28 abril 2006

Voltaire, o gato
(in memoriam)

Chegou lá a casa, pequenino e felpudo. Raça indeterminada, isto é sem raça que se visse. Sem pedigree. Gato do povo, arraia miúda. Preto retinto mas luzidio como o melro de Junqueiro. Magro como um cão, se isso se pode dizer de gato pequenino, praticamente de mama. Que os gatos não gostam de ser confundidos com outros animais. E sobretudo com cães. Como Voltaire, o gato, me dizia: a canzoada ladra mas não morde, aceita um dono desde que este lhes dê de comer. Aceita coleira, trela e outras tropelias inomináveis. É mesmo capaz de lutar contra os lobos, primos dela (canzoada) mas pouco dados a civilidades. Ná, magro como um gato, se faz favor. Magro como um gato dos telhados.
Ao fim de pouco tempo, o gozo do gatinho esmoreceu entre os restantes humanos lá de casa. Não em mim, diga-se, que lhes aprecio a grácil felinidade, a perigosa indolência e o asseio. Os gatos são criaturas de um asseio extraordinário. Tem a sua retrete, não andam por aí á toa a mijar tudo. A menos que queiram marcar um território, mas isso é outro contar. E a retrete exigem-na limpinha, areia nova quase todos os dias, ou todos até se for preciso e se lhes quiserem fazer esse pequeno mimo. Eu fazia. Melhor: quem fazia era a fiel Margarida, empregada dos meus sogros que viviam na parte de baixo do nosso duplex.
Ou nós vivíamos na parte de cima, para ser mais rigoroso. Uma casa espantosa, ali à avenida do Brasil (no Porto colegas bloguistas, no Porto frente ao mar). No último piso. Da nossa casa nem víamos a avenida, só uma réstea de areia e o mar. E a América, Nova Iorque, para ser mais preciso, em dias de muito sol e vento a favor. Bom a América, propriamente dita talvez não. Mas imaginávamos. E naquela idade a imaginação era tudo o que nos restava. Imaginávamos um país livre e fraterno, por exemplo. E um feriado no primeiro de Maio. Éramos novos, claro.
Ainda que nisto, de imaginação, as coisas as vezes fossem mais além do permitido.
Então não é que um dia acordei e dei de caras com um navio a metros de distância, um barcalhão enorme que parecia querer entrar por uma varanda entre telhados onde se podia tomar banhos de sol absolutamente nu.
Primeiro pensei que ainda não tinha acordado. Depois suspeitei que ainda estava bêbado, logo eu que só lhe dou (moderadamente) no vinho e na cerveja! Depois pensei que era por ainda não ter tomado café. Finalmente rendi-me á evidência: aquele barco era um barco. E naufragado! Ai manas, um naufrágio á porta de casa, logo a mim, figueirense de Buarcos, leitor de Verne e Salgari. Que emoção.
Era mesmo um barco naufragado. Discuti isso gravemente sentado no muro que separa a explanada da praia munido de uma bica que um empregado diligente da “Ressaca” (já não há, puseram lá uma merdunça qualquer, banco ou algo idêntico em vez do café) me ali levava por mais cinco tostões. Um barco gigantesco carregado de milho. Milho que um bando de pobres carregava afanosamente. O Manuel António Pina, com aquela veia que o distingue deu um título ao naufrágio: “o primeiro milho é dos pobres!” Ai eu dava uma mão para ter escrito aquela frase. Mão metafórica, quand-même!
Mas perdi-me: estava a falar-vos de Voltaire o gato. Voltaire cresceu pois naquele ambiente simpático da parte superior de um duplex que por sua vez era o último piso mesmo em frente à praia do Molhe. De vez en quando desaparecia por umas horas numa circum-navegação pelo telhado. Voltava com o focinho cheio de teias de aranha. Mas via-se que vinha derrotado. Não havia ninhos naquele prédio recente, nem ratos no telhado. Voltaire, contrariado comia do nosso tacho, que remédio.
Tornámo-nos amigos, cúmplices mesmo. Eu quando chegava ao fim da tarde, chamava por ele e ele nada, raspas de nada. Eu dava três passos cautelosos e ele, zás, atirava-se a uma das minhas pobres canelas e fingia que ma mordia. Eu fingia que me assustava. Depois fazia-lhe umas festas, despia a fatiota, acendia o rádio e instalava-me no sofá deitado com um livro nas mãos. E o Voltaire das duas uma: ou se instalava em cima do rádio já quentinho ou preferia a minha barriga. Patada aqui, patada ali ia-me acomodando para se sentir confortável. E depois dormia o sono dos gatos que não têm dono mas que fingem ter para poder usufruir de uma barriga cómoda onde dormir.
Foram dias felizes estes que passámos juntos. Dias, meses, um ano ou dois. Até que alguém se intrometeu na nossa vida. Alguém achou que Voltaire, o gato, deveria ser capado. Ocultaram-me tão sinistro desígnio mas caparam o desinfeliz à mesma. Quero crer que Voltaire nunca aceitou a condição de eunuco. Vai daí entristou e morreu como um passarinho. Como um passarinho não. Como um gato que não aceita ser meio gato, mesmo gordo e manso. Nunca mais quis ter gatos. Também já não moro ali. Já não tomo café no muro. Já não há café. Felizmente ainda subsiste, rente à praia, bar do Ferreira. Onde muitas vezes eu e o Manel Simas tomamos um café com o Mário Brochado Coelho. E com a Laurinda, a Olga e a crazy Grazy.

Mas isto, o mar, o café no Molhe, Voltaire o gato, vem tudo porque me não atrevo a falar do Manuel Silva Araújo que foi hoje a enterrar. Era mais velho, eu sei. Mais sábio. Pertencia a uma geração diferente. Como o Luís Fortuna de Carvalho. Gente que frequentava a Leitura, a Árvore, o S. João, gente que também sonhou um pais livre e insubmisso. E fraterno. Gente que era o sal da terra. Gente que, como Voltaire, o gato, não tinha patrão, nem coleira, nem trela, mas que em lhes fazendo um favor, um mimo, podia ser, se caso fosse, “cão que conhece dono”, isto é gente que sabia distinguir a generosidade e sabia ser grata.
Morte, onde está a tua vitória?

Vai esta para a Maria Helena Silva Araújo e para a Xana Silva Araújo. Com um beijo e uma lágrima. Muitas lágrimas.

Os leitores e os camaradas de incursões que me desculpem. Ocupo demasiado espaço. Mas não sou eu que quero são as coisas que acontecem demasiado depressa.

estes dias que passam 23

O caso da leitora bonita

Esta que está agora a sair devia ser dedicada ao Francisco José Viegas, que se apresenta sempre, ou quase, como escritor “de livros policiais” mas apesar de ser um tipo simpático não abicha: é a primeira vez que dou ao dedo algo em tom de mistério e uma primeira vez é apesar da idade (minha) sagrada.
Eu tenho um carinho enorme pelos “policiais”. Li daquilo ás toneladas. Desde a “Vampiro” ( e a XIS!, não esqueçamos) colecção nobre à “série noire”, li montes de portugueses com nomes estrangeiros (Ross Pyn ou Denis McShade, respectivamente Roussado Pinto e Dinis Machado), li e leio espanhóis, italianos, franceses e alemães, russos e indianos, enfim, li tudo o que passou ao alcance da pistola. Enfim, acabei de medir e acho que tenho vinte metros de livros policiais. Passante, até! Aliás, circulam nas entranhas deste blog duas farmácias de serviço com conselhos sobre policiais recentes.
Ora acontece que, estava eu a sair da última sessão da Literatura em viagem quando fui abordado por uma senhora bonita (insisto no adjectivo) que nos cumulou, a nós incursionistas, de amabilidades. Deveria, logo na altura, ter-lhe pedido a identificação, porque leitora bonita que nos pilha a descer do cavalo pode significar sarilho como aprendi com o inolvidável Chester Himes, verdadeiro pai do romance negro quanto mais não seja porque era ele próprio negro.
Mas também é verdade que se soubesse logo todas as coordenadas da senhora, lá se ia o mistério. E eu precisava de um mistério para me estrear na literatura policial. E para homenagear, "bloguesse" oblige o Erle Stanley Gardner. Tanto mais que biograficamente fiz sempre o papel do bandido, como já também aqui tive oportunidade de referir. Portanto foi mister eu escrever sobre ela (cfr. Estes dias nº 22 e um que outro comentário aqui) para ela sair da toca. Como saiu. Com a cartinha que ao fundo se lê. E que passo a responder: E a nossa heroína diz duas ou três coisas que se respondem: que estava horrorosa; que já passou dos quarenta; logo que não era ou podia parecer bonita. Mais diz que nos lê que há por cá um discurso limpo sobre a justiça, que alguns textos lhe lavam a alma e lhe agrada o que adivinha em nós, concluindo que talvez por isso merecesse uma referencia.
Ora pratiquemos, queridas irmãs e irmãos (esta é fruto da influência nefasta de frei Delfim das Cinco Chagas):
Ainda não conheci mulher que fosse capaz de aceitar uma apreciação natural e feita sem outra intenção que não seja a expressão da verdade. A gente vai e diz-lhe “Mira que hoy vienes la mar de buena!” num belo castelhano e logo a bela começa: que não, que até está com uma impingem na parte de dentro da orelha esquerda, que está velha e relha, que o vestido está descosido, que lhe dói a barriga, o coração, o fígado ou alguma outra impronunciável víscera, que o cabeleireiro lhe queimou as pontas...” enfim, um recital de desastres que a fazem parecer a irmã feia da bruxa má.
A malta( nós, a macharia burra e inocente) insiste: “Homessa, tas enganada, ainda gastavas um belo par de meias solas!” E elas suspiram: “pois mas isso és tu que não distingues o binómio de Newton de um poema de Soares de Passos, coitado, tens boa vontade mas Deus fez-te assim, vesguinho e destituído, havias era de me ver há (5, 10, 20 [é só escolher]) anos. Então sim, sempre havia quem me visse. Agora não passo de um great american disaster.” E por aí fora.
A segunda parte é dizer-nos: “Não vês como estou velha, antiga, uma carcassa, como a Torre de Belém mas sem sequer estar classificada como monumento nacional?”
A maior parte da rapaziada chega aqui e desiste. Que se lixe a taça. E raspa-se direita a um bar onde há uma roda de amigos e mete-se furiosamente a discutir futebol coisa que até há pouco tempo só os homens discutiam. Ou vai jogar snooker com dois compadres. E jura para si próprio que nunca mais dirá a uma mulher que ela está bonita, que traz um vestido que lhe cai bem, enfim coisas normais, sem cheiro a cama.
Ah mas isso ainda é pior: é trocar o furacão Katrina pelo Terramoto de 1755. Porque se não disserem nada, logo elas, directa ou indirectamente, vos fincarão uma garra envenenada e dolorosa no lombo. “este tipo não vê um boi à frente do nariz, é um seixo com olhos, nos olhos tem antolhos, nestes cataratas e nas cataratas nadam glaucomas que nem o dr Barraquer vence. Os homens são assim, egoístas, tapados, catatónicos e cristalizam no ortorrômbico (que era o sistema mais sacaninha da geologia do meu 5º ano dos liceus: nunca consegui perceber aquilo e façam o favor de mo não explicar que só a sua menção me dá uma dor de cabeça imensa).
Portanto, leitora bonita. A primeira parte do seu e-mail é um silogismo péssimo, mal feito, pororoca e é dado como não escrito.
A segunda parte, ah a segunda parte, é leite e mel, para a tripulação do incursões sem til. E respondendo por todos, da Sílvia ao JCP, da Kami ao Forte, da "o meu olhar” ao frei Delfim, ausente em parte incerta, coberto de cilícios e em abstinência absoluta de víveres, e da restante tropa que por aqui estabeleceu quartéis, receba um reconhecido beijinho. Porque isto, nós, escrevinhadores desta coisa passageira, como a chuva de Verão, não somos pessoas de circuito fechado. Escrevemos porque esperamos que alguém nos leia, que alguém nos acompanhe, que alguém diga “era isto mesmo o que eu queria dizer”. E de pouco nos bastamos nesta pequena cabotagem ao longo da costa. Qualquer “olé” de um passageiro, qualquer aceno da margem, fornece vento, ou carvão, até ao porto seguinte. Palavras como as suas carenam o barco para mais umas poucas milhas, animam-nos e vão permitir continuar a dizer alto e civilizadamente o que talvez muitos dizem baixo porque pensam estar sós. Não salvamos o mundo, claro. Mas não nos calamos. E, para usar uma imagem do Professor Teixeira Ribeiro, pouco a pouco a nossa verdade alarga-se como uma mancha de azeite num pano limpo.

