37

Noite tranquila em casa
Antes fosse em Clichy, para celebrar de uma penada o Miller, leitura obrigatória e grata, e um par de amigos parisienses. Há largos anos que não passava a noite de fim de ano em casa, num mano a mano com a Crazy Grazy, sozinhos e descansados enquanto lá fora faz um grisu horrível. Mas aconteceu e está a ser bom. A C.G. andou a fazer uns exames complicados aos interiores e não estava para grandes saídas. Ai eu, quero é descanso anunciou, e foi fazer arroz doce. A Luísa Feijó ainda telefonou a sugerir um jantarinho com com a Teresa e o Rui (Feijós) e a Manuela Bacelar, mas nada demoveu a CG. De casa não saio! Pronto, pronto, não há crise, ficamos chez nous, qual é problema? E ficámos. A CG entretanto sempre por via das sequelas dos exames médicos já feitos, avisou que se eu queria jantar que me amanhasse. Isto em tom de desafio mas o que ela sabe já a mim me esqueceu...
Há dias, temendo um fim de ano difícil, tinha comprado uma tábua de patés e outra de queijos para o que desse e viesse. Se lhes juntássemos pão fresco e um Porca de Murça, reserva de 2001, tinhamos um jantarinho vagamente parisiense sobretudo se o fizéssemos diante de um programa de variedades da TV5. Nós nunca comemos de televisão acesa, mas isto era mais um picnic do que um jantar de festa pelo que a televisão foi convidada.
Querem saber que se comeu bem? Pois comeu-se muito bem, os queijos eram decentes, um deles mesmo excelente e os patés na proporção de 2 para um eram dignos de qualquer mesa.
E o arroz doce, ai o arroz doce...
Duas pessoas que gostam uma da outra são uma companhia enorme. E é por isso que o meu postal de fim de ano é este: a dois também se passa bem a noite.
Que para todos vós isto seja igualmente verdadeiro, no ano que daqui a momentos vai começar. A dois, o mundo é nosso e a vida também.

Au Bonheur des Dames 45

A escalada do Carmo e do Chiado maila rua da Misericórdia
por duas velhas senhoras cheias de apetite

A gula é um feio pecado, ou pelo menos era isso o que dizia o monsenhor Palrinhas padre titular da Igreja de S. Julião, ali para as bandas da Figueira da Foz, igreja antiga mas que não conserva traços dos séculos obscuros em que terá sido erguida. Este monsenhor Palrinhas palrava que se fartava tinha sermões mais compridos que a espada de D Afonso Henriques e mais chatos do que o Nanaia. Convém não avançar mais um passo sem explicar aos que não tiveram a sorte de nascer entre a foz do Mondego e a serra da Boa Viagem quem é este Nanaia que já várias vezes terei citado. Ora bem: a falar verdade não sei bem. A expressão é figueirense, claro e referiria um cavalheiro chato, chatíssimo, digno de figurar no “Tratado Geral dos Chatos” (Guilherme de Figueiredo, Ed. Civilização Brasileira, s.a., 1963, 3ª ed., 1963 exemplar 1679!) e pelo que me foi dado saber deveria caber na categoria chato agressivo polémico (pp. 66 op. cit). Na Figueira terra de prodígios ainda que não tão abundantes como em Buarcos, os chatos há anos que tentam bater este record e conseguir que o seu nome sirva de medida e termo de comparação mas a verdade é que o Nanaia permanece impertérrito!
Portanto, monsenhor Palrinhas e a sua loooonga looonguissimaaa condenação dos sete pecados capitais, de todos os veniais, das virtude teologais e de outras coisas que tais. A gula, o simples apetite, porventura, assumiam a seus olhos foros de escândalo imenso.
As duas velhas senhoras invocadas no título são a Mãe e a tia Néné que agora, depois dos oitenta, atingiram a honra de serem referidas no melhor inglês que a prima Maria Manuel (licenciada em românicas....) conseguiu: as “old ladies”!
Em tempos que lá vão eram duas belas mulheres que atraíram muito e cobiçoso olhar no “Casino Peninsular”, elegantes e magras, coisa que o tempo modificou: agora têm charme e encanto das coisas antigas. A tia Néné ainda é mais magra, enquanto a Mãe, porventura mais conhecedora da vida, engordou uns quilos e nos intervalos de uma extraordinária dieta que ela segue por motivos de saúde (ou melhor pelo que ela entende como motivos de saúde) come-lhe bem, para castigar a carne, fazer baixar os humores fleumáticos, abater os biliosos e os coléricos, e melhorar os outros cujo nome ignoro.
Ora, para festejar a época natalícia, entendeu esta sábia senhora, aproveitar uma das minhas idas a Lisboa para ir conhecer de visu o restaurante Tavares na sua renovada forma. Melhor dizendo, numa das suas extensas leituras (ela lê tudo o que apanha ao alcance...) deu com um artigo que louvava a excelências da sala de cima do Tavares onde se comeriam uns mimos por preços não excessivamente excessivos. A descrição de algumas iguarias lá lhe despertou o palato e resolveu, em consequência, abrir uma das suas habituais e semanais excepções à dieta, para ir conhecer esse prodígio da gastronomia. E já agora leva-se a magra, disse-me, referindo-se à irmã mais nova e o Quim, outro irmão mais novo ainda. E a Maria Manuel. acrescentei Claro, respondeu-me a excelente senhora e até pode trazer o Eduardo, parece que está doente, deve comer pouco e como não bebe, nem pesa na conta. Admirei, ao mesmo tempo, a generosidade da mater famílias e o seu sempre presente sentido da economia.
Decidimos (isto é ela decidiu e eu ouvi), em consequência, atacar o Tavares num sábado, aliás no sábado véspera de Natal. Alertaram-se os parentes, combinou-se encontro na Suíça (em tempos já não muito recentes, a Mãe tinha uma espécie de base numa outra pastelaria da baixa, mesmo ao lado do elevador de Santa Justa. Entretanto os novos tempos suscitaram nos antigos proprietários o desejo louco de enriquecer pelo que de velha e esplêndida sala de chá aquilo transformou-se numa coisa horrenda de pronto a comer e o bando de velhas, velhíssimas mães e tias foi enxotado para outras paragens.
A reunião familiar iniciou-se bastante cedo porque a tia Nené e a Mãe teriam muito que falar enquanto nós (o tio quim a prima Maria Manuel e o escriba) iriam dar uma volta pelas livrarias e mesmo pela feira de alfarrabistas da rua Anchieta.
Quando regressámos à base, as duas old ladies apresentavam já vagos sinais de impaciência para não dizer fome. Vou buscar o carro, declarei, um pouco para me safar e muito por achar que Carmo, Chiado e meia rua da Misericórdia era subida demasiada para duas anciãs que somam mais de 160 anos. Que não, ripostaram as duas atletas! Que isso até lhes dava oportunidade para criar apetite. Que elas, a rua do Carmo, o Chiado e a Misericórdia era terra conhecida e batida... A prima Maria Manuel abundava no mesmo sentido: que viera a pedibus calcantibus desde as alturas da Graça com a mãe, a tia Néné, e que aquilo tinha sido uma corridinha... O tio Quim, esse, pensava mais no que iria comer e beber no Tavares, do que nas pernas das manas, isto de ser irmão mais novo, tem destas coisas, ai elas aguentam-se, estão ali para as curvas etc e tal.
E começou a escalada. Para meu espanto, as duas Senhoras treparam o Carmo enquanto o diabo esfregou o olho esquerdo. Animosas e decididas ainda tiveram tempo para deplorar o fim de grandes lojas tradicionais, ai o Martins & Costa, murmurou a Mãe, e neste ai ia um desgosto infinito pelo menos igual ao da recordação das ostras que eu comprava parta levar para cadsa do Zé Campelo e da Alda Rodrigues, e a luvaria disse a tia Néné estará igual? E nesta desconfiança da requintada tia que em luvas foi sempre inflexível, era todo um século que espreitava. E o David & Monteiro, resmunguei eu, raios parta a má sorte!. E arribámos ao Chiado, onde sempre choro pela leitaria Garrett, minha e do Vitorino ou vice-versa, que mal faz, somos amigos há tantos anos... arrisquei uma mirada para as duas old ladies mas fiquei espantado e tranquilo: subiam a ladeira com ar decidido. Corria-lhes nas veias sangue antigo, sangue de quem há oitocentos anos conquistara Lisboa aos pobres mouros que não estavam definitivamente preparados para mulheres que prefiguravam a padeira de Aljubarrota. E entrámos em acelerado na rua da Misericórdia, à vista do Tavares, do meu contentamento de tantos anos, que saudades do Fernando, magnífico restaurateur e do Miguel Magalhães ou do Zé Luís Nunes companheiros e comensais de tantos anos. Prometi-lhes, in immo pectore, que comeria pelos três, ainda por cima era a mater augusta quem corria com os maravedis!
Tavares, uma da tarde, 24 de Dezembro: fechado, definitivamente fechado, sab e-se lá porquê, se calhar pensam que a manhã de 24 é para ir à missa, fazer jejum e cobrir a cabeça de cinza, fortes sacanas! E pela rua acima era um rosário de casa fechadas, feias e inamistosas. Raios parta a sorte. Logo hoje que a Mãe estava com disposição de abrir os cordões à bolsa.
Acabamos na adega de S Roque onde nem se comeu mal mas definitivamente tristes. As duas senhoras que tinham escalado o Himalaia na esperança de um entrecot a la bordelaise a la sauce de chalottes contentaram-se com joaquinzinhos com arroz de feijão e exigiram para o regresso transporte motorizado sem sequer atyenderem ao argumento de que agora era só a descer.
Salvou-se apenas a frase memorável da Mãe: não foi desta será da próxima!
E com esta sentença digna de menção em qualquer manual de história pátria, aviso e comentário seco sobre as vicissitudes do horário dos restaurantes, termina esta crónica que vai toda para dois descobertos leitores que muito me honram como, aliás todos os outros que me aturam. Refiro com um forte abraço o Rui Namorado e o Manuel António Pina. Eles sabem que os li, leio e lerei sempre com prazer e inveja. Ao desejar-lhes um bom 2007 faço-os portadores do mesmo voto para todas e todos quantos me aturam.

O bonheur 44 segue-se ao 45. Afinal, o que é um número perguntaria Shakespeare numa outra versão do Romeu e Julieta? Uma convenção, caríssimo Bill, uma mera convenção. Um erro detectado pelo Manuel Sousa Pereira que agora tento remediar. O próximo “bonheur” terá o número 46 e tudo entrará na ordem. Aliás esta desordem numérica, anárquica atrever-me-ia, dá um certo sal a estas descosidas prosas.

