30 abril 2005

noturno

as notas do piano tocam
o ar como se o escalassem
em passos de balé.
atravessam-no leves
chegam a mim em volteios
e pousam
nos meus ombros.

se as colhesse
teria pássaros nas mãos
e o fragilíssimo equilíbrio
entre o silêncio e do som
a tocar-me a pele.
mas colho-as com ouvidos
e sensibilidade .
e minha cabeça dança
na suavidade do noturno.

silvia chueire

Thank you and goodbye, Mr. Percy Heath

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Morreu Percy Heath, o último sobrevivente do "Modern Jazz Quartet". Com ele é toda uma geração que desaparece. O mundo do contrabaixo fica mais pobre, tanto mais que há dias foi-se o Niels Hening Orsted Pedersen. Numa das farmácias, a dedicada a África, lembrei o MJQ. Permitam que mais uma vez, a última, os refira, e deixe aqui uma pequena discografia muito pessoal (e só em cd): Echoes (Pablo, 3112-41), Dedicated to Connie (Atlantic, 7567-82763-2): é duplo; The artistry of MJQ (Prestige, FCD 60-016), Blues on Bach (7567 81393-2), The MJQ Scandinavia, April 1960 (giants of jazz CD 0234): baratinho!!!, The complete last concert (Atlantic, 781976-2) 2 horas e meia de música!!! e finalmente para a menina Amélia: No sun in Venice (Atlantic 1284-2).

Old musicians never die: they are in tour in distant galaxies!

29 abril 2005

Au Bonheur des Dames (de gôndola)


Guia de Veneza para principiantes
(modesta proposta para um guia de turismo cultural)


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1. Veneza não é Aveiro - faltam-lhe as enguias de escabeche, as salinas e a estátua de José Estêvão. Também não tem o Eng. Ângelo Correia e, "porca miséria", barricas de ovos moles.

2. Em Veneza não há mar que se veja. O Adriático é, em termos náuticos, um vago lava-pés perante a grandeza do Atlântico. Também é verdade que do Lido, em dias especialmente claros, olhando em frente pode ver-se a Dalmácia ou, com esforço a Albânia: de Aveiro, por mais que se queira não se avista Nova Iorque. Nem sequer a estátua da liberdade.

3. Veneza não tem estação da CP. Aveiro tem, como qualquer utente da linha norte decerto saberá: entre Coimbra e Porto, o foguete pára e ouve-se uma voz: "Aveiro, estação de Aveiro, previnem-se os senhores passageiros que esta composição parte dentro de um minuto".

4. Tanto Aveiro como Veneza têm, nos arrabaldes, fábricas que lhes dão o indispensável toque de progresso . A primeira possui uma odorífera fábrica de celulose enquanto a segunda apresenta, para quem goste, uma olorosa refinaria em Mestre.

5. Outra semelhança que nos apraz registar diz respeito à indústria de louças e afins. Se Veneza produz "Muranos", Aveiro tem a "Vista Alegre", esta bem mais útil e completa que aqueles, convém dizê-lo sem falsos pudores nacionalistas.

6. Em ambas as cidades há um festival de cinema mas não vamos discutir qual o mais interessante. Em arte os gostos não se discutem e, aliás, foi em Veneza que Manoel de Oliveira ganhou um "leão de ouro", o que prova à saciedade que os portugueses nada devem aos outros, mormente aos italianos.

7. Concede-se, todavia, que o carnaval de Veneza é mais vistosos que o de Ovar. Mas é muito menos divertido que o do Rio de Janeiro, agora, de resto, com sucursal em Viana.

8. Em matéria prisional, porém, Veneza goza de uma característica única: para se fugir dos "Piombi" era necessário trepar aos telhados e, de lá, tentar chegar a porto seguro. A honrada cadeia comarcã de Aveiro permite o recurso a técnicas mais experimentadas quais sejam a de cavar um túnel.

9. O sistema de transportes públicos veneziano assenta numas poucas linhas de "vaporetti" ou em gôndolas, métodos primitivos, demasiado aquáticos para meu gosto dada a possibilidade de cair ao canal ou de molhar a roupa. Isto para já não falar de enjoo ("mal di mare") de que muito boa gente se queixa.

10. Aveiro (masculino) tem uma ria. Veneza (indubitavelmente feminina) tem o Ri del Vin onde, surpreendentemente, só corre água pouco limpa. Aliás, quanto a águas Veneza está servida (águas correntes quentes e frias, "acqua alta" e "acqua piena di merda") mas Aveiro não deixa os seus créditos por mãos alheias (água do luso, colónia, da companhia, aguardente velha, ginjinha e amêndoa amarga - esta última só em casas rigorosamente seleccionadas).