Caro MCR,
Encontro-me numa situação, no mínimo caricata. Imagine que, visitando como faço sempre e, às vezes, várias vezes ao dia, o Incursões, encontro uma referência a uma leitora bonita que se lhe apresentou no LEV como leitora do Incursões. Ora, tendo eu já ultrapassado a barreira dos 40 há muito tempo e tendo-me apresentado pouco produzida e revelando o cansaço de uma semana trabalho intenso, não poderia ser essa leitora. Mas, por outro lado, eu também me apresentei e também lhe falei no Carteiro e só não lhe disse que gostaria de um dia ser recordada pelos meus sobrinhos como o MCR há dias o fez quando falou na tia que o iniiciou na leitura , por falta de tempo. E também foi por falta de tempo que não lhe disse que recomendo o vosso Incursões a todos os advogados que conheço - e alguns até estacionam lá por casa - como um blog feito por um grupo de cidadãos livres com um discurso limpido e cristalino sobre a justiça (ou o sistema). Também foi por falta de tempo que não lhe disse que no Incursões leio textos que me lavam a alma, porque são autênticos hinos à amizade, e à sobrevivência. Também por falta de tempo, não lhe disse que adivinho, mais do que rostos, vivências e experiências que me agradam e fazem do Incursões um dos meus blogs favoritos. Também por falta de tempo não lhe disse que descobri o Incursões por "acaso", numa pesquisa para um trabalho .É sempre o tempo "Esse grande escultor" (Yourcenar).
Caro MCR, como vê, eu também merecia uma referência, por pequena que fosse....
Até sempre
M
PS. Já agora, a leitora bonita que me desculpe por lhe ocupar o espaço

Nota especial para a Kami: até já sei copiar textos! E não citei o Carteiro, de propósito á conta do jantar a que ele não foi.

Ainda acerca da Literatura em Viagem...e do nosso Marcelo...

Com a devida vénia a Eduardo Prado Coelho, aqui transcrevo parte do seu artigo, inserido na edição de 4ª feira, 26 de Abril, do Jornal "Público", no qual se dá conta do evento aqui já relatado no "Incursões", intitulado "Literatura em Viagem", uma iniciativa da Câmara de Matosinhos.
Eis o texto:
Uma política cultural:
Eduardo Prado Coelho o fio do horizonte

Regresso de Matosinhos. Como tinha anunciado, haviam programado um encontro de escritores sobre o tema Literatura em viagem. Programador: Francisco Guedes (apoiado pela Paula Guedes). E devo dizer que os convites dirigidos às várias personalidades foram extremamente bem calculados: desde Siza Vieira (e do público que sempre o acompanha neste tipo de eventos) a falar sobre "se as viagens formam a juventude" até (e refiro apenas os últimos dias) Fernando António Almeida a falar da sua experiência pessoal de leitor da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, Ramiro Fonte, que, com a sua erudição e sensibilidade, ilustrou o seu tema da mais sugestiva maneira. Ou, num último debate, coordenado por Marcelo Correia Ribeiro, sobre o tema: Porque é que os homens se movem em vez de ficarem quietos num lugar?, onde tivemos a presença aliciante de Mia Couto, que misturou as suas experiências da terra e da biologia com a sua vocação para trabalhar o português até ao mais puro lirismo, a intervenção, extraordinária de inteligência e capacidade de relacionação, de Alexandre Quintanilha, ou, num registo inteiramente diverso, ou a capacidade efabulatória de Ondjaki (dois moçambicanos e um angolano).Esta foi a arte de Francisco Guedes: misturar pessoas de áreas muito diversas e pô-las perante certos temas que todas de certo modo partilham. Mas nada disto teria sido possível sem a colaboração estreita com a Câmara Municipal de Matosinhos (...).

27 abril 2006

Parabéns

Para além do meu filho, o João Pedro, que faz 10 anos, hoje, 27, é dia de aniversário da Teresa, minha amiga na viragem do século, e da Rosana, uma das minhas colegas de escritório. Parabéns!

Jogar em contra-ataque

Segundo se anuncia em parangonas de jornais, Valentim Loureiro pretende processar o Estado por causa de ter sido arguido num Inquérito e este ter sido arquivado pelo Ministério Público, no DIAP do Porto.
Alega que tal feito o prejudicou pessoal, social e politicamente e por isso pretenderá ser ressarcido, protestando continuamente a inocência absoluta, próxima até da inconsciência da ilicitude( segundo o JN de hoje), e mencionando expressamente uma tentativa de “assassinato político”!

António Cluny, sindicalista do MP, já veio a terreiro dizer, em síntese, que ainda é cedo para Valentim Loureiro falar em processar o Estado, porque além do mais, tem outros processos pendentes no âmbito do mesmo assunto que originou a operação Apito Dourado.

Como a memória das pessoas, nestes assuntos, costuma ser muito curta, seria bom regressar por breves instantes a um passado recente, com cerca de dois anos e recordar como tudo começou:
Em 24 de Abril de 2004, o país foi aturdido com uma notícia bombástica: Valentim Loureiro tinha sido preso para interrogatório e Pinto da Costa estaria em vias de o ser e só o não fora já porque entretanto se precatara…
A PJ, então dirigida por Adelino Salvado, comunicou logo o feito, tendo-se sabido pouco tempo depois que a directoria nacional, em Lisboa, não fora convenientemente informada dos acontecimentos, o que levou à demissão, em circunstâncias humilhantes para o mesmo, do director dessa polícia no Porto. De igual modo, provocou a “deslocalização” dos dois investigadores principais do caso: os inspectores Teófilo Santiago e Massano de Carvalho, desautorizados e humilhados publicamente, pelo novo director que substituiu o demitido.
O comunicado desse dia das detenções:
A Polícia Judiciária, através da Directoria do Porto, desencadeou, a partir da madrugada de hoje, uma vasta acção policial, no âmbito de investigações em curso, destinadas a verificar a existência de comportamentos ilícitos, susceptíveis de alterarem a verdade e lealdade na competição desportiva e seus resultados.No decurso da complexa operação, a Polícia Judiciária procedeu à detenção de 16 (dezasseis) pessoas, dirigentes desportivos e árbitros, com idades compreendidas entre 31 e 67 anos, por haver fortes indícios da prática de crimes de falsificação de documentos, corrupção no fenómeno desportivo e tráfico de influências, tendo realizado cerca de 60 (sessenta) buscas em domicílios e organismos desportivos e autárquicos, para detecção e apreensão de material probatório.A intervenção policial abrangeu uma área geográfica que vai desde Bragança a Setúbal, com especial incidência na zona Norte, implicando centena e meia de investigadores e a permanente disponibilidade funcional das autoridades judiciárias envolvidas.A extensa acção, ora desencadeada, é consequência de investigações, há largo tempo iniciadas pela Polícia Judiciária, visando apurar um conjunto de suspeitas suscitadas quanto ao falseamento de resultados desportivos, obtidos através das arbitragens, e vai prosseguir até à completa clarificação daquelas mesmas suspeitas.Os detidos irão ser presentes às autoridades judiciárias competentes, para primeiro interrogatório judicial e aplicação de medidas de coacção, que forem julgadas adequadas.»

Perante o estrondo do escândalo, logo nessa altura houve quem se pronunciasse contra o espectáculo dos dias e dias de interrogatórios, com os arguidos detidos. O então Bastonário da Ordem dos Advogados, J.M.Júdice, declarou ser perfeitamente escandaloso" e "inaceitável" que "estejam a prender pessoas" para serem interrogadas “por um juiz passado 24 ou 48 horas". E defendeu a necessidade de "acabar com esta prática" e com este "hábito" nas investigações, pois só quando "manifestamente haja fundamentos sólidos que levem a temer com muita probabilidade que a pessoa possa fugir do país” é que deve recorrer-se a este método de detenção para se interrogar.

Como é que se fez a investigação para se chegar a estas detenções?
Não se sabe muito bem, embora tal resulte necessariamente do processo em causa- e talvez devesse saber-se.
Segundo notícias logo veiculadas para os media( no caso o jornal digital Portugal Diário), em violação de segredo de justiça, (sem que jamais se tenha apurado quem o fez) , neste inquérito, 19 pessoas estiveram sob escuta telefónica ordenadas pela juíza Ana Cláudia Nogueira. Há, pelo menos, 35 CD's na posse dos investigadores que contêm conversas entre os suspeitos.
Como foi divulgado também, esses 35 CD´s incluem milhares de horas de conversas que nem todas foram escutadas pela autoridade judiciária, por evidente impossibilidade logística e lógica ( a audição, mesmo se fosse contínua, ocuparia a tempo inteiro, vários meses…)
O que contêm de relevante, para efeitos criminais, essas conversas?! Há quem especule…e vá escrevendo.
De certo, a investigação que decorreu sob a alçada do MP de Gondomar e com vicissitudes variadas e oportunamente noticiadas, resultou em “despacho final, tendo o respectivo magistrado titular optado por aí concentrar três núcleos decisórios distintos, respeitantes à extracção de certidões, a arquivamentos e à acusação propriamente dita.- Ao longo da investigação do caso foi recolhido um manancial de indícios vasto, o qual depois de tratado, permitiu situar factos em pontos muito dispersos do país. Respeitando imperativos de competência territorial, houve então que proceder à extracção de oitenta e uma certidões. São agora os vários magistrados territorialmente competentes que irão analisar o material remetido, apreciando e decidindo, portanto, do destino que lhe deve ser dado.- Na parte do despacho final relativa aos arquivamentos, foram abordadas cento e vinte e sete situações diferentes, das quais noventa e quatro respeitam a jogos de futebol. Sobre tais jogos recaiu análise cuidadosa quanto ao seu desenvolvimento, incluindo o desempenho da arbitragem. Importava, na verdade, averiguar se ocorrera distorção do mérito desportivo de cada qual, conseguida à custa da prática de ilícitos criminais.A partir da abordagem daquelas cento e vinte e sete situações, puderam formular--se, a respeito de cada uma, juízos quer de insuficiência de prova quer mesmo da inexistência de qualquer infracção penal.- Finalmente, o material probatório reunido permitiu ao magistrado titular deduzir acusação contra vinte e nove arguidos, cuja actividade se centrou na área da comarca de Gondomar. Na esmagadora maioria dos casos são imputados crimes ocorridos no âmbito da actividade desportiva ou com ela relacionados.”