29 dezembro 2006

Au Bonheur des Dames 44

Canção de embalar para o Pedro acabado de nascer

Isto, Pedro, em boa verdade, havia de ser em verso, pronto a cantar mas, que queres?, não me sai pelo que terás de te contentar com uma prosa pobre mas sincera e fingir que a ouves como uma cantiga. O teu avô, dúbia personagem que irás aprender a conhecer, telefonou-me há pouco contente como nem calculas, ultrapassando a tua avó que tentava apanhar a Doris mas que perdeu nessa corrida por uma miserável meia cabeça. Se eu fosse simpático diria que eles empataram mas, como diziam uns cavalheiros antigos e romanos “amicus Cato sed veritas” ou seja amigo de Catão mas mais ainda da verdade. Portanto o teu avô ganhou a batalha da informação coisa que irá pagar amargamente durante as próximas semanas. Aprende, meu querido, esta primeira lição: com as mulheres perde-se sempre ou, pelo menos, deve fazer-se por isso.
Dirás que com um simples dia de idade (e nem um dia é...) talvez seja cedo para receberes uma carta. É verdade mas isto tem uma explicação: há muitos anos, escrevi uma carta ao David primeiro filho da prima Maria Manuel quando ele teria quinze dias três semanas, vá lá um mês... O Manuelzinho, teu avô ficou de monco caído porque eu nunca tinha escrito ao teu pai. Prometi-lhe com a solenidade que meia dúzia de cervejas dá que alguma vez repararia tal falta. Esta é a razão primeira (mas não a única) desta carta. Porque há outras, Pedro, e muitas. À uma eu sou amigo do teu Pai. Vi-o nascer, quase que o vi ser concebido (Jesus que festim bárbaro!) vi-o crescer, dei-lhe carolos e um canivete suíço quando tinha sete anos (e a tua avó num susto, ai que o menino se corta. Qual corta qual quê, respondi-lhe e expliquei-lhe que com o canivete e os sete anos ele passava de menino a rapaz e que um rapaz não se corta. E não se cortou! O que prova a bondade da minha tese e a profundidade da minha ciência educativa.), ensinei-o a jogar poker de dados, a dizer alguns palavrões decentes, a mergulhar de cabeça no rio e mais um par de coisas que a seu tempo (se as Parcas me permitirem) te direi.
Não tenciono ir visitar-te ao hospital. As crianças, Pedro, quando nascem parecem-se, para pior, com os frangos de aviário expostos nos supermercados. Já sei que a tua avó e o teu avô te acham a criança mais linda da criação mas els são avós e ceguinhos pelo que se lhes perdoa o exagero. Vou deixar que cresças, tomes corpo e cor para te poder pegar como se pega num bebé.
Agora que estamos conversados quanto ao social, vamos ao que interessa. Acabas de herdar (do teu Pai) o lugar direito traseiro do meu carro. Poderás, querendo, trazer os teus pais que no entanto viajarão sempre classificados como bagagem não acompanhada. O tu avô irá pelos seus próprios meios ou de skate atado ao carro. Dentro não há espaço como verás logo que puderes ver. O homem é imenso, gordo, redondo como um tamanco, não cabe em sítio nenhum. Só de reboque. E é uma sorte.
Quando tiveres a idade adequada, e se eu viver, ensinar-te-ei um par de coisas. Quando souberes ler emprestar-te-ei com muito gosto a minha colecção de banda desenhada especial (a quem alguns espíritos mal informados chamam erótica. O teu pai leu-a e está aí que se pode ver: um magistrado de primeira, sem traumas, sem pecados escondidos, olhando a vida sem medo, sem vergonha e sem pecado. O que é bom para o pai há-de ser bom para o filho.)
Nasces precipitadamente em 2006 quando só te esperávamos lá mais para Janeiro. Compreendo a pressa mas desculparás que te diga que meteste o pé na argola. Nascer a poucos dias do Natal significará confusão de prendas de Natal e anos. Mau negócio, Pedro! Precipitação, filho, muita precipitação. De todo o modo vens em boa altura, pelo menos para mim que acabo de perder dois amigos velhos de quarenta anos, provavelmente já meios imprestáveis mas de quem eu gostava bastante. Vens pois substituí-los o que é, já te digo, uma forte responsabilidade. Mas acho que estarás à altura. Vens de boa cepa, tiveste um bisavô guerrilheiro em Espanha, uma avó passadora de clandestinos pela fronteira, outro bisavô jogador de poker aberto e apreciador do belo sexo, enfim, tens à volta do teu berço um par de jarretas, vários até, desde o Álvaro caçador de perdizes ao Manuel Sousa Pereira impenitente escultor e mulherengo até dizer basta (se é que ele ouve tal coisa, surdo como está e vicioso como sempre foi), o Carlinhos Cal Brandão (cala-te boca!) e mais meia dúzia de babados adult(er)os que espero te ensinarão o que a mim já me esqueceu.
Desejo-te portanto a aventura, o risco, o trapézio sem rede, o amor louco (e que não seja pouco!), a alegria, a fruta roubada verde na árvore, a gargalhada forte numa rua de Paris, as raparigas saudáveis e loiras de Berlin e Amsterdão e o pecado sofisticado de Roma.
Entra, meu filho, na casa dos homens, com as suas grandezas e as suas misérias, sê bem-vindo e vê se aprendes a jogar bridge que há grande falta de parceiros.
Teu amigo,
Marcelo
PS a Joana e o João Simas estão de parabens. O mesmo se diga dos avós Laurinda e Manel. E dos amigos de há tantos anos que esperam agora um banquete celebrativo para apresentar o recém vindo à sociedade. Sem banquete não há criança mas apenas uma suspeita. Desaperta os cordões à bolsa, Manekas. Um neto é um neto, um neto, um neto.

28 dezembro 2006

estes dias que passam (Zé Bandeira)

E agora o Zé Bandeira…

O nome dirá pouco á maioria dos leitores. José Gomes Bandeira. Jornalista. Reformado. 69 anos e tantas coisas para fazer. Coisas que já não fará. Como o livro que se preparava para escrever depois de anos de pesquisa. E de provas, acrescentarei. Um livro sobre vinhos. Melhor sobre o vinho. Com a minúcia excessiva, a meticulosidade que ele punha em tudo que fazia. Que fazia bem, convém acrescentar.
O Zé Bandeira era muito nosso, muito deste velho grupo de raparigas e rapazes que envelheceram comigo, que estiveram em todas comigo. Por isso esta “furtiva lágrima”, este olhar espantado, este remorso de continuar vivo. Como se o facto de estarmos vivos lhe fosse, a ele, ao Zé, algo de monstruoso. Nada disso! O que de certeza o Zé não quereria era este sentimento. O Zé fazia parte desse grupo de pessoas que não quer que a morte doa aos outros mais do que o necessário. E que esse necessário seja pouco. Parco. Como ele era consigo próprio: ensimesmado, secretamente habitado por amores que raramente irrompiam para lá daquele olhar doce, daquele meio sorriso que o iluminava, daquele “sócio” que ele chamava a torto e a direito aos amigos, às mulheres que amou, eventualmente à filha, sei lá.
Eu não quero fazer aqui a apologia da minha geração. Bastos erros carregamos às costas para de momento converter tudo isso num fogo de artifício que no breve instante em que sulcam a noite nos faça melhores ou maiores do fomos e somos. Todavia, também não posso deixar de “olhar para trás angustiosamente” e esquecer um percurso marcado pelo entusiasmo, pelas causas em que acreditámos, pelos combates que travámos. E o Zé Bandeira, até onde me lembro, esteve em todas. Começou por apanhar com guerra a dobrar, anos de sobrevivência no capim alto, nas colunas emboscadas, na morte repentina, no tiro furtivo do guerrilheiro. Regressou a Coimbra para retomar o curso de direito e reaprender a viver. E reaprendeu a nosso lado, fraterno, enquanto ia fazendo as cadeiras que lhe faltavam naquele especial sistema de exames a que anos de(masiados) guerra lhe davam direito. Pelo meio enchia-se de cinema, paixão e devoção de que daria provas mais tarde como jornalista e como critico de cinema. Quando foi preciso, naturalmente que apareceu, conspirou, aconselhou e viveu as loucas esperanças dos anos de crise académica.
Foi do grupo inicial da “Centelha”, editora com a qual quisemos “incendiar toda a pradaria”. Fez parte do “conge” palavra esquisita para significar o alargado grupo que dirigiu a crise de 69 e os dias subsequentes em Coimbra. E que, mesmo depois de formados e dispersos por esse país nosso que nos doía, continuou. O Zé veio para o Porto, claro, como muitos dessa geração, e aqui começou a trabalhar como jornalista. O Direito dizia-lhe pouco e o diploma deve ter sido para ele uma inutilidade que se carrega porque é um presente da família. O Zé gostava de escrever, era curioso, culto e por isso mesmo um bom jornalista. Escreveu milhares de páginas, como devia, mas para nós, que o líamos, percebia-se que, por ele, nunca teria saído da temática cultural. Do cinema, sobretudo. Com tudo isso é evidente que andou pelos cineclubes a pregar a boa palavra, o gosto pelo cinema, a análise limpa e clara de quem não precisava de usar palavras esquisitas para dizer se uma fita era boa ou má. Nos preâmbulos do 25 de Abril aí estava ele. Primeiro balcão para não dizer que também dava uma perninha àquele filme de que fomos não direi actores mas seguramente figurantes. Figurantes que tinham lido o argumento e o tinham achado interessante ao ponto de se oferecerem para o que fosse preciso. Depois como quase todo o nosso grupo, entrou no MES do Porto, discutiu, conspirou e saiu como nós. Pela esquerda baixa e cabisbaixos. E continuou, com a sua gente, a sua tribo, os seus camaradas a que ele chamava sócios, sibilando um pouco como bom beirão que era. Envelheceu como nós todos, sem surpresa nem arrependimento. Melancolicamente, talvez, mas isso vinha-lhe de nascença, como o meio sorriso e o olhar míope e doce. E a teimosia que sempre o habitou. E o nervoso miudinho que nem sequer disfarçava. Até hoje. Até um AVC extenso como um filme de Syberberg o liquidar em meia dúzia de horas. The end.
Para trás ficam umas dúzias de amigos de toda a vida, a Lionida, uma filha que era o orgulho dele, um livro por acabar. E milhares de páginas narrando o efémero, perdidas numa qualquer hemeroteca onde alguém habitado pelo fogo do cinema as irá desencantar para escrever a história do modo como víamos cinema nos anos da cólera.
Ponhamos que o Zé não morreu, simplesmente entrou pelo ecrã de um qualquer cinema de bairro e tomou a yellow brick road no fim da qual entre fundidos e encadeados encontrará Fellini, Renoir, Ford, Murnau, Griffith e os outros. Adorava saber o que ele lhes vai dizer!

Vai esta para os amigos e companheiros de uma jornada começada em Coimbra nos anos sessenta e continuada até hoje mesmo que estejamos demasiadamente espalhados. Ó malta temos que nos encontrar mais vezes sem ter que ir a um cemitério.