11. Em Veneza há venezianas. Em Aveiro também mas em declínio; agora prefere-se persianas de plástico que duram mais. Aliás janelas com tabuinhas só para bordeis e outros estabelecimentos similares.

12. Veneza não tem personalidade própria. Em francês é Venise, em alemão Venedig e em inglês Venice. Inclusivamente em italiano não é Veneza é Venezia. Aveiro é, lusa e triunfantemente, Aveiro, cá, lá ou na Bechuanalândia.

13. Em Veneza só há casas velhas com a excepção de Casanova que, aliás, se chamava Giacomo de Seingault. Em Aveiro, Deus seja louvado, o progresso é vertiginoso e as casas são todas novas ou, pelo menos, muito arranjadinhas.

14. O doge de Veneza tinha hábitos sexuais bizarros para não dizer deletérios - casava-se com o mar. Como e com que consequências, desconheço. Em Aveiro os duques casavam-se com as duquesas, faziam-lhes filhos e, quando havia oportunidade, ainda fabricavam uns bastardos por mero desenfastio e para não perder o treino. Infelizmente o Marquês do Pombal matou o último duque e, desde esse momento, Aveiro foi uma cidade republicana como se prova pelos congressos que lá se faziam.


PS "C'est triste Venise
au temps des amours morts ...

"Em Aveiro
é tudo porreiro!

O texto como de costume tem anos. Acontece, porém, que o cronista parte para Veneza e, desta vez, vai de cicerone da mulher que se estreia em lides italianas. Como de costume deixa umas recomendações:


Discos: Vivaldi: sonates pour violoncelle (Alpha004) Concertos transcrits pour clavecin (Symphonia, SY00175. Monteverdi: il sesto libro de madrigali (Arcana A321) e Vepres (Raumklang RK9605)
Guias: o incontornável guide du routard para não se deixar lá a pele e o sumptuoso (e quase esgotado) Venise: guides Gallimard! Coisa fina!
Para terminar alguns livros: a impressionante “Civilta di Venezia” em três tomos, por G. Perocco e A. Salvadori (LOA Stamperia di Venezia, editrice) “Histoire de la republique de Venise” de Pierre Daru (Bouquins, Robert Laffont), “Marca de Água” de Joseph Brodsky e obviamente algunns policiais: os de donna Leon, americana expatriada na cidade lagunar e um belíssimo Fruttero & Lucentini (essa dupla maravilha). Há-de ter sido editado por cá com um tírulo deste género: “O amante sem domicílio fixo”. O cronista atreve-se a acrescentar um livro a sair brevemente, por si traduzido: “A Tempestade” de Juan Manuel de Prada, Âmbar.
Para os que vão à Gulbenkian, aos livros, ou e-mailam (atenção José): não percam de Paulo Quintela, as “Obras Completas” volumes 2, 3 e 4. São centenas de páginas de tradução de poesia. Da melhor: Goethe, Rilke, Brecht, Holderlin e Nietzche, entre outros.


A propósito, faz hoje anos que se libertou Dachau. Lembremo-nos disso: para que não se repita!

Seis medidas para descongestionar tribunais

O Governo apresentou, esta sexta-feira, seis medidas para descongestionar os tribunais. O anúncio foi feito pelo primeiro-ministro, José Sócrates, na abertura do debate mensal do Governo, em que a reforma do sector da Justiça é o tema central.
No próximo Conselho de Ministros o Executivo concretizará, através de uma proposta de lei, a redução das férias judiciais de Verão de dois meses para apenas um.
Ler mais na TSF e no Público.

Sindicato dos Magistrados do Ministério Público congratula-se com as seis medidas, diz o Público. Eu também. Quanto às férias, há que aguardar para ver como conseguirá o Governo compatibilizar essa redução com o direito dos magistrados e funcionários judiciais ao gozo dos dias de férias a que têm direito e com os serviços de turno.

REORGANIZAÇÃO DO MAPA JUDICIÁRIO - III

O investimento na Justiça poderá não significar um acréscimo no Orçamento do Estado: bastará racionalizar os meios já existentes.

A especialização poderá ser feita, fora das grandes cidades por Círculo Judicial. Tal especialização poderá trazer uma maior celeridade à resolução dos conflitos e uma melhor qualidade na aplicação da Justiça. Acontece em vários círculos Judiciais coexistirem Tribunais completamente “afundados” com mais de 3.000 processos enquanto a 30 ou 50 Km existem outros com 1.000. Todos a funcionarem em competência genérica, todos tribunais da mesma categoria, o que significa que dentro duma mesma comunidade urbana cidadãos que moram a uma curta distância (às vezes tão curta como a dos limites que separam um concelho de outro) podem uns esperar anos pela resolução dum conflito e outros ver o litígio dirimido dentro do prazo legal.