Esta transcrição, ipsis verbis, do comunicado da PGR de 2.2.2006, deveria fazer pensar duas vezes, quem ameaça com processos contra o Estado e pedidos de indemnização contra quem o prejudicou e tentou “assassinar” politicamente.
E se tal não sucedeu com Valentim Louteiro , poderia fazer pensar duas vezes quem lhe dá o altifalante para se exprimir, sem lhe recordar também os factos conhecidos e segundo parece, já esquecidos.
Apesar disso, da análise desses factos e das ocorrências que os acompanharam, resultam muitos e variados ensinamentos que o próprio MP e principalmente a Polícia Judiciária, poderiam e deveriam aproveitar para se analisarem procedimentos; corrigir actuações; delinear estratégias futuras e interpretações das leis de processo e práticas correntes, judiciárias e de rotina.
Aparentemente, tudo continua no remanso habitual e pouco se ligou ao exercício de “whistleblowing” soprado pelo então Bastonário da OA e por outros, até mesmo do MP e que escrevem em blogs como este…
Não se admire, portanto, quem não se deveria admirar.

Sindicalismo ou Justiça?

Diz o JN de hoje: Colega do procurador lança aviso ao major


«O presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público lançou, ontem, um aviso a Valentim Loureiro sobre a interpretação do arquivamento do caso Metro do Porto, decorrente do Apito Dourado.

"Temo que o sr. major esteja a pôr a carroça à frente dos bois. Efectivamente ele ainda não foi desresponsabilizado dos diversos factos que lhe são imputados no âmbito desse processo, apenas de um, uma concreta certidão, mantendo-se outros processos em curso", explicou, à Rádio Renascença, António Cluny. Da mesma estrutura sindical faz parte o procurador-adjunto visado sempre indirectamente pelo major. Carlos Teixeira, magistrado do MP titular do processo, é o presidente distrital da delegação do sindicato no Porto. Cluny diz ainda que os magistrados podem ser processados pelo Estado, em casos em que este é condenado (...). »

Não conheço o Dr. Cluny. Nem conheço o Dr. Carlos Teixeira (ver-nos-emos, por aí, um destes dias). Conheço o Major e ele conhece-me. Ele não gosta de mim, nem eu dele (coisas dos tempos de jornalismo). Por isso, creio que sou insuspeito na matéria. E daí, acho que o Dr. Cluny não devia ter dito o que disse. É que o que se passa, não é uma questão sindical - é uma questão de justiça.

Acho que o dever de reserva, aqui, seria o mais aconselhável. Mas, pronto...

(Anda lá, Joaquim Manuel, pões a cabeça a jeito e depois queixas-te...)

26 abril 2006

Do discurso do Presidente da República

Do artigo de Vicente Jorge Silva, publicado no DN de hoje, 26 Abril 2006, intitulado "25 de Abril: as surpresas de Cavaco", e o qual acabo de ler, respigo estes importantes excertos, que nos merecem alguma reflexão, sobretudo por parte da classe política dirigente.

(…) Cavaco fez um discurso contra-corrente - contra a própria corrente em que nos habituámos a situá-lo, contra a corrente onde identificamos muitas das personalidades (e interesses) que o apoiaram, e, finalmente, contra a corrente da agenda política e mediática.(…).

(…) E elegeu um tema a que não era suposto estar tão atento e sensível - esse tema "oculto" ou sistematicamente obscurecido pelo ruído ambiente que é o Portugal silencioso, remetido para as margens da exclusão social e da desertificação territorial, o Portugal desprovido de defesas ou representação política e corporativa, o Portugal desprezado e "improdutivo", "deixado por conta" nos critérios economicistas e tecnocráticos da competitividade e da rentabilidade (…).

(…) Discurso de "esquerda", de compaixão, de solidariedade, de alerta - que importam as definições? O que importa é a gravidade emprestada pelo Presidente ao compromisso cívico concreto que propôs aos portugueses e a que teremos de responder por acção ou omissão (a começar pelos que nele votaram nas últimas eleições) (...).

Creio que os rótulos e definições apriorísticas são cada vez menos importantes e cada vez mais redutoras.

Au Bonheur des Dames 23

Porque dambulam os homens em vez de ficar quietos?

Permitam-me que comece por uma anedota vivida e sobrevivida, como verão de seguida. Nos idos de 62, durante uma famosa crise académica, fui, com mais quase trezentos estudantes, preso depois de ocupar a sede da Associação Académica de Coimbra. Esta pequena multidão foi levada para o quartel da guarda republicana e, à falta de melhor, metida no refeitório, que seria a única sala onde caberíamos. Quando percebi que estávamos ali para ser feita uma triagem entre maus, muito maus e péssimos, temi pelo meu futuro imediato e fui passear para o fundo da sala. De pouco me valeu tal deambulação porque a breve trecho ouvi o meu nome e como me fui aproximando lentamente, repetiram-no duas vezes e em tom crescentemente ameaçador. Depois com mais cerca de cinquenta escolhidos partimos para gozo de férias à custa do Estado numa prisão à beira mar.
Para não perder o fio à meada, eis aqui uma primeira tentativa de resposta ao tema que aqui nos junta. Deambulei, ainda que pouco, e com menor êxito para evitar o momento da verdade: malhar com os ossos em Caxias. Adiar o inevitável, para ser mais preciso.
Desculpem se começo com uma historieta. É apenas um truque para ajudar a passar o resto da minha intervenção que corre o risco de ser sensaborona.
Um moderador deve ser moderado no que vem dizer: refugio-me pois em três ou quatro recordações de leituras que apesar de antigas me tem acompanhado sempre.
E poderia começar pela história do patriarca que vindo de Ur foi errando pelos imensos espaços do médio oriente semeando pão e filhos. Alguns desses, à voz de Moisés despediram-se do faraó e partiram em busca da terra onde correria o leite e o mel. Quarenta anos terão andado perdidos entre dunas que se sucediam às dunas, alimentados pelo maná que um Deus longínquo lhes enviava ou, como creio, por um outro alimento menos espiritual mas mais conforme com a tese que queria desenvolver: vagueavam por um deserto cuja travessia não pediria mais que um ou dois meses, movidos pela procura da aventura.
É essa mesma procura que animará Jasão e os seus, o voo de Ícaro, Teseu, a caminho de Atenas ou mais tarde perdido no labirinto. Estes homens sempre em movimento, afrontando mil perigos, usando a astúcia dos comuns mortais dão aos deuses uma bela lição. É que não têm a seu favor a imortalidade destes, essa imortalidade que os convida ao ócio e os torna o pior dos exemplos para os mortais.
E a pergunta reaparece: porque deambulam estes homens? Porque se submetem a todos os perigos, arriscam mil vezes a vida, eles que são apenas mortais?
Tentemos a resposta fugindo do mundo grego, muito nosso e muito próximo: deambulemos, nós também, até Uruk, a cidade das 900 torres onde reina Gilgamesh. Como é sabido, Gilgamesh tornar-se-á amigo dum gigante selvagem, Enkidu a quem manhosamente enviou uma cortesã para o seduzir. Duram sete ininterruptos dias e sete noites as núpcias da bela e do monstro que se converterá em homem e amigo de Gilgamesh. Os dois combaterão monstros, vencê-los-ão mas o perfume fatal da vitória fá-los desafiar a grande deusa Ishtar que finalmente conseguirá abater Enkidu. Depois de chorar o amigo morto, Gilgamesh partirá para o deserto, onde errará desesperado pela ideia duma morte que cedo ou tarde o atingirá. Para a deter encetará uma longa e aventurosa viajem, semeada de perigos extraordinários, ao fim da qual obterá a planta mágica da imortalidade. Quando já regressa triunfante resolve lavar-se numa fonte. Uma serpente, atraída pelo aroma da planta come-a e Gilgamesh não tem mais remédio do que regressar à sua Uruk sabendo-se definitivamente privado da imortalidade.
Eu não sei se esta digressão por um mundo antigo e luminoso, onde os heróis ainda eram possíveis nos dá qualquer pista. Por mim, leitor compulsivo, que sempre viajou acompanhado de livros, que visitou terras onde jamais se perdeu de tantos livros lidos sobre elas, tenho que a viagem é sempre uma tentativa de fuga da condição humana de antemão perdida. Os homens como os autores embarcam numa história que eles próprios escrevem para tentarem assegurar a sua quota-parte de imortalidade. Mesmo que saibam, e sabem, claro, que não a conseguirão. E no entanto, persistem. Como diz o poeta:
caminhante não há caminho;
o caminho faz-se ao andar.

E é essa a sua vitória.


as minhas pacientíssimas leitoras devem admirar-se da pouquidão deste texto, logo eu que, como diz amavelmente o José sou de longas redações. Acontece que como por aí se dirá era apenas o moderador da mesa pelo que entendi escrever uma coisa que não ultrapassasse os 5 minutos, dado que eram concedidos dez aos intervenientes. Aviei pois, a mata cavalos a história de Gilgamesh que é um dos mitos mais extraordinários do médio oriente. E com grande pena o fiz mas apenas queria deixar claras duas ideias: uma a de que os homens devem desafiar constantemente a sorte isto é o designio dos deuses. A segunda será que, mesmo sabendo-se vencidos pela morte, lutam pela imortalidade. Como já contei noutro post a mesa foi alegremente anárquica e por isso a discussão também se pautou pelos mesmos princípios. E as lições que eu pretendia tirar ficaram no tinteiro. De qualquer modo repetiria a aventura.
À leitora que teve a amabilidade de me falar peço que me contacte para marceloribeiro@netcabo.pt com urgência para fins de máxima seriedade, juro.

Será verdade?

Ontem, um quadro da EDP disse-me que esta empresa passará a contar nos próximos dias com um novo assessor jurídico, Pedro Santana Lopes. Curiosamente, ou talvez não, contratado pelo seu ex-ministro António Mexia, que é agora presidente executivo da EDP.