26 dezembro 2006

Estes dias que passam (Zé Loureiro)

Zé Loureiro
Faz mais de quarenta e dois anos! Uma vida. Ou quase. No caso presente é uma vida mesmo. Pela simples e definitiva razão que encontrou a morte.
Foi há minutos que a Maria Manuel me interrompeu uma conversa telefónica com a minha mãe. Para me dizer que o Zé Leal Loureiro morrera. O Eduardo, depois, deu-me mais alguns pormenores. Morrera com um ataque de coração enquanto dormia a sesta. Valha-nos isso, pelo menos. Morte súbita, sem anúncio nem sofrimento.
Por um momento, um largo momento, nem soube o que dizer. A gente agora via-se pouco, muito pouco mesmo. Direi que a última vez foi quando se anunciou que ele ia tomar conta da “Buchholz”... Ou seja dois anos bem contados. Curiosamente só nos encontrámos porque eu ouvi uma voz conhecida: a dele. Resmungava ao telefone porque não conseguia encontrar um quiosque aberto na zona onde vivo. Domingo portanto. Procurei o dono da voz e, claro, era ele.
Isto com o Zé Leal era já tradição. Um dia, aliás o dia 1 de Outubro de 1971, a João e eu saímos do Goethe Institut de Berlim onde tínhamos acabado de confirmar a matrícula. Descemos uns metros da Knesebeckstr. E entrámos na Kurfurstendamm em direcção a um pequeno hotel onde tínhamos dormido a primeira noite da nossa estadia em Berlin.
A meio caminho, vimos, e isto não é uma imagem nem sequer um truque, vir um jornal “le monde” aberto com umas pernas e as pontas de um cachecol de lado.
Não sou pessoa de pressentimentos, sequer propensa a adivinhar mas naquele dia, virei-me para a João e disse-lhe que se não soubéssemos que o Zé vivia em Paris, aquela pessoa de que só se viam as pernas poderia ser ele. Porquê? Não sei agora como não sabia daquela vez. Mas era o Zé, diabos me levem. Acabara um período no Goethe e ainda se demoraria em Berlin por mais umas duas ou três semanas.
Aquele encontro foi precioso. Nesse mesmo dia conhecemos várias pessoas amigas do Zé, ficámos com dicas óptimas sobre a cidade, sobre o nosso “Studentenheim” que uma das namoradas do Zé (ele tinha duas, irmãs ainda por cima e desconhecendo a relação do Zé com a outra, claro) qualificava de “Gefängnis” e sobre um par de restaurantes baratos, bons e servindo comida abundante.
O Zé de facto era vizinho da João, desde pequeno. E apesar de mais novo ia muito lá a casa, podendo mesmo dizer-se que as suas primeiras leituras proibidas ocorreram na hospitaleira casa da Alcinda e do Jorge Delgado. Não se pode dizer que o Zé tenha tido um mau professor na pessoa do Jorge Delgado. Antes pelo contrário. E foi aí que em 64 o conheci. Um miúdo inteligente, extremamente curioso e desesperado por ainda andar no liceu.
Depois fomo-nos cruzando por aí. Até que ele decidiu ir para Paris. Onde, claro, o encontrámos embora de modo menos romântico do que em Berlin. Nessa altura descobri, espantado e divertido uma livraria que o Zé frequentava na rue de Medicis, “L’Impensé Radical”. Nessa altura finais de 60 e princípios de 70, a livraria dedicava-se a literatura sobre jogos, a Freud e a mais um par de coisas relativamente fora do vulgar. De lá trouxe os meus jogos desde o “Go” e respectiva literatura toda editada pelo “impensé...” até ao “Djambi” e ao “jogo dos três reinos”. De há muito a esta parte que deixei de ter parceiros. A livraria também já não existe (acho que em seu lugar há uma livraria espírita) e o livreiro e editor, um grego exilado e culto também há muito que desapareceu. Terá voltado ao pais natal agora que está sem coronéis.
Depois durante a segunda metade dos anos setenta fui encontrando o Zé já instalado em Lisboa e dedicado à edição. E havemos de convir que sabia escolher livros. Mesmo que no capítulo negócios tivesse sempre apostado mal. Mas agora, que interessa?
Depois fomo-nos encontrando por aí. Uma das vezes apareceu-me na delegação do ministério da cultura por causa de um prémio de arquitectura que uma empresa que ele representava resolvera atribuir. Se não estou em erro foi por causa de um edifício do Eduardo Souto de Moura que nós (o Rui Feijó e eu) tínhamos conseguido convencer as autoridades a fazer depois de o projecto ter ganho limpamente o concurso. Anos de guerra, de propostas, de empenhos, de argumentos, de insistências. Até que Coimbra Martins pronunciou o fatal sim. Depois como é costume foi outro a inaugurá-lo. Demorou anos mas aí está: é a Casa das Artes (nome imbecil!) e foi o primeiro edifício significativo do seu autor. A empresa que o Zé representava (seria a Secil?) atribuiu o prémio a essa casa.
Nessa altura o Zé já tinha um bojo impressionante bem diferente do rapazinho entusiasta de quinze anos antes. Mas conservava o gosto seguro e a mim recordava-me anos felizes e aventurosos.
Agora acabou-se. Durante o sono, o coração traiçoeiro desforrou-se de anos de maus tratos. Agora já não discutiremos de novo quando nos encontrarmos. Eu não lhe direi algumas violências e ele não me chamará idealista envelhecido e petrificado. A revolução que ambos amámos também não parece de boa saúde. Como o coração do Zé. O coração que parou à tardinha durante a sesta.


Erbarmt euch des Todes
Menschen erbarmt euch
Rettet die Chance euch zu sterben
zumindest.

Nota: final de um poema de Wolf Biermann in Die Drahtharfe (tenham piedade da morte, homens tenham piedade da morte. Salvem pelo menos a possibilidade de morrer.

24 dezembro 2006

O Natal, por António Gedeão

Dia de Natal

Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros – coitadinhos – nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)

Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra – louvado seja o Senhor! – o que nunca tinha pensado comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.

Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.

Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.


António Gedeão

(in "Máquina de Fogo", 1961; "Poesias Completas", 1968)

22 dezembro 2006

Boas Festas

Este que se assina e que tem andado ausente destas paragens - mas isso em Janeiro há-de melhorar - não podia deixar de vir aqui assinalar que amanhã, dia 23 de Dezembro, se completam dois anos de convivência aqui no Incursões. Um tempo que me permitiu conhecer pessoas muito interessantes, fazer novos amigos e com eles aprender.

Aproveito o ensejo para fazer votos de Feliz Natal e desejar um Grande 2007 a todos.

Diário Político 36

Natal de emigrantes com sol e coqueiros


Em 1954 o Natal passou-se numa terra estranha onde chegáramos há cerca de nove meses. Pior ainda: fazia um calor de verão africano, entremeado pelas súbitas e torrenciais chuvas que deixam depois um ar muito limpo e novo e um cheiro intenso à terra molhada e primeva. À terra pisada pela Lucy (in the sky with diamonds? Vá-se lá saber...), à terra do Tarzan, à terra de Kurtz, essa terra que o Veloso amigo pisou em desatada correria.
Chegáramos, disse, os quatro, o pai, a mãe e o mano Octávio. E como a casa que nos estava destinada ainda não estava pronta, estivemos vários meses acampados, é um modo de dizer, na pensão Estoril ali à 24 de Julho. E coincidência, daí só saímos em vésperas de Natal. Terra nova, casa nova, mundo novo. E nós despaísados, perdidos sem a referencia dos frios, da família numerosa, cordial e quentinha, nós para ali (eu ia escrever práli que me parecia mais compatível mas já basta o keres em vez de queres, nov-lingua bastarda que deita fora o q de cauda tão bonitinho, quase um g mas sem o dengue da voltinha, de modo que honrada mas melancolicamente escrevi certinho. Ah o gramaticalmente correcto às vezes é mais chato do que o Nanaia...) naufragados no sufoco da contra-costa, sem ainda conhecer os cantos à casa e o novo bairro que íamos habitar nem os vizinhos todos ainda praticamente desconhecidos.
Imagine-se pois, o dia de Natal assim, tão despido de memórias e afectos, longe de tudo e perto de coisa nenhuma. Todavia fizemos das fraquezas forças que era tudo gente nova (a mãe andaria pelos 35 e o pai pelos 42, vejam bem (veja eu que lhes levo bem mais de vinte anos à melhor...).
No dia de Natal, no dia 25, faz favor, que era esse o nosso dia das prendas, lá nos juntámos para o ritual de abrir os pequenos embrulhos enquanto lá fora o sol alto prometia um intenso dia de praia e de caril, feito pela dona Rosa, especialista nesses segredos da grande cozinha tropical. E iria ser no pavilhão da praia, hoje destruído pela incúria e pela burrice colonial e anti-colonial, junto da praia protegida por um aramado onde não entrava tubarão.
E desses presentes só recordo um: um livro que o pai comprou para lermos em conjunto: “Três homens num bote sem falar no cão” de Jerome K Jerome. Quem não leu este livro não sabe o que é o grande humor, a auto-derisão. E não sabe sobretudo o poder da gargalhada franca, até às lágrimas, que nos acometeu a todos nessa noite em que os quatro nos revezávamos rindo e chorando com as aventuras impossíveis de três cidadãos pacífic os que subiam o Tamisa com um cão num bote. E lemos o livro até ao fim, num esforço que seria penoso pelas gargalhadas, mas que subitamente nos libertou desse mal tão português da saudade, da lembrança do natal frio, do peru e do bacalhau e nos converteu ou reconverteu naquilo que de facto éramos: uma família trivial, vulgar, que se descobre e inventa a cada passo, que vence as dificuldades da terra alheia convertendo-a em sua pelo milagre do riso, da leitura partilhada. Foi um belo natal. Numa bela terra. Com a melhor família possível.
Obrigado pai, onde quer que estejas.

A todos os leitores e amigos desejo um bom natal. Aproveitem e façam por deixar dele uma boa recordação para os mais novos.

21 dezembro 2006

Au Bonheur des Dames 43

De regresso a casa, à sombra das tamargueiras que já não são....