Ora, se dento dum determinado círculo judicial se determinasse que cada um dos tribunais funcionaria de forma especializada, sediando-se num o Tribunal do foro cível, noutro o Tribunal do foro penal, noutro o do Tribunal do foro executivo e noutros o Tribunal de família e o Tribunal de Instrução Criminal, podere-se-ía com o mesmo número de magistrados e de funcionários reorganizar de forma racional os recursos humanos bem como os meios logísticos para uma funcionalidade mais racional.

Tome-se por exemplo o Círculo Judicial de Caldas da Rainha: no tribunal sede de comarca existem três juízos. Cada um tem cerca de 3.500 processos, em competência genérica. O Tribunal de Peniche, que fica a cerca de 40 Km da sede do círculo tem dois juízos cada um dos quais com cerca 1000 processos por juízo. O tribunal do Rio Maio tem 2 juízos. Cada um deles tem cerca de 800 processos e por fim o Tribunal do Bombarral (este é o único considerado de ingresso) um único juízo com cerca de 1.200 processos. Sublinhe-se que o número de funcionários por secretaria é sensivelmente o mesmo. No Tribunal sede de Comarca existem 3 juizes auxiliares (um por cada juízo), dois juizes de círculo e um Juiz de Instrução Criminal. Existe ainda um Tribunal especializado: o de Trabalho, com um único juiz titular.

Ora, tendo em consideração o número total de juizes, de procuradores, de procuradores-adjuntos, de funcionários da magistratura judicial e do Ministério Público e o número total de processos no círculo, a especialização permitiria uma justa distribuição de processos por juiz, que naturalmente se especializaria também. Tal especialização seria um salto qualitativo na administração da Justiça.

Evidentemente que tal solução carecia de ser devidamente discutida com toda a comunidade forense, de forma a obter consensos e compromissos, porque a organização judiciária deve ser equacionada em função da individualização concreta da vida. “Compreende-se, e consequência, que um deficiente funcionamento dos tribunais, uma aplicação jurisdicional menos feliz ou inoportuna da lei seja reconduzível à injustiça. E aqui, sublinhe-se, a injustiça da solução concreta rapidamente é tomada como injustiça da ordem jurídica. E num crescente generalizar ascendente, como crise de justiça” .

Numa das suas monumentais obras, Alexandre Herculano afirmou: Querer é quase sempre poder; o que é excessivamente raro é querer.”

No início dum novo ciclo governativo impõe-se irrecusavelmente querer dar o qualitativo na apreciação das questões da Justiça, como forma de garantir a ordem social no Estado Democrático de Direito; mas a ordem social é uma ordem de liberdade; ela propõe-se à vontade colectiva e justifica-se pela sua racionalidade, não se impõe cegamente.

O Direito é um fenómeno humano e social, imprescindível a toda a sociedade, é um elemento essencial da comunidade. Logo inevitavelmente a todos nós afecta e a todos nós diz respeito. Um Direito Justo é a estrela polar de qualquer sistema jurídico.

Assumindo as diferenças que separam os diversos profissionais forenses é possível extrapolar a realidade existente e recriar uma nova realidade pela acção conjugada da imaginação e da razão. Ninguém por si só tem a fórmula mágica que porá fim à tão falada “Crise da Justiça”. Só o debate de ideias pode buscar as soluções “racionais” para uma realidade em transe, desordenada, se não mesmo em caos delirante. È de espírito aberto que se poderão buscar soluções úteis e consensuais.

André Mycho afirmou que o espírito “c’est l’enfant terrible de l’intelligence” , mas já o Estagirita foi considerado pelo Oráculo de Delfos o mais sábio de todos os homens por apenas saber que nada sabia. Por isso a sabedoria é um paradoxo. O homem que mais sabe é aquele que mais reconhece a vastidão da sua ignorância.

Uma viva inteligência de nada serve se não estiver ao serviço de um carácter justo. Mas um relógio não é perfeito quando trabalha rápido, mas sim quando trabalha certo.

Está na hora de acertarmos o nosso relógio, o relógio da JUSTIÇA!


ISABEL BATISTA

28 abril 2005

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Paul Eluard

26 de Abril?!