Será verdade? E se for, não há vergonha? Coitada da EDP se precisar de se estribar num parecer jurídico de PSL…

O 25 de Abril em Marco de Canaveses

Ontem, 25 de Abril, tive oportunidade de intervir na sessão solene que comemorou o Dia da Liberdade em Marco de Canaveses, integrada nas comemorações que acabaram por atrair a atenção dos principais órgãos de comunicação nacionais. Referi-me ao período singular que se viveu nesse concelho durante mais de vinte anos e também ao muito que ainda está por fazer, lembrando aos actuais responsáveis políticos as suas responsabilidades.

Mas comecei a minha intervenção, como seria natural, com a evocação do golpe militar que permitiu que a minha geração e as que se lhe seguiram crescessem numa sociedade aberta, plural e democrática. Enalteci a acção dos jovens capitães de Abril e entre eles destaquei, pela coragem, pela humildade, pelos valores, pelo desapego ao poder, o malogrado Fernando Salgueiro Maia.

No poema "O Revolucionário", a poetisa Sophia de Mello Breyner evocou, de forma sublime, a dimensão humana de Salgueiro Maia:

“Aquele que na hora da vitória
Respeitou o vencido

Aquele que deu tudo e não pediu a paga

Aquele que na hora da ganância
Perdeu o apetite

Aquele que amou os outros e por isso
Não colaborou com sua ignorância ou vício

Aquele que foi “Fiel à palavra dada à ideia tida”
Como antes dele mas também por ele
Pessoa disse”

Para o dOliveira: ontem falei a Isabel Pinto, advogada marcoense, na referência que aqui lhe fez. Ficou curiosa e disse-me que viria cá tentar perceber quem está por trás dOliveira. Aliás, quem me antecedeu na intervenção na sessão do 25 de Abril em Marco de Canaveses foi o seu filho, Filipe Baldaia.

Despedida

Despeço-me de ti, as pernas cruzadas sobre o braço do sofá da sala, a música ao fundo, florescida a orquídea, o cão a dormir sem solenidade. A fumaça do cigarro lenta no ar, e nas mãos uma taça de vinho tinto, dos que tu gostas e eu também gosto.

Despeço-me de ti em silêncio . Despeço-me de ti para não ter que me despedir de mim . Uma pessoa não pode viver na dor e na falta a esperar que o tempo volte.

Despeço-me de ti ao som da memória, da visão clara do teu corpo enrodilhado no meu, da visão clara do teu amor colado ao meu. Do teu pranto.
Tantos anos me custaram despedir-me de ti. Tantos anos a conversar contigo sozinha no quarto, a querer beijar-te, a quase ver os teus olhos desejosos a meterem-se nos meus. Memórias.

O amor não é memória. O amor dobra a esquina e temos nosso coração nas mãos. E queremos ofertá-lo a um estranho. Porque por ele o coração saltou-nos do peito. E seus olhos miúdos têm um brilho oculto pela tristeza . E seus gestos diferentes nos atraem, Seu corpo nos chama e o nosso quer atendê-lo. E uma beleza fulge naquele rosto. Nos nossos rostos. E um estranho é sempre um estranho, não és tu, nunca será. Mas a vida usa palavras fora do comum às vezes. E nós, todos nós, queremos amar.

Não é morte, o amor. Nem tempo, nem metafísica, nem psicologias. O amor tem vontade própria, não quer ser explicado. Não vive de reminiscências, elas são apenas a lembrança do que ele um dia foi.

Amor é presente, agora, já. Vida desfraldada , mergulhada no mar, a escalar as encostas das montanhas, a embrenhar-se na selva. O corpo e o que mais pode haver além dele, dedicados a isso. Tu sabes.

Despeço-me de ti ao som de um cello, de séculos atrás, que tu me deste.


Um beijo e adeus.


Silvia Chueire

Dúvidas

Porque deambulam os homens em vez de ficarem quietos? Ou por que deambulam os homens em vez de ficarem quietos? Qual a formulação correcta? A discussão iniciou-se, um pouco mais abaixo, em comentários a um postal de MCR. Todos os contributos são bem-vindos, porque eu gostava mesmo de esclarecer a dúvida. Obrigado.

25 abril 2006

Confiança


Nos velhos tempos, o juiz tomava assento sob um dossel de bandeiras de guerra - e a sua missão inspirava medo, ao contrário, o juiz deve sentar-se sob o dossel da paz e a sua maior missão consistirá em inspirar confiança.
Luis de Oliveira Guimarães (Séc. XX)

Cartas a Ribeiro Sanches 1

Apresentação seguida de No está el horno para bollos

...É da obrigação do juízo humano prever tudo e conhecer as causas das desordens presentes, para evitá-las ou suprimi-las pelo discurso do tempo.”

O autor destas palavras teve por nome António Nunes Ribeiro Sanches, Penamacor 1699, Paris 1783) foi médico de fama internacional mormente na corte russa, enciclopedista de talento, e conselheiro longínquo do Marques de Pombal. Dever-se-á a ele a fundação do Colégio dos Nobres bem como a reforma dos estudos médicos em Portugal. Cristão novo e laico escreveu sobre diferentes temas e nomeadamente sobre economia, pedagogia e medicina. Trata-se de uma das mais lúcidas inteligências do seu tempo e por isso mesmo foi tido em alta estima pelo escol intelectual europeu desde a Rússia à Holanda, da Inglaterra à França. É dele a descrição de Portugal como um “reino cadaveroso sem emenda” e é entre nós (alguns, poucos, pouquíssimos) como autor das famosas “Cartas sobre a Educação da Mocidade” (procurem este título que foi da editorial Domingos Barreira, na internet ou nos alfarrabistas) escritas num português de excepção e contendo textos absolutamente actuais.
Como de vez em quando me apetece escrever textos longos em resposta a alguns textos aqui publicados, decidi iniciar mais esta série (isto começa a parecer um armazém de Secos & Molhados...!) porque me parece não convir a forma de comentário. Já há bastante tempo que esta ideia me roía mas o texto do meu caríssimo amigo Delfim Cabral Mendes acabou por me decidir. Aliás o primeiro título pensado foi “Ad usum Delphini” mas essa expressão denota hoje uma explicação truncada e eu não como dessa broa. Escrevo como penso, tento ser honrado e não sonego os aspectos mais discutíveis ou frágeis das minhas opiniões. Adorava fazer esta facécia ao Delfim que é um homem de bem, culto, admirável administrativista, combativo defensor do que melhor há na função pública, católico apostólico romano sem apelo nem agravo, monárquico e, em questões políticas, absolutamente conservador. Temperemos este acervo de qualidades ou defeitos com uma ideia muito minha: as convicções conservadoras nem sempre terão suficiente base científica. E parece-me que o texto “ao que isto chegou" padece de desinformação ou de falta de informação.
A minha caríssima amiga Kamikaze já lhe saltou ao caminho com muita subtileza ao propor a leitura de Notícias do antigamente onde consta um texto meu de que nem me lembrava: “Para onde íamos em Maio? Para Abril!” E ao lado, um outro “Provisórios e Definitivos” cuja leitura ouso recomendar ao Delfim que ainda não nos frequentava.
Dito isto e apresentada a razão de ser desta secção (mais uma, santo Deus!) vamos às nossas encomendas.