Começo a estar velho para este bulício todo, para a confusão das últimas compras, para as malas que se têm de fazer, enfim um saco, também não é assim tanta coisa, por quatro ou cinco dias no máximo. Dantes, sim, dantes ia-se com tempo para essa velha casa de família, para estar com todos com os vagares que convêm ao inverno, às longas noites de lareira, o frio lá fora e um luar de pasmar mortos e vivos, como se subitamente regressássemos a um tempo mais puro, mais inocente, mais próximo desses outros povos que a estultícia ocidental ousou chamar primitivos, como se o cultos do antepassados fosse menos digno do que outros mais modernos e mais distantes do que somos, do que vimos e para onde vamos. A velha polis grega só começou a sê-lo verdadeiramente quando houve a consciência de um espaço habitado por gente que rendia preito aos mesmos deuses e aos mesmos antepassados comuns. O resto, irmãos, companheiros e amigos, é paleio de encher, auto-engano, renúncia ao que somos.
E nesta chamada aos que foram estou a incluir um par de serviçais velhas que faziam parte da família, mais do que muito familiar. No caso em apreço, o nosso, est(ar)ão à mesa a Maria “costureira”, as Berlanjas todas, mulherões de levar tudo à frente delas, a Joaquina, a Clarisse e a Deolinda, a Maria do Rão e, porque não, os fidelíssimos criados negros que durante dezoito anos serviram em nossa casa, em Nampula, comandados pelo senhor Tesoura, cozinheiro de mão cheia que a minha mãe achava que fumava maconha, o mainato, muçulmano convicto que dava cabo do juízo ao Mário, o “moleque” que era da nossa idade quando começou a trabalhar lá em casa e se transformou num bêbado impenitente. Quando a minha mãe o ameaçava de despedimento pelas borracheiras tremendas com que aparecia, ele dizia-lhe com um despudor absoluto: Senhora não pode. Mário é irmão dos meninos.
E era!
Tudo isto, toda esta cada vez mais imprecisa memória de África, agora mais cores e cheiros que factos precisos, que faces nítidas, mistura-se com o natal de Buarcos, quando vinham os avós paternos e na casa se armava uma árvore de natal com enfeites antigos, do tempo de menino do meu pai ou até de antes, sei lá. E nesses natais recebemos parcimoniosamente, ano pós ano, juntamente com alguns, não demasiados, presentes modernos, os antigos brinquedos do pai, um carrinho de pedais vermelho que o Alfredo Esteves haveria de estragar metendo o corpanzil gordo e volumoso lá dentro, um canhão que disparava balas de borracha, indústria alemã garantida, muitos livros, alguns brasileiros oferecidos ao pai pela bisavó Ubalda Heinzelmann, e entre eles os Vernes. Ah os Vernes, que encantamento. Ainda recordo um entre todos, “Robur o conquistador” lido numa tarde. Quando pedi outro porque aquele já estava aviado, a família com ar grave entendeu não acreditar. E mandaram-me contar a história: quando lhes disse toda a primeira página, enfim grande parte dela, que há algum tempo voltei a recitar à vendedora de mais uma edição quase nos mesmos termos, caíram das nuvens. Que memória!, dizia o avô Alcino, que memória repetia orgulhoso o pai Marcelo. Eu bem que tentava explicar que só tinha memória para o que gostava mas eles nada. Quem tem memória e não é burro de ferrar, tem de ser bom aluno. Ai o que penei por via do Robur o conquistador e da teoria do voo dos veículos mais pesados do que o ar...
O Natal representava forte actividade lá em casa, comidas que se faziam, peru que se embebedava, rabanadas cuja confecção o avô Alcino comandava, com um espantoso avental e dois instrumentos apropriados para as tirar da sertã e que tinham vindo de Inglaterra. Ainda os temos, esses instrumentos extraordinários que já por várias vezes usámos cá em casa. E são de tal forma curiosos que a “Dóris Ibarruri” não deixa o seu uso a ninguém. Só ela sabe, o diabo da adventícia... Pretenciosa!... Por razões que desconheço havia um par desses instrumentos de forma esquisita de modo que é um para cada irmão, bom princípio de partilha que a minha Mãe impôs.
Estes natais vieram aliás depois doutros, passados em casa dos avós maternos, no meio de uma alegre confusão em que dois netos pequeníssimos, eu e o meu irmão, eram alvo das atenções do avô Manuel, militar e severo que se desfazia com os pequenos. Contam que ele passava a vida com um de nós ao colo e outro pela mão. Os meus tios mais novos, por seus turno, tentavam roubar filhozes e balhoses guardadas (está quieto ó mau!) no quarto do avô. Rastejavam como índios para não ser avistados da cama onde o pater famílias repousava dos afazeres da reforma. A avó Aldina tinha mão doceira e era gulosa. E nunca deixou definitivamente de o ser mesmo quando, obtido o estatuto de a mais velha, coisa que lhe aconteceu quando terá feito os oitenta anos e lhe ofereceram um bengala. Tornou-se imponente e bisavó por essa altura, argumentos suficientes para eu e a prima Maria Manuel lhe outorgarmos o título de “Velha Senhora” que ostentou até aos 97 anos, morrendo trisavó e, aliás, numa véspera de natal. Mas deixou na nossa memória tribal um tal rasto de energia e de alegria que não foi por isso que os natais perderam perfume. Faz mais falta, é mais sentida a ausência, o meu pai que sentia o natal como algo muito seu. Quando nasceu o segundo neto, um rapaz, o meu sobrinho Manuel, eis que o orgulhoso avô comprou imediatamente um complicado comboio eléctrico que o neto só poderia apreciar anos depois. Bem, eu tentei, na mesma altura, comprar para um bebé de dias um “mecanno”, brinquedo que me tinha encantado pelos sete, oito anos. Azar dos azares, quando cheguei à loja onde o vira, por um preço esdrúxulo, já tinha sido vendido. Outro tio babado, de certeza!
Isto, como de costume, está a sair de bica aberta, raio de mania, de modo que me esqueci de assinalar que nos natais da casa de Buarcos a tarefa dos dois meninos era a de partir as nozes. Íamos com o saco das nozes, um martelo e um prato para umas escadas exteriores e partíamos conscienciosamente os frutos secos. Volta e meia esborrachávamos uma que, por imprestável, poderia ser consumida rapidamente. Quando a tarefa terminava apresentávamos o fruto do nosso labor, nozes esborrachadas num canto e era-nos concedida licença para as comermos. Depois íamos para perto da mãe para assistir à confecção de vários bolos. Uma vez feita a massa e retirada para o tabuleiro de ir ao forno concedia-se aos anjinhos do lar o direito de rapar o recipiente. Ai meus Deus... nunca me hei-de esquecer daquele gosto. E do outro ainda mais especial que era o de atirar um dedo à massa logo que a mãe olhava para o lado. Corria-se o risco de apanhar um carolo mas a tentação era mais forte.
Haverá melhor natal do que este, com meninos lambuzados de massa crua de bolo roubada com risco das próprias vidas, enfim das cabeças, uma aventura, toda uma aventura?...
Anos depois, tantos, eram os dois sobrinhos mais velhos, a Sara e o Manuel, muito pequenos e igualmente guerrilheiros que havia que conter. Cá em casa, deste escritório de onde escrevo, tive uma vez que telefonar para o telefone da sala para o meu sobrinho, ameaçando-o de severíssimas punições caso ele não deixasse de fazer tropelias extraordinárias. Durante um ano ele acreditou, na inocência dos seus três anos, que era o pai natal que lhe telefonara. Entretanto a Sara, mais velha e mais prudente (apenas nesta quadra, convém esclarecer), portava-se como um anjo. De tal modo que no dia 25, pela manhã, dia das prendas, esperava a tremer de frio, descalça e com uma camisita de dormir, desde as sete ou sete e meia da manhã pelo primeiro adulto que acordasse e lhe abrisse a porta da sala onde as prendas dormiam sob a árvore.
Agora que os meninos cresceram desmesuradamente, que excepção feita da Margarida que só tem dezoito anos, já são adultos e trabalham, o Natal perdeu o gozo. O Natal sem crianças que roubem nozes, figos, passas de uva, massa de bolo, pintem a manta ou tiritem de frio à espera de um presente, é apenas um dia em que a sombra dos que foram se espessa, uma ténue angústia nos invade, um cansaço, uma saudade, alguma impaciência.
Este ano será celebrado sob o signo de uma próxima visita a Buarcos para ver o “Nélito” Pinguel, amigo de há quase sessenta anos que me pediu para lembrar a fiel Joaquina, hoje, doente da Marta sua mulher. O que se faz com prazer. E com um recado: Nélito, prepara-te que os manos Correia Ribeiro não perdem uma hipótese de almoçar contigo.
Bom Natal, amigos, companheiros, leitores, gente da blog-esfera. E lembrem-se: nessa noite que celebra também o solstício do Inverno, à mesa há muito mais gente do que a que se vê. Ponham-lhes um pratinho com pequenos doces simples e um copo, um cálice de “porto”. Numa época em que poucas crenças subsistem, façam por pensar que somos tão só um elo entre os que partiram e os que estão a chegar.

Nota: por erro diz-se que visitaremos Buarcos. Nada mais falso. Não se visita o lugar a que se pertence e que nos fez: somos filhos do mar e da praia, não há volta a dar-lhe. E do vento Norte, da “nortada” que sopra em Agosto e abranda os ardores estivais.


