biombo nambam:duas civilizaçõesem contacto
Como nos partimos desta ilha dos ladrões para o porto de Liampó,
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António de Faria, vendo um menino que também ali estava, de doze até treze anos, alvo e bem assombrado, lhe perguntou donde vinha aquela lantea (embarcação) ou porque viera ali ter, de quem era, e para onde ia; o qual lhe respondeu:
- Não cuides de mim, ainda que me vejas menino, que sou tão parvo que possa cuidar (esperar) de ti que roubando-me meu pai, me hajas a mim tratar como filho, e se és esse que dizes, eu te peço muito muito muito por amor do teu Deus, que me deixes botar a nado até essa triste terra onde fica quem me gerou, porque esse é o meu pai verdadeiro, com o qual quero antes morrer ali naquele mato, onde o vejo estar me chorando, que viver entre gente tão má como vós outro sois.
Alguns dos que ali estavam o repreenderam e lhe disseram que não dissesse aquilo, porque não era bem dito, ao que ele respondeu:
- Sabeis porque vo-lo digo? Porque vos vi louvar a Deus com os beiços untados, como homens a quem parece que basta arreganhar os dentes ao céu sem satisfazer o que têm roubado; pois entendei que o Senhor da mão poderosa não nos obriga tanto a bulir com os beiços, quanto nos proíbe de tomar o alheio, quanto mais roubar e matar, que são dois pecados tão graves quanto depois de mortos conhecereis no rigoroso castigo de sua divina justiça.
Espantado António de Faria das razões deste moço, lhe disse se queria ser cristão, a que o moço, pondo os olhos nele, respondeu:
- Não entendo isso que dizes, nem sei que coisa é essa que me dizes; explica-ma primeiro e então te responderei a propósito.
E declarando-lhe António de Faria por palavras discretas, ao seu modo, lhe não respondeu o moço a elas, mas pondo os olhos no céu, com as mãos levantadas disse chorando:
- Bendita seja, Senhor, a tua paciência, que sofre haver na terra gente que fale tão bem de ti e use tão pouco da tua lei, como estes miseráveis e cegos que cuidam que furtar e pregar te pode satisfazer como aos príncipes tiranos que reinam na terra.
E não querendo mais responder a pergunta nenhuma, se foi pôr a um canto a chorar, sem em três dias querer comer coisa nenhuma de quantas lhe davam.
Fernão Mendes Pinto (s.XVI)- Peregrinação