Parece que o Banco de Portugal, versão outra senhora, em 74 e antes do 25 A publicou um relatório de onde CM respiga números lisonjeiros que contradiriam o estado agónico do pais. Do pais que nem uma sobrancelha ergueu para o defender.
Portanto: em 25 de Abril ninguém mas ninguém se deu sequer ao trabalho de defender um regime e um governo “cadaverosos”.
O BP diz que havia 500.000 accionistas na bolsa. Deixa porém no tinteiro a real situação dos mesmos. Ou melhor, esquece-se o queriducho BP que o papel comprado por esses 500.000 não valia sequer a tinta em que estava impresso. De facto, a especulação bolsista de anos anteriores tivera dois resultados, ambos funestos. Não só esbarrondara as pequenas poupanças que compraram por 10 o que valia 2 ou 3 mas também depois caiu a pique com grave prejuízo dos pequenos investidores.
A multidão de que o banquinho do Portugal dos pequeninos fala tinha papel mas estava a ver navios... essa multidão por outro lado era fictícia. De facto toda a gente dava o nome (até eu que tive cuidado de nunca meter nessa bolsa crápula e escandalosamente sobrestimada, dei o nome para outros poderem candidatar-se à compra de mais acções que eram rateadas entre uma população de ignorantes que nem sequer aprendizes de feiticeiro eram).
Os 500.000 deveriam efectivamente ser dez vezes menos ou nem isso. Aliás julgo lembrar-me de algo publicado sobre isso.
O poder de compra era de facto superior ao de 1960 mas o banco, não diz porquê. Esquece que as transferências dos militares (mais de 100.000) nas três frentes de guerra eram grandes e vinham acrescentar-se aos salários das mulheres entretanto entradas em massa no mercado de trabalho justamente para substituir esses homens mais o milhão de emigrantes saídos de Portugal nesses 14 ou 15 anos.
É bom que nos lembremos que saíram de Portugal, geralmente homens entre os 18 e os 40 anos que uma vez nas franças e araganças enviavam fortes somas à família. Ou seja tratava-se de riqueza produzida fora e investida cá dentro.
Há depois os réditos do turismo de massas que explodiu a partir dos primeiros anos da década de 60. Foi um maná!!!
O forte investimento estrangeiro de que o BP fala poderá referir parte do que acima se disse e também a tentativa de investidores turísticos e outros começarem a controlar algumas parcelas da economia nacional. Cuidado porém! Quem investe também desinveste como aliás depois se viu....
Em Novembro de 75 diz delfim que a sociedade estava cansada. Pois estava. Além do mais a população de Portugal aumentara em cerca de um milhão de refugiados vindos das colónias, sem eira nem beira nem ramo de figueira. Um milhão Delfim! Exactamente tantos quantos tinham saído durante década e meia.
Essa entrada de cerca de 20% do total da população residente foi um temível desafio à economia nacional depauperada pela fuga de capitais e pelo recuo sensível das transferências dos emigrantes.
Devo dizer que o que me espanta não é tanto o relativo pequeno empobrecimento dos portugueses (e nisso os retornados deram a volta a este pais) mas o ele ter sido tão ligeiro. O nosso caro Delfim parece esquecer ou desconhecer que a grande crise do petróleo foi exactamente coincidente com o fim do Estado Novo e com os inícios do regime seguinte.
Ó Delfim, então V não vê que se o investimento estrangeiro directo cai, se há fuga de capitais, se a população aumenta extraordinariamente, se os militares das colónias deixam de enviar dinheiro, se as transferências dos emigrantes baixam se o petróleo aumenta, que tem por força de diminuir o PIB, o rendimento nacional e tudo o resto? Ai essa economia política....
Vamos passar agora a esse “grande político” que V pensa ter sido o Dr. Caetano, Marcelo para meu desgosto. Delfim: Caetano era tudo menos um grande político. Não era sequer um médio político. Foi indeciso, deixou-se cavalgar pelo almirante Américo Tomás, nunca se impôs ao círculo dos ultras e foi continuamente desprezado por Salazar enquanto este foi vivo. Salazar sabia da poda, Caetano de Direito Administrativo. E basta. Dirá V que Caetano tinha uma cruz familiar de peso insuportável. É verdade. Que tentava fazer o melhor que sabia. Não duvido. Mas sabia pouco e conseguia menos. Porque estava tudo armadilhado à sua volta. Porque pensava que a brigada do reumático era o exército. Porque não foi nunca, ele um professor tão interessante, capaz de explicar nas tristonhas “conversas em família” aos portugueses, nada de coisa nenhuma. Aquilo era um purgatório, meu Deus! O homem tinha menos carisma que um urso amestrado de circo de estrada. Um urso? Uma cabra de saltimbanco! O Dr. Franco Nogueira ao lado dele era um mestre em comunicação.
Caetano em termos políticos era a ilustração viva do célebre panfleto de Lenin: um passo em frente, dois atrás! Morno, mortiço, sem garra nem chispa, sem autoridade nem apoios, manobrista (a célebre abertura aos deputados do grupo Sá Carneiro e o modo como os deixou cair tão depressa) e inepto.
Um político que se preze não se deixa emigrar à força para o Brasil, resiste, vai à luta exige um julgamento político e público. Caetano no Brasil escreve cartas lancinantes mas não se mexe, não conspira, não faz mais do defender-se molemente em cartas particulares que seriam muito interessantes se não fossem politicamente tão insinceras! Que diabo, o homem parece não ter compreendido o cataclismo que lhe caiu em cima. Para quem nos anos da mocidade era tão anti moderno, anti liberal anti inteligentsia anti não sei quantas coisas mais (e nisso já ia não uma verdadeira irracionalidade filosófica mas apenas uma atitude de poseur de costas quentes) foi triste vê-lo afogar-se numa poça de água pouca e pouco clara.
Mesmo o grito sobre as hienas capitalistas se dele é, é inconvincente. Como é inconvincente a condenação tout court do capital especulativo, se a houve. Então as manobras palermoides dos bolsistas de trazer por casa o que eram? E quando foram? Quando um capitalista vê uma hipótese de ganho aproveita. Se o especulativo dá mais que o produtivo pensa V que ele prefere a segunda hipótese? Por favor: tanta inocência não.
A terceira parte do seu texto, caro DLM não tem nada a ver com as anteriores. Também eu sou contra o desmantelamento do aparelho de Estado ainda que, como já aqui terei dito, ou alguém por mim, que há tarefas de que o Estado há muito não se deveria ocupar. E nem é preciso colocar os funcionários públicos no quadro de excedentes. Desde 97 que não há admissões, são já dezenas de milhares os CIT (contratos individuais de trabalho) e anunciam-se novas revoadas do mesmo. Conheço unidades (antigos “serviços”) onde quase quarenta por cento dos efectivos são POCs ou estagiários, ou seja no último caso, gente que vem por nove meses fazer uma perninha de serviço público. Quando já percebem qualquer coisinha, ala que se faz tarde: rua! Ora qui está uma maneira inteligente de perder gente experiente que custou uma fortuna a formar, de desmotivar ainda mais os jovens técnicos superiores, e de fingir que os serviços funcionam normalmente. Num pais sério isto seria um crime. Cá deve ser um virtuoso exercício de contenção de despesas. O dinheiro que sai em borbotões do bolso esquerdo entra às pinguinhas pelo direito. Esta foi a política do PSD/PPD e esta é a do actual PS versão engenheiro José Sócrates. O outro do mesmo nome preferiu tomar cicuta. Este limita-se a beber água. O outro passou à história. Este arrisca-se a ser atropelado por ela. E porventura a dar origem a uma notícia de 8ª página do género: peão ainda não identificado atropelado por uma carrinha de caixa aberta por circular fora da passadeira.
Assim vai o mundo.
A gente vê-se por aí...
Um abraço




estes dias que passam 22

Esta já está. Para o ano há mais.

Dizia-vos eu, queridas paroquianas, que nos encontros Literatura em Viagem, iria ter uma tripulação de luxo na sexta (e última) mesa redonda (por sinal imponente e rectangular...) que seria por mim moderada?
Pequei por defeito, fregueses meus... Por defeito gordo e deleitoso. Então não é que, perante uma espantosa afluência, se teve de abrir um outro auditório onde um nutrido grupo de pessoas seguiu as intervenções em ecrã gigante?
E mais: querem saber que dois "camaradas"(e nas terras pescadoras e salgadas como Matosinhos ou a Figueira da Foz "camarada" quer dizer membro da"companha" ou, traduzido em moderno e redutor, pescador) da barca incursões, estavam presentes? E que os apresentei um ao outro? Anto meets José, o temível leitor, e vice versa?
E ainda mais (Jesus isto vai num crescendo...) que me apareceu uma bonita leitora nossa, daqui, deste navio espacial que cruza o éter ignoto, e que me disse amabilidades maravilhosas que me fizeram corar de ternura e reconhecimento? E que manda beijos ao Carteiro, sempre esse homem fatal.
Uma leitora, ó amigos meus, uma leitora que algum dia lançou ao ecrã a sua rede curiosa e gentil e apanhou esta troca de mensagens da alegria e da convivência civil, da discussão e do desacordo tolerante e que nos vem lendo até hoje com a cúmplice paciência dos leitores que tomam passagem nesta barca em os colaboradores e comentadores remam não como galeotes mas tão só por sentirem prazer na companhia uns dos outros.
Leitora aparecida e desaparecida entre as ondas da multidão que se acotovelava para pedir um autógrafo ao Mia ou ao Ondjaki, por favor, mande o seu comentário de quando em quando para nos sentirmos mais quentinhos por saber da sua presença.
É que, sabe?, ele há dias de nevoeiro denso nesta navegação à bolina, junto da costa rochosa, e cai-nos bem ouvir a ronca, ou ver a baça manhã nevoenta abrir-se de repente por um foguete de lágimas, um bola de fogo que rebenta lá em cima e desce, lenta, magestosa e protectora, para o mar.
É um outro sol, mais pequeno e próximo mas não deixa de nos aquecer a alma e de nos acompanhar um momento, esse momento indeciso em que as mãos enregeladas já seguram mal o remo, o leme, as redes pesadas.
Mas eu dizia que as coisas correram bem, como se me estivesse a atribuir neste diário de bordo uma importância que não tenho e de que não quero, nem posso, arrogar-me. antes pudesse.
Explicando: ao abrir a sessão, e ao ver aquele auditório repleto, as pessoas de pé ao fundo e ao lado, lembrei-me desta imagem maritima da barca.
À barca, à barca que temos gentil maré, como dizia Mestre Gil no início do Auto da Barca do Inferno, se a memória me não atraiçoa. Foi algo que me ocorreu depois de ter estado com dois outros amigos do meu tempo de Coimbra, a Fernanda e o Amaro, gente do Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra, TEUC, que nos vieram cumprimentar ( o outro dos saudados é o Fernando António Almeida, autor de roteiros por esse desconhecido país que se chama Portugal. Procurem-lhe os guias pela D. Quixote, umas Vidas Maravilhosas de Santos delirante ou Contos pequeníssimos na Teorema. Verão que a pescaria é boa, abundante e de muito proveito). Em homenagem cifrada a estes três (e ao Anto que comigo foi do CITAC, outro grupo teatral do mesmo tempo) comparei a mesa a uma barca onde, das duas. uma:
ou aquilo era um desses "meios de transporte marítimo" todo cheio de nove horas, de continências e rodriguinhos em que o comandante mcr teria um imediato, o sapientíssimo Alexandre Quintanilha, físico teórico de fama pluricontinental, um engenheiro de máquinas, o Mia Couto e um .... grumete (dada a idade) o notável e talentoso escritor angolano Ondjaki (que com o seu bom amor e a sua perigosa juventude, pediu para passar de grumete a maresia como se isso fosse possível, ai que menino mais endiabrado você tem mamana? Menino assim a fazer gazeta à escola todos os dias, quem já viu?)
ou uma barca dessas que vão sempre junto á margem e transportam passageiros de circunstância, em que mcr era o remador e os três preopinantes já citados seriam passageiros pagantes da travessia.
Optei por esta segunda hipótese mais consentêa com a realidade das coisas.
Barca pouco remada, lenta, sem rumo fixo, ao tom e ao som das intervenções dos passageiros e dos gritos de terra (do auditório). Intervenções que deveriam levar dez minutos estenderam-se espraiaram-se por outros tantos ou mais. Até o Alexandre Quintanilha que, minutos antes, me jurara ser pessoa rigorosíssima e pontual mandou o relógio às malvas ( ou melhor ignorou-o ostensivamente apesar de o ter posto ao lado das folhas de apontamentos) e aí vai disto.
O Mia que no dia anterior me confidenciara que só poderia falar cinco minutos acabou por quadruplicar ou quintuplicar esse seu tempo. Ou então é o tempo tropical que é mais caprichoso que este nosso, de cá. Devem ser efeitos do cacimbo...
A falar verdade só eu e o Ondjaki andámos mais ou menos dentro dos limites horários impostos. E mesmo assim... É que ao ser convidado pelo Francisco Guedes para moderar uma mesa eu bem o avisei: Chiquinho, mano, eu sou, nisto de literaturas e similares, mais pró anarca. É um risco enorme pôr-me a polícia sinaleiro de escritores e outra gente de maus costumes.
Mas o Chico não tem emenda. Insistiu. Eu, que gosto mais disto do que de marisco, aceitei, claro, contente que nem um cuco. E pronto, naufragámos não pela carga de pimenta ou especiarias mas porque a coisa corria bem disposta perante um público muito interventivo de onde saiu de tudo. Bom, assim assim, discurso nacionalista, um toque subtil de feminismo, outro tanto de poesia e bom humor. E eu na maior. Qual hora nem meia hora, venham daí mais cinco como diria o querido Zeca Afonso. Ultrapassámos todos os limites e mais seria não fora saber que o restaurante não podia esperar mais por nós. Eu deveria ter contado a parte substancial, referido mais as intervenções mas que querem, acordei à uma hora e pouco com o calor, sentei-me aqui e...saltam mais duas de escrita anárquica, para a mesa do canto. O Anto e o José que me corrijam a rota, o diário de bordo e proponham ao armador um correctivo adequado para tão mau mas grato marinheiro de água salobra.
E à leitora anónima e bonita que me cumprimentou, com permissão da minha mulher (que, uma vez sem exemplo, saiu do serviço só meia hora depois do seu fecho oficial, par me acompanhar!!!...) um beijão enorme e agradecido deste sempre seu
mcr
É 25 A: aproveitem o feriado, passeiem, apanhem sol, comam-lhe bem e... leiam um livro. É uma viagem barata e digestiva. Passem bem.

nota: no próximo "Au Bonheur des Dames" atrever-me-ei a publicar a minha intervenção na mesa redonda "Porque deambulam os homens em vez de ficarem quietos?"