Um Natal muito gay



é o que se anuncia

19 dezembro 2006

Au Bonheur des Dames 42

Progressos demasiadamente lentos
Não sei porquê mas lembrei-me subitamente do título (algum livro, algum filme?) deste folhetim. Tenho quase a certeza que deveria ser algo de Jean Paulhan, coisa muito anos setenta, belos anos os do segundo quinquénio, não pelo 25 A, caro José, mas também por causa disso. De setenta e seis a oitenta, este seu amigo e devedor, comandava uma nau com quase setecentos tripulantes e trezentos ou quatrocentos mil utentes, entre beneficiários directos, familiares destes e patrões. Tratou-se de uma aventura exaltante, abençoada pelo facto de se tratar de um serviço essencial a uma grande camada de população não muito favorecida. Acho que dei o meu melhor e que consegui deixar para quem depois de mim veio, uma casa mais arrumada e mais fácil do que a que recebi. Ainda hoje vou encontrando gente que trabalhou comigo e, honro-me de o dizer, que terá gostado de trabalhar comigo. Cada um destes encontros é uma pequena festa de que saio contente e de lágrima no olho. Muitas lágrimas no dito cujo órgão da visão, que eu, com a idade, comovo-me facilmente. Aliás, pensando melhor, sempre fui de fácil comoção e fácil indignação. O que é bom porquanto significa que não sou de arcas encouradas nem de rancores escondidos. Digo o que penso sempre sem rede e a isso devo muitos amargos de boca. Mas, também por isso, tenho uma boa carteira de amigos. E os amigos, caro leitor, são o sal da terra. E entre eles estão, seguramente, muitos dos meus antigos subordinados desses anos setenta. Há mesmo um pequeno grupo, um “inner circle” que governa o meu dia de anos. Nesse dia, e isto desde há trinta anos, o meu programa está marcado por eles. Almoçamos juntos, claro, oferecem-me um queijo da Serra, sempre óptimo, recordam-me histórias e prometemos sempre voltar a encontrarmo-nos antes de um ano. E como sempre isso não acontece. Este ano o almoço foi adiado por motivo de força maior, uma das minhas antigas secretárias, a mais velha por sinal, vai ser operada e entendemos guardar o encontro para depois da operação. Para ela poder comer o que quiser, e tão gulosa que é, valha-lhe Deus, para poder beber um licor especial (à falta de uma zurrapa que ela adorava e que dava por “Magos” uma espécie de jeropiga falsificada e com muitas bolhinhas) e para poder bater-me carinhosamente na mão (ficamos sempre ao lado um do outro) dizendo-me que não tenho emenda. Antes que alguma leitora mais buliçosa pense mal, deverei dizer que a minha amiga Adelaide Arbiol me leva um largo par de anos de vantagem. Quantos não sei, a uma senhora não se pergunta a idade, mas ela terá conhecido a minha avó Dora Heinzelmann ou pelo menos terá ouvido contar várias histórias amáveis dessa (também) grande senhora.
Esta dona Adelaide Arbiol era a rainha das secretárias, um poço de informações, de bom senso e de ternura. E tirante o secretariado, que já lá vai, continua a ser um carácter!
Os leitores já me conhecem: eu navego nestas vagas prosas, um tanto ou quanto à bolina, pouca bússola, pouco leme, ao sabor de uma onda mansa ou de uma brisa mais carregada. Acreditam que eu ia, como o título poderia indicar, falar dos meus progressos na luta contra o peso? Pois era por aí que queria ir. Para contar que os primeiros dez quilos já foram dar uma volta ao bilhar grande, esperando que não voltem mesmo que me arreceie do Natal que por aí vem, do inverno que vai entrando com pezinhos de lã, de uma súbita e enternecida vontade de comer um verdadeiro cozido à portuguesa “mcr Art” como se diz nas germânias e não como um de “arrebimb’o malho” proposto no blog “gosto-comer” e da autoria indiscutível do João Vasconcelos Costa. Quem quiser ir por ele, vá que não perde tempo embora se arrisque a ganhar peso. E água na boca! Como é que um eminente cientista e professor universitário pode ser assim tão bom gastrónomo? Os cientistas deviam ter um apetite de passarinho, sempre enfronhados na sua difícil arte, comendo distraídos e a desoras uma sanduíche e o respectivo guardanapo de papel, bebendo-lhe força de cafés ou chá verdadeiro, que também é excitante. Parece que não: que há por aí uns cavalheiros que parafraseando o rifão espanhol (a dios orando y con el mazo dando) com uma mão manipulam a proveta e com a outra a colher de pau. E o João é um desses. Aliás suspeito que terá mais mãos, que o homem é um bom leitor, um excelente conversador, um comentarista de gabarito e mais um par de coisas que demonstram sem dificuldade que, mesmo nesta terra abandonada que Cristo nunca pisou, há gente de cultura e de ciência a que juntam bom gosto e humor.
Mas eu queria falar desta pequena aventura de perder peso que, surpreendentemente, está a custar muito menos do que eu temia. O meu objectivo já foi atingido em cerca de 65% mas não é tempo de grandes comemorações: os restantes 35 vão ser os mais difíceis. É que quando pensamos que a guerra está ganha, baixamos a guarda e zás! Damos com os burrinhos na água. O excesso de confiança, o conselho amigo e fatal: come mais um bocado que não é isso que te vai engordar! Ora é precisamente “isso”, essas duas colheradas pecadoras, que vai engordar ou deitar abaixo o esforço de um par de dias.
Por outras palavras: quem faz dieta sofre não só os efeitos da privação mas também a enganadora solicitude dos amigos e familiares.
Começo a perceber melhor, antes tarde do que nunca, aquelas histórias piedosas de anacoretas orando no deserto e sendo alvo de tentações temíveis desde a comida até às virgens que o Demo prazenteiramente lhes oferecia para acicatar as carnes martirizadas pelo simum e pelos frios da noite solitária. E se é verdade que a história só nos relata os casos de vitória da virtude, não consigo deixar de pensar que também terá havido umas pequenas quebras ao jejum dos sentidos do santos homens. Pelo menos, para mim que, com o avançar dos anos, me tornei mais tolerante, essa ocasional quebra dos rígidos princípios, torna-os mais humanos, mais próximos e, vejam bem, mais exemplares!
Todavia esta minha recorrente simpatia pelos pecados veniais não significa tréguas natalícias ao meu regime. É que o meu peso era de facto demasiado e começava a fazer-se sentir. E já que as coisas vão correndo sem especiais dramas ou dificuldades, o melhor é manter o esforço e as cautelas. E mesmo quando penso que este propósito é mais uma afloração do politicamente correcto, coisa que me desagrada mais do que seria natural, terei que o manter até expulsar os derradeiros 5 ou 6 quilos que ainda resistem.
Volta e meia, estou a escrever um texto, lembro-me de um poema, de um livro e, pimba!, largo texto, computador e aí vou eu. Comecei a falar de cozido e nem pensei. Levantei-me num salto, enverguei o primeiro sobretudo à mão e ala que se faz tarde. Fui pelos precisos do cozido com um desembaraço que seria comovente se não fosse um desafio ao demo. Faço o cozido e faço-lhe as devidas honras que um dia não são dias. E abre-se uma garrafa de uma reserva de Porca de Murça para ajudar à digestão. O cozido, leitoras desassossegadas, estava mais que bom, o vinho idem, aspas, aspas. E eu comi bem mas muito menos do que nos tempos em que pecava fartamente por mor de uma gula ancestral e moscovita. Desta vez se não fui temperante também não fui guloso. Dei ao dente mas consegui conter este mano a mano com o cozido dentro dos limites.
Agora que já acabei o meu desvio habitual ( a que um leitor amável chamou “estilo inimitável”) volto ao título da crónica: progressos em tudo demasiado lentos. Mas progressos. Desta feita é o computador ou melhor os endereços do meu mail. Descobri estupefacto que na minha lista constava gente que eu não conhecia, gente conhecida a que nunca escrevo e gente demasiado conhecida a que jamais escreveria. Surpreendido com esta invasão, perguntei aos meus botões se não poderia apagar as direcções espúrias. Os botões, sempre animosos, disseram-me que sim. E aí vai disto, tentei briosamente eliminar as direcções invasoras. Foi a meia hora de rodeo mais empolgante da minha vida. Fiz tudo e alguma coisa mais mas os parasitas tinham mais persistência do que a antigas ténias. Não saíam nem à viva força. Ao fim de meia hora de combate vão e inglório rendi-me à evidencia. Tinha de tentar abrir o sítio do mail para ver se algum conselho haveria para a tarefa purificadora. Havia claro e era mesmo fácil para o matumbo que estas vai dedilhando. Não tenho sequer a certeza de ter dado com o remédio mais fácil mas a verdade é que expulsei os invasores para os cornos da lua, senão mesmo para cu de Judas.
E com esta me vou. Contente com estes pequenos passos que aumentam o meu debilitado ego e a vaga auto-estima que me vai mantendo de pé. Lentamente. Mas em pé.

Nota: “progrès en amour assez lents, 1966. Tchou ed., Paris 1968 ou Gallimard 1982 (com “le guerrier appliqué e Lalie) de Jean Paulhan, collection L’imaginaire.

Alívio

Supremo derruba aumento de 91%

O Supremo Tribunal Federal acaba de conceder, por unanimidade, uma liminar (decisão provisória) para que as Mesas da Câmara e do Senado se abstenham de editar aumento de subsídios de congressistas com base no decreto 444.

Essa decisão do STF (aqui a notícia oficial do tribunal) derruba, na prática, o aumento de 91% que os congressistas se autoconcederam na semana passada. Agora, para que possam ter um aumento, os deputados e os senadores terão de editar um novo decreto legislativo a respeito do tema.

A decisão do STF foi dada em resposta ao um mandado de segurança 26.307 assinado pelos deputados Carlos Sampaio (PSDB-SP), Fernando Gabeira (PV-RJ) e Raul Jungamann (PPS-PE). Eles pediam especificamente que fosse revogado o aumento de 91%. Na parte da manhã, o Supremo já havia indicado o caminho ao considerar sem efeito o decreto legislativo 444, de 2002, e usado pela direção do Congresso para se autoconceder um aumento salarial.

Em condições normais de temperatura e pressão, um decreto desses pode ser votado e aprovado por acordo de líderes partidários. Dado o clima atual contrário ao aumento, é muito difícil que o Congresso resolva assumir tal risco.

No Congresso, os presidentes das duas Casas, Renan Calheiros (Senado) e Aldo Rebelo (Câmara), terão de decidir até amanhã o rumo a ser tomado. É que depois Brasília ficará vazia e não haverá quórum para decisão

Fernando Rodrigues in : http://uolpolitica.blog.uol.com.br/index.html


Nota minha: ao que parece desta vez uma voz maior se fez ouvir, a do povo ! É mais do que tempo de ser mesmo assim.

Silvia Chueire


18 dezembro 2006

Au Bonheur des Dames 41

De perdizes e de outras aves de truz

A perdiz come-se de mão no nariz, reza um rifão venatório, em uso em todos os lugares onde este amável passaroco é alvo da fúria gulosa dos homens. E come-se assim, porque desde há muito se estabeleceu entre caçadores e outros clientes da boa mesa que o animal há-de estar um tanto ou quanto passado, cheiroso, demasiadamente cheiroso para ser consumido. Suponho que era Ramalho quem falava da “aromática” perdiz, opinião abalizada, de caçador e gourmet. Portanto, e para abreviar, a perdiz há-de estar com um certo relento para saber bem.
Mas a que vem aqui a ave, agora criada em viveiros para, em chegando a época da caça, a soltarem nas reservas venatórias para satisfazer a incontinência fusiladora dos milhentos caçadores com que o país conta? Pois vem um pouco como imagem do estado interessante a que chegou o nosso futebol grávido de escandaleiras de todo o género.
Falar de futebol nos tempos que correm só com a mão no nariz. E mesmo assim... Há, é certo, temas porventura mais graves mas convém aproveitar a “gentil maré” que nos é servida de graça por todos os jornais que dão acolhimento em nome da liberdade de informar a todo o lixo bolsado sobre o público em nome do direito à informação.
Aqui chegado, convém assinalar, que o escriba não tem nada a ver com os principais clubes portugueses de que não é adepto, simpatizante ou sequer interessado nas suas proezas. O escriba não acha graça ao futebol e acho patético o espectáculo de multidões ululantes no estádio ou mais prosaicamente no sofá em frente da televisão a ver a partida no quentinho da sua casa, agarrado a um cachecol e a um prato de batatas fritas. Portanto nada o move, demove ou comove no que diz respeito ao drama que se vive com as declarações literárias de uma senhora que, de animadora de cabaret rasca passou a first lady de um clube poderoso. O comentador não tem opinião sobre a veracidade ou falsidade das informações veiculadas nesse livro, sobre as motivações de quem é a putativa autora ou sobre as malfeitorias aí atribuídas a um senhor presidente de clube.
O escriba não frequenta o meio onde estas histórias pouco edificantes se desenrolam e confessa, talvez por demasiada idade, demasiada vida, que do relatado apenas conhece o que no jornal “Público” se relata. E mesmo isso terá sido lido obliquamente, porventura por desinteresse mais do que por qualquer escrúpulo moral.
É uma fraqueza, já o sei, mas nunca fui capaz de sequer folhear, seja no dentista ou no barbeiro, essas revistas de escândalos, que relatam as vidas, as pobres vidas, dessa vaga jet set que desvela aos quatro ventos, as intimidades, os orgasmos, o gosto dúbio, a frase pirosa a inanidade que sustenta aquelas tristes criaturas “glamourosas” segundo elas próprias, ridículas segundo a verdadeira alta sociedade que foge dos jornais com mais rapidez que o diabo da cruz. Todavia esta minha posição, posição de ET, como alguns amigos a definem, é minoritária, tragicamente minoritária.
Não nos espantemos pois que a história de ciúme e calúnia (se de calúnia se trata...) encha os jornais, esgote o livro (que pelo que pude saber é de um atroz ridículo literário) e suscite mesmo algum afã entre as autoridades judiciais e policiais. Pelo que sei ainda não percebi como é que alguém se acusa publicamente de ter contratado dois bandidecos para sovar um edil camarário e disso não haja até ao momento sequelas que se vejam. Não será possível mandar um cabo de esquadra à casa da criatura para a trazer sob boa guarda a um juiz que resolva o que fazer. Eu já não sei nada de direito mas aproveito o facto de estar a escrever esta desenfastiada crónica num blog carregado de juristas no activo para pedir que me esclareçam. A mim e aos eventuais leitores.
E nisto não vai qualquer intuito de defesa do outro inquietante personagem que é aliás o vilão do referido livro. Ainda que duvide que o venham incomodar. A ele e a todos os que com cargos idênticos aparecem semanalmente, para não dizer diariamente, nos telejornais, nos artigos das últimas páginas (e estas são quase metade do periódico), blasonando glórias fictícias, ameaçando árbitros e adversários, torneando (toureando) perguntas incómodas e mostrando sobretudo um impudor e uma impudência notáveis. Estes cavalheiros e os seus aliados (entre os quais muito edil camarário que achou interessante eleger-se à conta do futebol e daí passar para campo mais lucrativo, se é que me entendem) conseguem o impossível: fazer com que clubes falidos gastem somas astronómicas nas compras de jogadores. Conviria já agora saber que ligações existem (se existem, claro...) entre os dirigentes dos clubes e os agentes dos jogadores não vá dar-se o caso do, por exemplo, o dirigente máximo do “Canelão Sport Club de Alguidares do Meio” ser sócio do representante do jogador que acaba de comprar por uns milhões. Ou receber uma percentagem consoante a soma a que, com a sua assinatura, obriga a agremiação.
Vasco Pulido Valente, num texto brilhante, veio afirmar que neste meio só grassa a pequena corrupção, a pouco importante e que isso serve para esconder a outra, a verdadeira, a que dá realmente lucro. Será... mas os processos de que se ouve falar são tão extraordinários, recorrem a tanto gansgster ou assimilado que começo a temer que este pequeno polvo seja já bem maior do que o que se julga. E como até à data as consequências são as que se conhecem, permito-me pensar, sou mesmo um ET!, que o campo estará mais minado do que se julga, a ousadia será maior do que a que se apregoa, e as importâncias em jogo sejam igualmente muito mais expressivas. E ninguém me garante que já não haja laços, lacinhos e laçarotes entre esta corrupçãozeca de estádio de futebol e a outra, a tal, a verdadeira.
Se for como penso, acho bem que se abra excepcionalmente a estação de caça: à perdiz, ao perdigoto e aos passarões que que andam por aí de papo cheio. Zagalote neles!

17 dezembro 2006

Diário Político 35

Vamos talar a árvore de Natal?
Parece que uma escola de Saragoça entendeu dever não permitir que se faça uma árvore de
Natal no pátio para não ofender os “não católicos”. Empresas inglesas desistiram de festas natalícias em nome do multicultarismo ou de outra imbecilidade conexa. Em suma, uma inocente tradição corre o risco de ser proscrita para não ofender o vizinho do lado. No caso o vizinho judeu, muçulmano, sikh, hindu ou budista. Arre que esta gente descobriu a pólvora. A arvorinha (de que nem gosto, diga-se de passagem) ofende o imigrado de outra confissão (ou ofende-me a mim que não sou religioso…) porque lhe recorda um odioso passado colonizador, as cruzadas, a guerra do ópio ou algum pogrom do passado.
Convenhamos que estamos a começar a navegar no mais absoluto delírio e que se não cortamos depressa o passo a esta nova auto-censura acabaremos todos com saudades do “admirável mundo novo” do falecido Aldous Huxley.
Esta história não mereceria comentário não fosse terem ocorrido mais algums factos que lhe começam a dar uma dimensão sinistra.
Primeiro foram as caricaturas do profeta que (tardiamente) desencadearam um par de tumultos a milhares de quilómetros de distancia. O Ocidente, ou parte dele, com um que outro lusitano incluído, em vez de defender o direito à liberdade de expressão, conquista relativamente recente e ao preço de tantas vítimas, resolveu com uma suspeita equidade distribuir as culpas pelos dois lados. O jornal dinamarquês ofendia princípios altíssimos o que de certo modo justificava as “fatwas” e demais “ukases” de um par de muçulmanos medievais.
Depois um grande teatro de ópera suspendia as representações de “Idomeneo” (ópera de Mozart, para quem não saiba) porque a um dado momento no palco compareciam as cabecinhas degoladas de Cristo, Buda Maomé e Poséidon se bem recordo. O problema para a reaccionaríssima e politiquissimamente corretissima directora era a cabeça de Mafoma. Cristo e Buda eram irrelevantes e Poséidon apenas um ídolo. Grego, por acaso, e proveniente dessa época de filósofos e artistas que nos conformaram a civilização.
Sempre em Espanha, que ainda chora duzentos mortos do atentado de Atocha, várias povoações suspenderam as festas locais ou pelo menos os autos em que se narravam as lutas entre mouros e cristãos. Por rnquanto, claro. Porque se não nos acautelamos teremos em breve uma história em que a “Reconquista” será descrita como um crime hediondo.
Temos que agora, é a árvore de Natal, símbolo um tanto ou quanto pagão, convém dizê-lo da Natividade e do solstício de Inverno. Ou as festas de Natal.
Dir-me-ão que isto são excepções e por isso mesmo aparecem nas páginas de faits divers dos jornais. Pode ser. Mas o que me espanta é que nas notícias não apareça em grandes letras o dístico: burrice supina, cretinismo agudo ou qualquer coisa do género. Porque é disso que se trata: de burrice sobre-humana. De vesguice profunda. De atentado à inteligência. De cobardia moral. De negação do imenso sacrifício de gerações e gerações que combatendo o analfabetismo e o primado absoluto da religião se podem agora ver relegadas ao triste papel de laicismo à força. De violência gratuita contra algo que, é um descrente que estas escreve, conformou a nossa cultura e o nosso modo de viver. Ao pé disto dá vontade de discutir futebol, este futebol, nacional, nosso, de árbitros e putas, de compras e putas, de favores e puta que os pariu.

16 dezembro 2006

expediente 2

Não fora um texto de Nuno Crato na “revista” do Expresso nunca teria sabido da morte de Alfredo Pereira Gomes, um nome que aprendi a respeitar em casa de Alcinda e Jorge Delgado. E mesmo que o professor doutor Crato lhe tenha prestado uma expressiva homenagem não posso também eu de aqui nesta pequeno canto vir juntar a minha voz. Não tenho qualquer espécie de competência para falar das eminentes qualidades de professor e de investigador de APG. O que sei dele a esse respeito foi-me transmitido por Jorge Delgado que foi seu amigo e colega nesse espectacular núcleo de cientistas criado no Porto à sombra de Ruy Luis Gomes.
Conhecio-o mais tarde e conservo dele a imagem de um homem sensível e discreto, bom conversador e, curiosamente, sem acrimónia pelo que tinha passado. Quando às vezes se discute (cada vez menos!) Portugal e o seu lugar no concerto das nações civilizadas, lembro-me desse esbanjamento de talentos de que o regime de Salazar foi responsável. Como é que se faz tábua rasa de um núcleo tão extraordinário de professores que foram (como também no caso da vizinha Espanha aconteceu...) enriquecer outros países mais hospitaleiros? O Professor Pereira Gomes foi criar escola no Brasil e mais tarde engrossar as fileiras da universidade francesa. Foram décadas de ensino perdido para Portugal, foram gerações de alunos que não tiveram um professor que os estimulasse que lhes servisse de exemplo ou de guia.

O segundo morto a que me queria referia chama-se Joseph Ki Zerbo. A história de África seria diferente sem ele que foi quase um pioneiro nesses estudos. Fez parte dessa constelação de intelectuais negros de cultura francesa e terá sido um dos primeiros africanos a entrar na Sorbonne como professor. Deixa uma obra notabilíssima e um exemplo de luta pela democracia e pela liberdade que prolongou até quase os seus últimos dias.
Corre por aí ( Europa América) uma “História de África” da sua autoria. Está obviamente datada como não podia deixar de ser. Mas continua a ser uma referencia absoluta. Eu deixaria aqui ficar mais dois ou três títulos mas tenho a firme convicção que, depois deste livro lido, o leitor partirá à descoberta de outros e não quero (oh espírito natalício!...) privá-lo dessa aventura. De resto foi assim (ou melhor: foi de um modo semelhante) que comecei a esgaravatar a história e as culturas do continente negro. O meu guia foi outro, bem diferente, “Afrique ambigue” (de George Balandier) e confesso, tantos anos passados, que ainda hoje me comovo à lembrança de tantos e tão excelentes autores que fui encontrando ao sabor de uma errância de leitor curioso e desenfastiado. A verdade é que só assim concebo estas “lectures savantes” que não desdenham alguns excelentes portugueses. De bom grado aconselharia alguma literatura histórica q. b., hagiográfica sem sombra de dúvidas mas com o perfume da sinceridade. E meto nesse grupo Ayres de Ornellas ou António Enes arautos do “império” bem como alguns relatos de campanhas (“Os Dembos” de Henrique Galvão, ou o conjunto de “cadernos coloniais” editados pela “Cosmos” nos idos de quarenta) que deitam por terra, sem o querer, a teses dos quinhentos anos de presença activa, forte e constante que agora por aí se vende. O império até finais de oitocentos, princípios de novecentos, quase não passava de um arranhar da costa de África, aqui e ali sarapintado por viagens de pombeiros, de comerciantes afoitos mas já cafrealizados, de um que outro explorador, tudo feito sem regra, sem plano sem uma política clara da metrópole. Para não ir mais longe: leia-se com olhos de ler “O fim do império vátua e Mousinho de Albuquerque” de Julião Quintinha e A Toscano.
Mas tudo isto vinha, vem, à boleia da morte de Ki-Zerbo. Esperemos que lá no seu longínquo e quase desconhecido país (Burkina Faso) lhe honrem a memória e, doravante, lhe consultem o espírito que se foi juntar aos dos antepassados. E que derramem junto da sepultura o vinho de palma necessário para que a viagem no país dos mortos seja fácil.
Et le troisiéme larron de cette histoire est... um turco. Um turco amador de jazz e de rhythm ‘n’ blues? Um turco a quem os Rolling Stones devem muito? Um turco, sim senhor. Um turco como há milhares seguramente, culto, entusiasta de alguma da melhor música popular do século XX: Ahmet Ertegun, o mítico dono e fundador da Atlantic Records. Andam por algumas estantes daqui de casa belos discos com esse fabuloso selo. Coltrane, Ornette Coleman, Mingus algum MJQ, se não estou em erro, pelo jazz, Crosby, Stills Nash and Young ou Led Zeppelin pelo rock para não falar de tantíssimos heróis do rhythm and blues.
Corre por aí com demasiada insistência a tese tonta que basta saber tocar, ter uma boa canção ou um especial sentido do ritmo. Nada mais falso. É preciso sempre um editor, um cavalheiro que arrisque, que empurre, que dê ideias. E nisso Ertegun era pródigo. Gostava de música, gostava da música negra americana, tocava bastante bem, era autor de canções (algumas deles convertidas em hits) sob o nome de Nugetre, e divertia-se como um cabinda com a música dos seus autores. Morreu, como diz um jornal “com as botas calçadas”: de facto deu uma queda no concerto dos seus amigos Rolling Stones em finais de Outubro. Sobreveio-lhe uma lesão cerebral e morreu ontem. Aos 83 anos ainda dirigia a Atlantic mesmo que esta companhia pertença agora ao universo Warner Brs. Bem avisados, os compradores mantiveram-no à frente da empresa. E ganharam bom dinheiro com essa decisão, claro. Ertegun um grande senhor da música popular. Suponho que o meu amigo e leitor José partilha comigo este momento de luto. E de alegria pela excelente música que nos legou.