24 abril 2006

O estado a que isto chegou!



Em Abril de 1974, o País estaria farto de um regime forte e autoritário.

Contudo, a sociedade portuguesa estava mais rica e pediria talvez menos Estado e, consequentemente, mais liberdade.

Não obstante, olhando para as estatísticas desse tempo, quem nos dera que o Banco de Portugal agora lavrasse um relatório deste teor:

10% de crescimento económico ao ano;
500.000 accionistas na bolsa;
poder de compra 100% superior ao ano de 1960 quando, infelizmente, começou a guerra que tantos recursos consumiu: humanos e materiais.
Forte investimento estrangeiro;
60% do poder de compra existente na Europa além-pirinéus.

Em Novembro de 75, a sociedade cansou-se de tanta desorganização. Estava mais pobre: 20% de desemprego, com a queda da produção industrial, ruína das empresas, inflação, fuga dos capitais internacionais e êxodo de muita gente empreendedora, que a não há hoje…hoje o que predomina é o capital especulativo, que não o produtivo...Ah! E não esqueçamos a vinda de meio milhão de refugiados da nossa África…

Valeu a pena o golpe?

Também eu me entusiasmei, perante a perspectiva de “grandes liberdades”: Mas, de que serve poder gritar bem alto a nossa discordância, nos dias de hoje, se o Poder faz aquilo que muito bem entende? Faz aquilo que Marcello Caetano nunca faria: o desmantelamento do Estado para entregar os restos às hienas sequiosas do capital mercenário (esta tirada, meus amigos, é digna de um “guerrilheiro” marxista, não concordam?...).


Lembro aqui Salgueiro Maia, do qual aliás tenho uma bela serigrafia. Independentemente da opinião pessoal que se tenha das suas convicções e crenças, foi um puro, e creio que se ele ainda hoje fosse vivo voltaria, uma vez mais, a pegar em armas, atendendo ao "estado a que isto chegou"!

Em tempo: ainda há pouco, ao jantar, visualisei uma entrevista com António Vitorino, feita pela inefável Judite de Sousa, onde aquele afirmou, sem sombra de pudor, que o Estado deveria "externalizar" diversas funções e colocar os funcionários públicos em bolsas de excedentes. Mais razão me assiste...


A última instância do conservadorismo judicial

Um artigo de Carlos Rodrigues Lima e Rui Coutinho, no DN de hoje, que curiosamente se inicia com uma citaço deste post de Simas Santos...

Inexplicável, eu sei.

Diziam-me há dias, por estas bandas: homem, você é um desafio! Talvez seja. Ou, mais do que isso, talvez seja um deficiente emocional. Um tipo de todas as paixões que, pelas circunstâncias, se tornou pouco menos que inexpugnável e que, porque amou tanto e se desiludiu de amor, se tornou um céptico, nunca um cínico, que isso não faz parte do código genético do miúdo que se apaixona, quase pueril. E tenho uma tragédia colada a mim: sou um desbocado. Tenho um imenso sentido estratégico e táctico, sou capaz dos melhores conselhos, sou um combatente (talvez um guerrilheiro), um senhor da guerra, um cavaleiro andante. Mas quando se trata de coisas minhas, sou o desajeitado, o provocador, o inadaptado, o auto-excluído, um tipo de rins pouco flexíveis e de coluna vertebral absolutamente inquebrável, mesmo quando fico inseguro das coisas de que já fui seguro e hei-de voltar a ser.

Sobrevivo assim. Gosto de mim assim, ainda que, assim, coleccione inimigos e perplexidades. Mas gosto de mim assim. Mesmo quando sei que, sendo assim, me prejudico.

(depois de uma interrupção duradoura, continuo o post, que já não será o mesmo)

Por força disso, e por causa de todos aqueles que veneravam a minha inquietude supostamente inteligente e cresceram na minha sombra, porque isso lhes dava jeito e subiram na vida e que depois, quando fui torcionado, me esqueceram, tornei-me um tipo demasidado cauteloso. Não apenas tímido, que isso sempre fui, mesmo quando as pessoas se riam quando eu dizia que era tímido (coisa que até parecia petulância), porque achavam que eu tinha um lata enorme e dizia as coisas a brincar.

Esta noite jantei sozinho. Na minha circunferência. Tinha um simpático e motivante convite para jantar em grupo. Recusado em nome de um compromisso que não havia e que inventei. Não ousei. Fui injusto com quem me convidou. Mas não tive coragem. Fui onde fui para conhecer uma pessoa que queria conhecer. Não quis que parecesse mais do que isso, ainda que eu saiba que o convite foi amigo. Fui eu quem perdeu. Todas as coisas. A sabedoria dos outros e a tese explicada do pássaro ferido na asa.

De Matosinhos com alegria

Dr Ribeiro, I presume?

Não foi exactamente assim, tão á Stanley & Livingstone, que as coisa se passaram mas quase. Eu resolvera levantar o dito cujo da cadeira para ir esticar as pernas no corredor quando fui intimado com gentileza e elegância por uma pessoa que julguei ser o Alexandre Quintanilha cuja chegada se previa a todo o momento.
Disparei em resposta: dr Quintanilha?
Que não, que não era o Alexandre (entretanto já chegou e jános encontrámos, conversámos e preparámos sumariamente as coisas para amanhã, aliás hoje), mas tão só o Carteiro, aliás Coutinho Ribeiro.
O título disto poderia ser então Ribeiro meets Ribeiro para nos mantermos no ingliche do costume. E de facto foi. Eu estava há horas calado coisa que me altera os humores bilioso e fleugmático nesta exacta ordem pelo que como ele, magnânimo diz, a conversa por minha parte foi de bica aberta. Também não é em vão que me chamo Ribeiro (caudal razoavel e continuo de água corrente, diz o dicionário). Poderão sempre retorquir que ele também, o que é verdade mas de facto em questão de dar á língua ganhei-lhe por três comprimentos, ai lá isso ganhei. Deixe lá Carteiro, que V. ganha noutros campeonatos, como todas as leitoras daqui sabem...
até a prima Maria Manuel se enternece ao lê-lo e diz que lhe parece "pássaro ferido na asa"!... A minha própria prima!!! Já não há respeito!
As gentis leitoras já leram o que Ribeiro diz de Ribeiro, aí em baixo da fotografia (ainda por cima o marau tira fotografias e sabe pô-las na internet....) pelo que não me alongo.
A história conta que um antigo Presidente da 2ª República, o Almirante Américo Tomás, terá dito em certa ocasião sobre uma coisa que lhe agradou: Só tenho um adjectivo: gostei!
Não querendo competir com a gramática imponente do ilustre marinheiro atrevo-me a dizer deste encontro com o Carteiro: Só tenho um adjectivo: porreiro!

nota: o encontro Literatura em viagem vai de vento em popa. Hoje o público sobrelotou a sala e ninguém queria arrancar. Foi preciso explicar que já se tinham excedido todos os limites horários.
Amanhã (hoje) pelas 18 horas locais avança a sexta e última mesa redonda. A tripulação é composta de dois moçambicanos autênticos, Quintanilha e Mia Couto, um angolano puto reguila e excelente ficcionista, Ondjaki, e um moçambicano falso, mcr ele mesmo. A ordem do dia será "Porque deambulam os homens em vez de estarem quietos?" e as respostas pela parte que me toca, serão simples, bem humoradas e ditas em português corrente sem rodriguinhos nem erudições tolas. A literatura em particular e a cultura em geral não têm de ser chatas e muito menos um luto. Era o que faltava!

23 abril 2006

E pur si muove

«Como já uma vez disse, a lei do CEJ deve ser profunda e radicalmente alterada. E o que é novo é o facto de o CEJ estar empenhado em contribuir para essa alteração legislativa. Para isso, está já a funcionar um grupo de trabalho, constituído por directores distritais, docentes do CEJ e formadores dos tribunais, coordenado pela direcção, que tem em vista a elaboração de um “documento orientador para a reforma da lei do CEJ”, a apresentar ao Ministro da Justiça e aos Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público no último trimestre deste ano. Ao mesmo tempo, vamos promover um amplo debate público, nos dias 8 e 9 de Maio, com a participação dos Conselhos, Ordem dos Advogados e Universidades, para além de numerosas pessoas que se têm distinguido pelo pensamento a propósito do tema da formação de magistrados, ou em áreas a ela ligadas. Neste projecto procuramos conjugar a reflexão interna, rica da experiência de 25 anos de formação, com a abertura à participação da comunidade, sendo, como é, a administração da justiça um assunto da comunidade.”»

Excerto de entrevista da Directora do CEJ ao Primeiro de Janeiro

Medo

No dia em que os juízes tiverem medo, nenhum cidadão poderá dormir tranquilo.
Sálvio de Figueiredo Teixeira (Séc. XX)

MCR, finalmente

Biblioteca Florbela Espanca (Matosinhos)

Ainda não tinha estado com o Guilherme Pinto vestido de presidente da Câmara, nem com o Narciso Miranda vestido de ex-presidente da Câmara, mas não foi por isso que esta tarde decidi ir à Biblioteca Florbela Espanca, em Matosinhos. E também não foi para ver o Fernando Rocha, o vereador da Cultura, embora tenha gostado de estar com ele e com a mulher - a Paula -, que não via há anos, e com a filha de ambos - a Susana - que já não seria capaz de reconhecer. Fui lá, confesso, com o expresso propósito de conhecer o nosso MCR, que imaginei por lá. Topei-o, mal entrei, porque eu tinha uma vaga ideia dele que não sei de onde me vem. Mas estava indeciso.
Aproveitei um momento em que ele se deslocou para perto do sítio onde eu estava, de pé, que a sala estava cheia, para o interpelar. Ele chegou a pensar que eu era o suprasumo do Alexandre Quintanilha - que debate com ele, esta segunda feira. (TENTO, A PARTIR DAQUI, RECUPERAR O TEXTO QUE AQUI FOI ESCRITO POR MIM, MAS ESTRANHAMENTE FARALHADO E TORNADO INEXPLICÁVEL - obrigado Kami, pelo aviso). Limitei-me a dizer-lhe: Não, sou o carteiro do Incursões! Reconheço: não me pareceu ter ficado minimamente desapontado com a revelação. Começámos a conversar por ali, até que percebemos que estavamos a fazer ruído e, além disso, já tínhamos ouvido o melhor do espanhol José Fajardo, do Francisco José Viegas e do Álvaro Siza Vieira, num conjunto de histórias com muita piada sobre viagens e livros de viagens, com uma sala cheia que, visivelmente, impunha algum respeito ao nosso MCR que, esta Segunda, vai gerir a loja.
Saimos. Para um raio de corredor ao ar livre que tinha uma corrente de ar pouco preocupante para o MCR, mas perigosa para a minha atitude defensiva de correntes de ar, que eu já tive uma pneumonia nos tempos em que vivi na Póvoa de Varzim, onde há correntes de escrita e nortadas perigosas.
Falámos. Falámos muito. E eu fumava. Ora de braços cruzados, ora de mãos nos bolsos. Das coisas que escrevemos, das vidas que vivemos, do passado e do presente, pouco do futuro. Melhor: MCR falou muito que eu sou daqueles que preferem ouvir os que têm mais história do que eu.
Tudo correu bem, até ao momento em que apareceu o jornalista Alberto Serra, que ambos conhecemos. A partir daí, eles começaram a falar de escritores a esmo, de livros a esmo, de histórias de escritores e de livros e eu, menos falador ainda, via as bolas passar, porque só percebi metade da conversa. Ignorante carteiro, a quem não se pode pedir mais.
Colóquio acabado. MCR, simpático extremo, sugeriu que eu fosse jantar com ele. Com eles. E também com a prima escritora que descobriu em mim um pássaro ferido na asa. Eu não podia. Tive pena. Mas fica para outra vez. Que eu gostei de MCR. Gostei mesmo.
(Desculpe, MCR, mas aconteceu aqui uma qualquer baralhação. Creio que o seu texto tenha sido escrito sobre o meu texto original, que, agora, tentei recuperar com o máximo rigor)