15 dezembro 2006

Hoje não há poema

Hoje não escreverei um poema. Hoje estou furiosa e indignada! Depois de toda a corrupção que vem se tornando mais e mais óbvia e pública no meu país, os senadores e deputados federais por ato conjunto decidiram reajustar seu próprios salários de R$ 12.750,00 para R$ 24.500,00. Noventa e um por cento de aumento!
É possível acreditar numa coisa destas?

Num período em que a inflação desde 2003 ( quando deputados e senadores se concederam o último aumento de fôlego) medida pelo índice do INPC ( Índice Nacional de Preços ao Consumidor) foi algo pouco acima dos 29% e o salário dos parlamentares iria para R$ 16.500,00 ( que já é muito se olharmos para o salario mínimo). Isto se não considerarmos todas as vantagens adicionais que têm, como casas (decoradas , mobiliadas e reformadas) pelas quais não pagam aluguel, verbas de milhares de reais para correio, passagens aéras pagas por nós para irem todas as semanas com acompanhante a seus domicílios eleitorais, etc, etc . Pasmem, senhores!

Seguiram o Supremo Tribunal Federal, dizem. Como se um erro justificasse outro ad infinitum. Como se fossem todos crianças a justificar ter quebrado uma coisa qualquer durante uma brincadeira. " Foi o fulano que me começou..." . E tudo independe do partido ao qual pertencem. Mesmo que haja algum (raro) que proteste agora, veremos qual dos senhores deputados federais e senadores (e deputados estaduais e vereadores nos municípios que seguirão o reajuste federal) devolverá o aumento recebido.


No mesmo país em que o salário mínimo é de atuais r$ 345,oo , deputados, senadores e ministros do Supremo ganham r$ 24.500,00!

Isto logo depois de estarem encaminhadas para coisa alguma as CPI que visavam investigar os nomes denunciados. Acordos políticos afinal, por aqui existem para isso.
É difícil crer que estes homens não se envergonhem. É difícil viver com a sensação de se estar numa terra de personalidades psicopáticas , aquelas que vivem como se a lei não existisse para elas. Numa terra de uso e abuso do próximo. De descaramento.
É revoltante.

Hoje não há poema.

Silvia Chueire

12 dezembro 2006

Estes dias que passam (nº especial)

E quando chegará a vez de Portugal?

Ora vamos lá a ver se escrevemos isto depressa e bem, sem deixar rabos de palha nem expor o pobre canastro à vingança de poderosos. E começo com esta prevenção porque o caso não é para menos. Também por cá já se manda espancar vereadores, abater magistrados, arrear umas xulipas a tempo aos prevaricadores pelo que todas as cautelas são poucas. Cautelas e caldos de galinha dizia uma velha empregada lá de casa, agora diz-se empregada em vez de criada, deve ser por via dos bons costumes e do politicamente correcto, raios parta esta mania que faz das velhas criadas que nos criaram, nos ralharam, nos deram uns tabefes, nos beijaram quando doentes, nos amaram, e que morreram em nossas casas como veros membros da família que eram... Bom, lá estou eu a falar de criadas quando queria falar de carteis. Feia palavra esta, cartel, autentica palabrota, como dizem os aqui do lado para quem um “joder!” é só uma exclamação de pasmo. E cartel é de facto um palavrão, uma coisa abominável que evoca imediatamente uma sanguessuga gigantesca com mais braços que um polvo, de dentuça afiada no pescoço dos cidadãos, de muitos cidadãos indefesos.
E já agora de que cartel malandreco estou eu para aqui a falar? Pois dum que bem poderia ser nativo, patrício nosso, da nossa criação, mas que para já, é francês. A notícia caiu-me da TV5 há doze minutos, exactamente. A justiça francesa acaba de meter uma lança em África, ou melhor, acaba de meter uma farpa no lombo de gorda besta. A saber: os três grandes operadores de telefone móvel gauleses acabam de apanhar com uma multa de 534 milhões de euros. Isto traduzido em miúdos dá cem milhões de contos bem redondos mais uns trocos. E a guerra ainda agora começa. Que isto, os cento e pico milhões de contos, é a multa. Multa porque os três grupos se entenderam quanto a preços, divisão do mercado e mais um par de judiarias, próprias desta gente. Próprias de um cartel, justamente.
Agora vai seguir-se a parte da malta. À cautela entraram em tribunal uns milhares de reclamações de utentes enganados. Parece que a papelada, só a papelada, pesa meia tolenada, ou seja, para os mais novos, educados pelo eduquês e pelos ameaços de TLEBS e por mais um par de barbaridades actuais, quinhentos quilos. É obra! Quinhentos quilos para eventualmente se poder vir a obter um bilião de euros que é em quanto para já se estima o assalto aos bolsos dos particulares. Parece que a coisa está bem encaminhada. A ver vamos.
E, voltando ao princípio desta croniqueta, e nós por cá? Tudo bem? Os nossos virtuosos operadores telefónicos ignorarão estes truques? Os preços serão diferentes? O mercado não foi dividido? Não houve acordos entre as empresas? Viveremos nós, numa bolha de virtude que ignora as basses oeuvres do capitalismo internacional?
Eu, que segundo o caro e fraterno Manuelzinho, sou de uma ingenuidade criminosa e inconsciente, quero bem acreditar que neste jardim à beira mar plantado, nunca houve cartelização de qualquer espécie. Como também nunca houve corrupção desportiva, nem autárquica... Vivemos, como dizia, o doutor Pangloss no melhor dos mundos possíveis. Dizer o contrário seria fazer o jogo da reacção e dos inimigos da pátria. E a época não é a melhor para tal. Digamos, como os manos do lado, no está el horno para bollos...
Ou como diria o meu velho e desaparecido amigo José Luís Nunes: mesmo que isso aconteça em Portugal nunca haverá reacção dos poderes públicos. Nunca? Ora vamos lá a ver se desmentimos desta vez o Zé Luís...
E no mesmo passo, desmintamos, também, essas velhas, amorosas, queridas criadas que nos aconselhavam na já longínqua juventude a estar quietos, calados, e surdos porque os pobres nunca tinham razão. “Isto”, menino, é como os rios, corre sempre para o mar. Nem sempre Maria, nem sempre, repontávamos, nem sempre. E desta vez?

11 dezembro 2006

Farmácia de serviço nº 27

Pannonica

Isto deveria chamar-se “a última aristocrata” ou “a última grande senhora” para, de facto, render um mínimo de justiça a uma grande mulher cuja vida se confunde com o jazz e com a resistência.
Falo-vos de Pannonica de Koenigswarter, filha de um Rotschild, cientista e boémio. O Koenigswarter vem-lhe do marido, Jules. Ambos fizeram parte desse pequeno mas admirável grupo de resistentes da primeira hora, juntando-se a De Gaulle. A lenda (e quiçá a verdade) conta que Jules aviador de bombardeiro levava como passageira e co-piloto Pannonica. De todo o modo é verdade que ela serviu nas Forças Francesas Livres.
Depois da guerra enquanto Jules Koenigswarter ocupava o seu lugar de embaixador, Pannonica instala-se em Nova Iorque e frequenta os meios do jazz. Trava amizade com um grande número de músicos, alberga-os em sua casa, onde aliás dois deles (e dos maiores!) morrerão: Charlie Parker e Thelonius Monk.
Entretanto Pannonica fotografava esses seus amigos com uma polaróide e guardava a fotografia num caderninho juntamente com as respostas que eles lhe davam a um pequeno questionário, sempre o mesmo: três votos para o futuro.
Suponho que o seu nome “Pannonica” ou alguns diminuitivos (“Nica” por exemplo) é o mais citado de todos os nomes verdadeiros na história do jazz. Conhecem-se vinte e dois temas com este título. Era a homenagem possível dos músicos à grande Senhora que os protegia, estimava, admirava e entendia.
Agora, acaba de sair em França um edição destas fotografias e pequenas entrevistas graças ao cuidado de uma neta de Pannonica.
Os amantes do jazz particularmente e os da cultura, em geral, bem farão em não perder esta edição única.
Panonnica de Koenigswarter.Les musiciens de jazz et leurs trois voeux., prefácio de Nadine de Koenigswarter, edição Buchet-Chastel, 314 pp., € 35.

O texto acima deve muito (mas não tudo, quand-même!) ao artigo saído no “Le Monde” em 11.12.2006 e da autoria de Francis Marmande (ed de 12.12.06)

10 dezembro 2006

Diário Político 34

Morte de um canalha

Um militar chileno chamado Augusto Pinochet morreu hoje. Morreu de surpresa como de surpresa começou a ser sinistramente conhecido. Este homem – se isto era um homem (pelo menos na acepção de Primo Levi – começou por trair quem nele confiou. De facto o presidente legal do Chile nomeou este militar para o comando supremo das forças armadas.
A paga foi uma intentona infame e sangrenta. O homem dos óculos escuros estreou-se na sua novel carreira de traidor matando e fazendo desaparecer milhares de pessoas. O homem dos óculos escuros ao mesmo tempo que perdia a honra, perdia a vergonha. De facto sabe-se actualmente que mantinha contas escondidas pelo menos num banco norte-americano, o Banco Briggs. Dez milhões de dólares para ser mais preciso. Provavelmente descobrir-se-ão outras em seu nome, no da mulher e dos filhos. O tempo o dirá.
O homem dos óculos escuros morre na cama, na cama que negou a Allende e a milhares de concidadãos seus. Morre aos 91 anos, meio destruído psiquicamente, depois de ter perdido o respeito de milhares de antigos adeptos. Morre de surpresa. Não era a primeira vez que se enganava: quando foi obrigado a montar uma mascarada eleitoral para continuar no poder, um referendo, perdeu-o sem perceber que quando o povo é obrigado a escolher não escolhe carrascos. Tentou desesperadamente manter-se à tona, no comando do Exército primeiro, como senador vitalício depois. Isso não o impediu de ser perseguido internacionalmente e de ter estado preso em Inglaterra, de onde só conseguiu sair fingindo-se doente. Nem isso o poupou à seguinte inculpação no seu próprio país. A morte veio hoje, impedir que a prisão domiciliária se transformasse em prisão pura e simples.
A justiça chegou tarde mas estava a caminho. Antecipou-se-lhe a morte. Mas o que já não foi conseguido por Pinochet foi o galopante avanço da verdade. Sobre ele. Sobre os seus familiares. Sobre os seus sequazes. Sobre os seus roubos. Que este seja o seu epitáfio: traiu tudo e não ganhou nada. Morte, onde está a tua vitória?

08 dezembro 2006

promove JANTAR-DEBATE
ementa:
conferência pelo Presidente do STJ
sobre O Pacto para a Justiça

14 de Dezembro, pelas 20 horas
restaurante da Quinta das Lágrimas, Coimbra

Inscrições: 239 854 630239 / 967 002 659/ 854 639 (Fax)

07 dezembro 2006

NÃO APAGUEM A MEMÓRIA

A falta de condições conjunturais para vir aqui assiduamente continua, mas hoje fiz um forcing porque não podia deixar de divulgar aqui este texto do meu colega e amigo Luis Eloy Azevedo.
Vai com uma abraço especial para o mcr, o jcp, a O meu olhar e demais leitores e comentadores. E outro para o Luís, claro!


«Foi hoje descerrada no Tribunal da Boa-Hora uma lápide a prestar homenagem aos presos políticos que foram julgados no tribunal plenário.
Segundo o Jornal Público de ontem o texto final foi objecto de negociação entre o movimento “NÃO APAGUEM A MEMÓRIA” e o Tribunal da Boa-Hora (?).
O confronto entre o que se queria que constasse da lápide e o que vai aparecer escrito, uma vez que o “texto inicial da placa sofreu algumas alterações após negociação com o tribunal da Boa-Hora”, é absolutamente notável e extraordinário.
Sai do texto original:
“O tribunal não actuava com independência, aceitava e cobria as torturas e ilegalidades cometidas pela PIDE/DGS, limitava-se, salvo excepção, a repetir a sentença que a polícia política já tinha definido. Muitos juízes ignoraram e impediram os presos políticos de denunciarem as agressões e métodos da PIDE/DGS.”
Onde estava “A justiça e os direitos humanos não foram dignificados nem respeitados no Tribunal Plenário” passa a estar “A justiça e os direitos humanos não foram dignificados”.
Para além da complicada questão da legitimidade de quem “negoceia” pelo lado dos tribunais, o resultado é bem revelador do desajustamento que, trinta anos depois, a magistratura ainda tem com a sua própria história.
Talvez juntando as palavras desconhecimento, alheamento e branqueamento tudo isto se perceba melhor.»


Luís Eloy Azevedo, no Sine Die, um blawg de leitura recomendada e recomendável.

ADITAMENTO: já agora, leiam também o super-anónimo guy

Boicote activo da Verdade sobre os direitos humanos


Hoje, o presidente da A.R. não disponibilizou a sala do «Senado» para um Colóquio entre parlamentares europeus da Comissão que investiga os voos da CIA e parlamentares nacionais. Pretexto: não havia solicitação «atempada».

Convenhamos. Para um País que se diz querer ser um Estado de Direito, a rábula é de jaez muito rasca e tacanho (bastou ouvir um osvaldo castro a justificar o injustificável).

Se não há nada a esconder, porquê dificultar a tarefa do Parlamento Europeu? Se há algo a esconder, por que não se assumem irregularidades (ou mesmo factos ilícitos)?

Até os americanos já perceberam que os caminhos da war on/of terror não deram bons resultados (o relatório Baker parece vir - extemporaneamente, é certo - pôr um pouco de bom senso e seriedade no que se refere aos desmandos belicistas e violadores dos direitos humanos da administração neocon bushista).

É por isso que nos envergonha a atitude desta maioria parlamentar, que boicotou objectivamente um encontro de trabalho da maior seriedade entre membros do P.E. e da A.R.

Do blog InDex

06 dezembro 2006

Farmácia de serviço nº 26

Pedro Sousa Pereira: fixem este nome

Este estabelecimento tem, como sabem, horário irregular. Abre e fecha a horas desencontradas, basta bater à porta ou chegarem produtos novos e aí está o boticário pronto a atender todos e cada um seja por que motivo for. Há os que vão por um emplastro e outros que só querem dizer duas para passar o tempo. Todos cabem cá no espaço entre o balcão e a estante das mezinhas para os humores coléricos e melancólicos. Portanto não peçam notícia de umas quantas farmácias de que não encontro rasto, a saber as numeradas 18, 19, 20, 21, 29, 30 e 31. Provavelmente escrevia-as num universo paralelo e esqueci-me de as transferir para esta galáxia. Ou nem sequer as escrevi, imaginei-as e, pimba!, dei-as por escritas e publicadas. E agora? Pois agora não há remédio, não me vou perturbar com uns miseráveis números em falta. Esta farmácia é a 33 e quem não quiser que vá ao supermercado pelos genéricos.
Ora passemos às nossas encomendas:
Espero que alguém, daí, do estimável público, se lembre da excelente editora de jazz “Savoy”. Já vi o senhor Rui do Carmo de mão no ar. Para procurador da república está bem, muito bem, essa recordação. Então aqui vai: a imparável “Brilliant jazz” edita numa assentada um fartote de coisas belíssimas: “Charles Mingus e Ervin Booker”, “John Coltrane”, Milt Jackson and The Modern Jazz Quartet”, “Charlie Parker and Miles Davis”, “Lester Young” e “Sonny Stitt & Zoot Sims” isto é seis compilações que genericamente se chamam “the Savoy Recordings”. Um luxo, um absurdo, uma alucinação, um cometa, o que quiserem. E tudo a preços decentes, honrados como é timbre da www.abeillemusique.com para onde podem escrever a pedir os discos.
Quem quiser esticar ainda mais a corda, clica o nome Lucky Thompson e apanha mais coisas de primeiríssima ordem, entre elas a banda sonora do “O homem do braço de ouro”. Vem com a referencia Elmer Bernstein mas é o velho “sir” Lucky Thompson o músico mais destacado.
Na mesmíssima abelhinha musical estão à venda as integrais de Mozart e Bach (cento e muitos discos cada) a preço inferior às antigas vinte notas (menos de cem euros, já com transporte)
Tom Waits o enorme, o de “swordfishtrombones”, Heartattack and vine” volta a surpreender o pagode com três discos de rajada: “Orphans: brawlers, bawlers and bastards”. A crítica uiva de admiração. Eu nem hesito. Chovam lá os discos que de certeza vou gostar.
O meu estimabilíssimo leitor José fica a saber que encontrei numa fnac “The band a musical history” cinco discos e um dvd coisa fina de se ouvir, bom presente a si próprio pelo Natal (então é só para os outros que esportulamos uma nota preta e gorda? Era o que faltava... Homessa!) e a malta dos The Band era fixe fixíssima.
Da livralhada um primeiro “apunte”: o capitão Alatriste volta a atacar. Arturo Perez Reverte dá vida ao volume sexto desta saga inteligente e bem escrita: “Corsarios de Levante” na Alfaguara. Leiam em espanhol: far-vos-á bem e salvam-se de uma eventual má tradução.
Ainda nesta onda espanhola, que o boticário é iberista a 150%, esta pequena preciosidade: “capital de la gloria, poemas de la defensa de Madrid, edição a cargo de J.G. Sanchez, uma edição da “visor” velha e reputada editora de poesia.
E da pátria bem amada? Pois preparem os morabitinos porque vem aí banda desenhada da boa (da melhor até, segundo o temível escultor Manuel Sousa Pereira que sabe da poda): “13 a bordo”, guião de José António Barreiros e traço de Carlos Barradas. Imaginem que aqui na mesa do canto já há três leitores à espera, o Manuel S.P. já falado, o senhor “Manuelzinho” Simas Santos e este vosso criado. E o raio da editora que só promete o livro para 2007!!!
Todavia do mesmo gavetão saem dois livros quase desaparecidos: “O homem das cartas de Londres”, “O espião alemão em Goa”. E há um terceiro ainda:”Uma agente dupla em Lisboa”. Quem os quiser (e faz bem!) vai a www.omundoemgavetas.com e encomenda. Todos os books trazem a assinatura fatal de José António Barreiros um advogado que foge à regra (ainda bem digo eu...).
Atentos também, ó leitores estúrdios a uma editora que ameaça dar que falar: Sudoeste. Ao leme dessa nau está o milagreiro João Rodrigues, um doido furioso que só publica o que gosta! E tem bom gosto o desgraçado!
E agora a razão do título. Conheci-o pequeno, parvo, com pés grandes, calçava 45 biqueira larga e ia para a praia metido numa gabardina. Depois cresceu, manteve as mesmas patas se calhar ainda maiores, fez jornalismo do melhor (e onde continua) e começou a ilustrar livros. E que ilustrações, valham-nos SS. Dalmácio, Anastáscio, Sabas e Santa Crispina virgem, cuja festa calha hoje! Raios partam o catraio que sabe daquilo que se farta. Atenção a uma edição da “Mensagem” do senhor Fernando Pessoa, o virgem negra segundo Cesariny, ilustrada por Pedro Sousa Pereira. Pedro Sousa Pereira, repito. Não esqueçam este nome.
E mesmo para terminar de vez: quem anda à procura de gastar mais algum em pintura & similares procure por Bárbara Assis Pacheco. Ainda não é cara mas em contrapartida é muitíssimo boa. Bárbara Assis Pacheco, lembrem-se...

PS: já estou a ver alguém a dizer que faço propaganda a amigos e conhecidos. Desengane-se essa alma do demo. Eu sou cão que conhece dono, é verdade, mas não faço fretes culturais. E se digo bem do J.A. Barreiros, do Pedro e da Babá é porque garanto a sua boa qualidade. Repito, soletrando, Q U A L I D A D E! Há melhor? Claro que há, mas estes, apesar de meus amigos, são mesmo bons e não será pelo facto de os conhecer que os não iria citar. Têm luz própria e esta mãozinha que lhes dou é a mesma que me faz propor um ou dois Voltaire acabadinhos de sair nas franças e araganças: “correspondance Voltaire-Vauvenargues”, ed du Sandre 11€ ou “le monde comme il va” Gallimard, col Folio 2€! Perceberam ou precisam de um desenho?

durante uns dias vou até Lisboa ver exposições, mãe, irmão, sobrinhos e um tio porreiríssimo. Com sorte até vejo a prima Maria Manuel. quero mostrar-lhes que já perdi 10 quilos! Dez! Estão pois livres de mim durante três inteiros dias.