Telegrama de Matosinhos

Bom tempo, bom vento bom mar em Matosinhos stop.
Biblioteca Florbela Espanca lindíssima stop.
Literatura em Viagem arrancou com duas mesas redondas descontraídas, divertidas stop.
Público atento muito interventivo stop.
Mulheres na primeira linha de costa , de praia de navegação stop.
Livro de Olivier Rolin "suite no hotel... (?) qualquer coisa (esqueci o título) promete ser divertidíssimo stop Edição da Asa stop.
Janita Salomé continua cantar tão bem como sempre stop. Foi bom revê-lo mesmo que entretanto já não haja livraria Opinião, restaurante !A Trave" pintor, livreiro poeta Hipólito Clemente stop
Prima Maria Manuel entusiasmadíssima ameaça novos livros stop
Francisco Guedes organizador deste festival de parabens stop. Unanime reconhecimento público, escritores e comentadores. O Chico é uma máquina stop.
Presidente Câmara e vereador cultura Matosinhos prometem mais do mesmo e melhor para o ano stop. Assim sim. Assim vale a pena ter uma autarquia stop.
Consta que em Idanha e em Junho haverá um festival deste tipo sob
signo poesia e literatura transfronteiriça stop. Sempre Chico Guedes stop Imparável top.
Tripulação: atenta! stop.

22 abril 2006

Público e notório (*)

segundo Eduardo Dâmaso


"é óbvio que
há magistrados a mais em comissões de serviço,
há promiscuidade a mais entre magistrados e partidos
e nada disso é saudável para a democracia".


excerto do editorial de Eduardo Dâmaso, intitulado "Calma", ontem no DN


(*) Artigo 514ºdo CPC (Factos que não carecem de alegação ou de prova)



21 abril 2006

Caso Joana: reduzidas as penas dos arguidos. Pensamentos a-jurídicos.


"Santos Carvalho, um dos quatro conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça chamados a decidir sobre o futuro de Leonor e João Cipriano, condenados em primeira instância pela morte de Joana, quis absolver a mãe da menina do crime de homicídio." ( in Correio da Manhã).
Para o juiz Santos Carvalho, segundo deixou no acórdão, a Justiça “tem de se limitar à verdade que resulta da legalidade e do valor objectivo dos meios de prova”.
O conselheiro alerta para o facto de, “neste caso, a busca de qualquer outra verdade poder conduzir a um sério e irreparável erro judiciário”.


Às vezes, perante estes casos, sou assaltado por uns pensamentos tão bárbaros!…

Ignorâncias, pois.

O Conselho Superior da Magistratura aprovou, por curta maioria, a entrada do Juiz Moreira da Silva para a a direcção nacional da Polícia Judiciária. Por curta maioria, repito. Não estive lá, não sei, falo pelo que leio. Mas a curta maioria não parece ter a ver com aquilo que eu esperava: a falta de cortesia que o Ministro teve para com o ex-director, o Juiz Santos Cabral. Li - julgo que li - que um dos problemas que se colocava era o facto de um Juiz - Moreira da Silva - assumir um cargo subalterno do director nacional, um Procurador-Geral Adjunto, no caso, Alípio Ribeiro, um magistrado reconhecido. Um Juíz subalterno de um Procurador?! Na minha ignorância, acho que a questão está mal colocada. Mas é a minha ignorância e só por isso não ouso falar de patetice. Imaginemos que o novo director da PJ era um advogado de reconhecido mérito. Presumo que seria indigno que um magistrado aceitasse entrar na equipa. Já agora: os conselheiros do STJ são mais avalizados por serem da carreira judicial do que da carreira do MP ou outros juristas de mérito?

O Processo Ideológico de Desconstrução da Família



A ordem do Ministério da Justiça de Espanha, de que sejam substituídos, dos registos civis, os termos "pai" e "mãe" pelos de "Progenitor A" e "Progenitor B", denuncia um verdadeiro processo ideológico de desconstrução da família.

Atente-se que esta ordem ministerial de alteração do livro dos registros de casamento e nascimento foi publicada no Boletim Oficial do Estado (BOE) já em Março deste ano.

Aqui, em Portugal, pouco falta para a realização deste despautério. Aliás, Portugal vive e move-se, actualmente, apenas soba influência dos “lobbys”.

Pretende-se que a família tradicional se torne numa forma de organização social obsoleta, na qual as relações naturais, surgidas no seu seio, devem ser combatidas.

Mas esta gente não compreende que a filiação não se escolhe: pressupõe um pai e uma mãe que não são aleatórios. Pai e mãe são expressões de uma realidade dual do ser humano.

A estratégia consiste em apresentar, em primeiro lugar, o matrimónio como uma união de carácter puramente contratual, modificável e rescindível a bel prazer dos “cônjuges”que já não serão necessariamente o marido e a mulher.

Ao pretender-se eliminar as diferenças entre homens e mulheres, será o primeiro passo para começar a consagrar-se, através da linguagem e de alterações semânticas, a indiferenciação dos seres humanos, para relativizar os afectos (tão celebrados pelo nosso Alçada Baptista) e para outorgar carta de alforria à anomalia, sobre a qual esses “iluminados” esperam construir o seu admirável mundo novo…

Se não tenho razão, então pergunto: para que existem duas leis, uma acerca da União de Facto e outra sobre Economia Comum?

Com efeito, as Leis 6/2001 e 7/2001, ambas de 11 de Maio, foram elaboradas dando satisfação às reivindicações de várias organizações “gay” e de outros grupos de pressão da nossa sociedade.

O triste espectáculo das duas lésbicas que “tentaram casar” numa Conservatória do Registo Civil desta cidade de Lisboa faz parte do folclore e da propaganda “ gay” que pretende destruir os nossos mais sagrados valores. Se elas podem viver juntas, protegidas pela Lei 7/2001! Então o Advogado dessas senhoras não conhece a Lei? Claro que conhece. O que se pretende é criar todo aquele circunstancialismo que referi no início deste texto.

Ora vejamos: A Lei 135/99 de 28 Agosto configurou uma verdadeira Lei da União de Facto entre um homem e uma mulher que vivam em condições análogas aos dos cônjuges.

Com a entrada em cena da Lei 7/2001, criaram-se medidas de protecção das uniões de facto heterossexuais e homossexuais. Ampliou-se, assim, o âmbito subjectivo da lei anterior.

Reconhece-se agora efeitos jurídicos às uniões de facto homossexuais, mantendo-se, contudo, a exclusividade da adopção plena relativamente aos membros das uniões de facto heterossexuais.

Atente-se no artº 1ª desta Lei: “A presente lei regula a situação jurídica de duas pessoas, independentemente do sexo, que vivam em união de facto há mais de dois anos”.

Há protecção da casa de morada de família (sic), benefícios no que diz respeito ao regime jurídico das férias, faltas e licenças e preferência na colocação dos funcionários da Administração Pública (estão a ver?...). O mesmo regime no que toca a IRS, protecção na eventualidade de morte de um dos membros, pela aplicação do regime geral da segurança social; prestação por morte resultante de acidente de trabalho ou doença profissional; pensão de preço de sangue e por serviços excepcionais e relevantes prestados ao País, nos termos da lei. Em caso de morte do membro da união de facto proprietário da casa de morada comum, o membro sobrevivo tem direito real de habitação sobre a mesma e direito de preferência na sua venda. Está também contemplado um dos membros na transmissão do arrendamento por morte.

Se não acreditam, consultem o Diário da Desbunda, perdão, da República.

Portanto, com esta lei em vigor, pretendeu-se superar o problema da tão propalada discriminação dos “casais homossexuais”.

Afinal, nada lhes falta. São em tudo, equiparados, em benefícios, às pessoas casadas civilmente ou pela Igreja.

Volto ao início. Tal sanha só pode explicar-se por motivos ideológicos, uma verdadeira loja de horrores, um desejo malsão de transformação da sociedade.

Assim, seja-me lícito gritar bem alto: Deixem a "Instituição Casamento” em Paz! Não destruam a Família!

20 abril 2006

Os nossos deputados

O episódio vivido com as faltas dos deputados às votações de quarta-feira da semana passada não pára de nos surpreender. Pelas justificações dadas por alguns e pela desfaçatez com que outros tentam branquear o que se passou.

Um actual vice-presidente da Assembleia da República, Guilherme Silva, diz que tudo foi feito para que tal acontecesse. Porque não devia haver plenários na semana santa (os portugueses não trabalham nessa semana?), porque não devia haver votações ao final da tarde (os deputados picam o ponto e têm hora de saída?), porque se estava mesmo a ver que no final de quarta-feira muitos iriam sair mais cedo (os restantes assalariados também podem ter estes pensamentos?).

Um antigo vice-presidente do parlamento, Narana Coissoró, corrobora tudo isto e diz mesmo que, por exemplo, em dia de Benfica-Barcelona (uns meros quartos-de-final da Liga dos Campeões), não deve haver plenário. Se calhar quando se tratar de uma final europeia o parlamento deveria contratar um charter! Sim, porque o facto de uns quantos deputados do Porto irem a Sevilha assistir a uma final da Taça UEFA e quererem ter a falta justificada só mereceu indignação porque eram…azuis e brancos.

Pacheco Pereira explicitou ontem, na “Quadratura do Círculo”, o que é a vida e os vícios da generalidade dos deputados. Se ainda houvesse dúvidas.

Diário político 19

A 24 de Abril de 74 éramos assim

É com algum pudor que venho hoje aqui. Porque isto poderá ser entendido pelo que não é nem quer ser: um auto-elogio, um pôr-se em bicos de pés, a gritar muito, e esganiçadamente, “também eu, também eu!
Todavia calhou ser assim. Não fiz nada por isso, ou, melhor, só fiz o que tinha de fazer. I were in the right place at the right moment.
Portanto, senhoras passageiras, apaguem o cigarro, apertem o cinto que aí vai disto: o comandante d’Oliveira & Amigos desejam-vos uma viajem aprazível por dois meses alucinantes do ano da graça de MCMLXXIV.
Em 74, este vosso criado praticava de advogado na invicta cidade do Porto. Compartilhava a sua triste sorte um grupo de colegas da mesma fornada coimbrã, a saber António Lopes Dias, Maria Fernanda da Bernarda, Isabel Pinto e José Afonso. Todos a dar duro na advocacia sindical, na pequena advocacia que estávamos em começo de carreira e na defesa de presos políticos. Éramos jovens, buliçosos e o sangue, excessivo e vermelho, fervia-nos nas veias. Reuníamo-nos em casa uns dos outros, conspirávamos tanto quanto podíamos, e com uma série de amigos vindos quase todos de Coimbra (professores, médicos e engenheiros) tomávamos a bica no Piolho, fazíamos jantaradas enormes e baratas no Tripeiro e dizíamos mal do governo. Vários dos nossos companheiros estavam na tropa. Muitos em África e alguns por cá a acabar Mafra ou na primeira recruta antes da partida inexorável. Entre eles, o Zé Afonso, colocado no CICAP juntamente com o Manuel Simas Santos, enquanto o Arménio Sotto Maior, servia no quartel General. E havia mais espalhados por diferentes unidades do Norte, à espera de ir para África ou de, chegado o momento, desertar.
O Zé Afonso, logo que a tropa fechava aparecia pelo nosso escritório para trabalhar um pouco e contar as últimas. Até que um dia...
Um dia, princípios de Março ou ainda fins de Fevereiro, o Zé, anafado e risonho, confidenciou à malta que algo se preparava. Que em Lamego “estava tudo sobre rodas” (sic). A Isabel guinchava, a Fernanda saltava e eu nem se fala. Aquelas reuniões fim de tarde prolongavam-se noite fora em casa da Fernanda e do Zé (Ferraz) com a Joana. Ou em minha casa com a João e a Teresa Feijó. Ou no Marco com a Isabel e o Jorge Baldaia. Ou em casa do Manel Strecht Monteiro e da Lionida. Enfim, andávamos a meio metro do chão, levitantes, sorridentes, a rebentar de esperança, de vida, de juventude. “Agora é que é”, dizíamos. E as actividades conspiratórias paralelas redobravam. Era a edição e venda clandestina de livros proibidos. Eram as “passagens de fronteira” com desertores e emigrados políticos, onde se distinguia, corajosa e lindíssima, a Laurinda Alves, na altura namorada do Manuel Simas que, enquanto estivera de delegado do procurador da república em Melgaço organizara uma verdadeira porta de saída com a ajuda do Zé Ataíde e do Zé Teixeira Gomes, cuja mulher, uma brasileira, doida varrida, animava as hostes estudantis nas lutas académicas portuenses. Estávamos vivos, carago!
O dezasseis de Março falhou, como se sabe, mas nós nem por isso desanimámos. O simples facto de haver uma coluna militar em marcha dizia muito do estado das coisas. Ai não foi desta? Fica para a próxima. E salta uma imperial para a mesa do canto! Fresquíssima, que isto está a aquecer!
Entretanto, e disso já não tenho a data precisa, de outros lados, chegavam notícias, propostas, pedidos de ajuda. Uma vez, se calhar ainda em 73, fui do Porto a Évora a pedido do Zé Baldaia, para um encontro com um tropa “porreiro”. À cautela, logo que cheguei, fui almoçar lautamente ao Fialho. Não era por nada mas a coisa cheirava a esturro e, burro velho, achei que se “fosse dentro” era preferível ir bem comido e bem bebido. O oficial “porreiro” era o Dinis de Almeida que me fez um sermão de loucura numa sala lindíssima e vazia da messe de oficiais. Vazia, não, que num canto, esgazeada e encolhida de pavor, uma senhora ouvia tudo com olhos redondos. Terá tido tanto medo, que nem se atreveu a denunciar-nos. Estão a ver o clima?
Passado o 16 de Março, continuou a dança e contradança de boatos, segredos, reuniões, um carnaval! Até que entrou Abril de esperanças mil. O Zé tão gordinho como antes, tão secreto como sempre e tão conspirativo como sabia, veio com nova história: agora é que sim! E zás toma lá um papel de um tal “movimento das forças armadas” a pedir já não sei o quê. Os levitantes passaram a um estádio superior de luta: já andávamos a um metro do solo. A coisa começou a adquirir foros de sério, quando o impagável Zé me convocou sigilosamente e me atribuiu uma tarefa, UMA TAREFA!!!
Reunir tantos carros quantos pudesse, com os respectivos condutores para, em caso de azar, rumarem directos à fronteira com os revolucionários em fuga. Em pouco tempo, estavam mobilizados sete ou oito carros. Outros amigos (e AMIGAS, não as esqueçamos!) organizavam redes idênticas. Redobrámos as reuniões e as precauções. Distribuíamos tarefas, senhas, conselhos e esperança. Havia mesmo um projecto louco de guardar um general preso numa casa de banho interior da casa da Fernanda, que não morreria de sede nem de caganeira, dizia o Zé Ferraz, pronto a hospedar o Alto Comando todo se necessário fosse. Construção boa, de alta qualidade, casa nova e poucos vizinhos, entrada directa pela garagem e por um elevador de serviço. Olá Fernanda! Deus te salve, rosa, pastorinha de Bensafrim , aliás de Alcobaça.
A poucos dias (dois, três) do dia D, o Zé informou-nos das senhas, dos discos a passar na rádio, enfim do que vocês sabem todos. Esqueceu-se porém de nos dizer (ou nós nem nos lembrámos) que a senha a passar nos Emissores Reunidos de Lisboa (acho que era assim que se chamavam) não poderia ser ouvida no Porto.
Na noite de 24 a Teresa foi dormir lá a casa. O meu sogro, que já vira muitas, e que em matéria de conspiração tinha curso superior com mestrado e doutoramento, preveniu, placidamente que ia dormir e que só o deveríamos acordar no caso de ser preciso meter-se no carro para levar gente para a fronteira. A mulher do Rui Feijó declarou que estava farta de falsos alarmes e que não acreditava que fosse desta. Se, por acaso, fosse, que a acordassem. O Rui Feijó, roía-se todo e, se o deixassem, também iria dormir lá para casa. Ficou a velar lendo um livro qualquer de que não recorda uma única palavra. Entretanto a João e a Teresa caíram na cama e foi um ar que lhes deu. Adormeceram, num ápice. Eu deitei-me vestido à espera do primeiro sinal, o tal dos emissores de Lisboa. Nada! Se pensam que desanimei, tirem o cavalo da chuva. Atribuí a falta de notícias radiofónicas a
1 à minha inépcia em manobrar um rádio
2 ao proverbial atraso lusitano
Mas quem se deita vestido, de ouvido colado a um rádio, acaba por adormecer. E assim foi. Ou melhor: foi assim durante pouco tempo pois acordei sobressaltado com um comunicado militar ou com a Grândola já nem me lembro. Já está! – uivei. A Teresa e a João saltaram de vale de lençóis em trajes menos que menores. Num ápice liguei para a Fernanda. Interrompido. Bom sinal. Para mais dois ou três compinchas: interrompido! Para o Rui Feijó que achava que estava tudo perdido. Sem razão, mas o Rui é a pessoa mais pessimista que conheço.
E agora que fazer? Aguentámos uma hora ou duas e aí pelas cinco e meia da madrugada, no valente mini da João aí fomos os quatro. Eu ao volante, o Rui de navegador e as duas criaturas femininas em polvorosa, lá atrás prometendo sangue, suplícios horríveis à pide e fumando que nem duas cossacas. Primeiro passo: rondar os quartéis. Cicap: tudo fechado mas todas as janelas iluminadas. Caçadores, idem. Quartel General, mais do mesmo. As esquadras de polícia sem movimento, a GNR na mesma. As ruas desertas. E nós na ronda. Pelas sete da manhã encontrámos um café aberto. Pouca gente, mas umas caras conhecidas. A mulher de um sindicalista da “ferrugem” que cheirava a comunista à légua, disse-me: Ai se ao menos libertassem os presos políticos... - É para já, respondi-lhe com a segurança dos optimistas. Cafés tomados, ala que se faz tarde para a estrada. Primeira verificação: Miramar, rádio clube. Finalmente uns tropas de arma em riste. A nossa altura de levitação passou para os três metros e meio. O mini parecia um helicóptero... Eu não sei dizer quantos quilómetros fizemos, tanto mais que não podíamos alargar muito a ronda não fosse dar-se o caso de sermos necessários para a eventual fuga. De meia em meia hora, passávamos pelas casas respectivas onde já toda a gente estava acordada e nervosa agarrada a rádios mudos como carpas. Ao meio dia depositei a minha tripulação e fui para baixa. Em Filipa de Lencastre três ou quatro estudantes tentavam lapidar um polícia assustado. Confesso que me regozijei mas movido por uma antiga piedade cristã, interpus-me e salvei o “agente da repressão da justa ira popular”. Com os mesmos estudantes e um par de populares fomos apedrejar o consulado da África do Sul. Cumprida esta patriótica tarefa, despedi-me dos lapidadores e fui até ao escritório do meu antigo patrono Dr. Sá Carneiro Figueiredo a quem forneci detalhada informação sobre a revolução em curso. Doido de alegria, o velho senhor, convidou-me para lanchar mas antes assisti a esta espantosa conversa telefónica com um seu jovem primo que se chamava Francisco Sá Carneiro. E dizia o velho grande advogado: “Oiça bem, Francisco! A partir de agora, o menino é só política. Ouviu? Só política!”
O que de facto veio a suceder. Estão ambos mortos mas recordo-os, mesmo ao Francisco, adversário político e bom companheiro de tantos lanches, com alguma ternura.
Não tive de levar ninguém à fronteira. Nunca mais. Não pude ser herói. Que se lixe a taça! Gozei como um cabinda essas loucas semanas que se seguiram, não perdi pitada, não dormi, recebi em alvoroço todos os exilados que chegavam, o meu irmão incluído. O meu irmão que eu e o Manel tínhamos levado fronteira fora até Santiago.
Foi porreira a festa pá.

Vosso, sempre,
d'Oliveira

Este texto, acabado de sair do Ibook G4 só deveria ver a luz do éter em vésperas de 25. Todavia, sabendo eu , ahimé!, do que a casa gasta, mal o apanhei pronto a servir, ala que se faz tarde. não vá o diabo tecê-las, que eu, nisto de blogues, sou um azelha diplomado. Gostaria de dedicar este textinho aos companheiros deste blog que tão fidalgamente me receberam. É pouco mas vai cheio de boa vontade. Viva o 25 A!