O Dr. Rui Rio, presidente da Câmara Municipal do Porto, resolveu imitar o seu correligionário da Madeira, Dr. Alberto João Jardim, ao comemorar o Dia da Liberdade em 26 de Abril. Como certamente se recordarão, durante muitos anos a Assembleia Legislativa Regional da Madeira assinalava o 25 de Abril no dia seguinte. Et pour cause!
Agora, Rui Rio resolveu seguir o pioneirismo madeirense, chamou os seus apaniguados, que vestiram os melhores fatos, distribuiu umas prebendas e avançou para a pré-campanha eleitoral. Ah… segundo os presentes, não se vislumbrou qualquer cravo vermelho pelo salão nobre dos Paços do Concelho. A bem da nação!

UM ARTIGO MENOS CONHECIDO

Do capítulo dos Recursos, do Código de Processo Civil
Artigo 720º
Defesa contra as demoras abusivas


1. Se ao relator parecer manifesto que a parte pretende, com determinado requerimento, obstar ao cumprimento do julgado ou à baixa do processo ou à sua remessa para o tribunal competente, leverá o requerimento à conferência, podendo esta ordenar, sem prejuízo do disposto no artº 456º, que o respectivo incidente se processe em separado.

2. O disposto no número anterior é também aplicável aos casos em que a parte procura obstar ao trânsito em julgado da decisão, através da suscitação de incidentes, a ela posteriores, manifestamente infundados; neste caso, os autos prosseguirão os seus termos no tribunal recorrido, anulando-se o processado, se a decisão vier a ser modificada.

REORGANIZAÇÃO DO MAPA JUDICIÁRIO - II

Dispõe o artigo 202º da Constituição da República Portuguesa que “os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar justiça em nome do povo”, incumbindo aos tribunais, na administração da justiça, “assegurar a defesa dos interesses e direitos legalmente dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados” . E o artigo 203º da Lei Fundamental afirma ainda independência dos Tribunais que apenas estão sujeitos à Lei. Conforme escrevia o professor Castro Mendes “cremos que a independência é, na verdade, uma característica dos juizes e não mais propriamente dos tribunais” . Assim se entende o nº 2 do artigo 4º da LOTJ .

A Constituição de 1976, (com as sucessivas revisões) não prescreveu para Portugal um sistema judicial unitário. E, para além disto, debruçou-se com atenção diversificada sobre a estrutura e regime próprios de cada uma das ordens dos tribunais que instituiu e cuja criação facultou.

A ordem jurídica portuguesa comporta, pois, diversos tribunais, sendo a medida de jurisdição de cada um a sua competência interna, e um dos factores delimitadores dessa competência é o território e outro a matéria da causa .

Para efeitos de organização judiciária comum a divisão ou circunscrição fundamental do país é a comarca, mas encontramos definidas na LOTJ divisões maiores como seja o distrito judicial e o círculo judicial.

A LOTJ prevê ainda que nos distritos e círculos judiciais pode haver tribunais de competência especializada ou genérica com jurisdição em todos ou algumas das comarcas a ela pertencente

Ensinava o insigne professor coimbrão Alberto dos Reis que “ a jurisdição significa o poder de julgar atribuído, em conjunto, a uma actividade do Estado ou a uma determinada espécie de tribunais; a competência designa o modo como a jurisdição se acha distribuída dentro da mesma actividade ou da mesma espécie de tribunais”

O poder jurisdicional é, no quadro da lei ordinária e no quadro da lei fundamental, um potestad, um poder-dever:” Pesa sobre o juiz o dever de jurisdição, o dever de administrar justiça às partes; e este dever não é senão contrapartida de um direito que a lei reconhece ao autor e a réu: o direito de acção e o direito de contradição.”

Como potestade dimanente da soberania do Estado, a jurisdição é necessariamente única ao contrário do que acontece com as competências. “Não obstante, alerta-se para o facto de se falar em jurisdição cível, jurisdição penal, jurisdição administrativa, jurisdição comum, e jurisdições especiais. Trata-se de um vício de linguagem nada técnica que provém de longa data (...) não existem várias jurisdições, mas várias manifestações de uma só jurisdição, esta a contracenante da acção. Ela é o dever geral de prestar justiça, em correspondência ao direito geral de acção que os particulares têm. Daí resulta que o juiz não possa abster-se de julgar (nº 1 do artigo 8º do Código Civil)”

Mas julgar nos tempos modernos é uma função jurisdicional que a sociedade civil quer actual, eficaz e rápida. Para isso é preciso especializar os tribunais,. As estruturas judiciais aperfeiçoam-se dificilmente porque as necessidades da Justiça superam as possibilidade dos meios disponibilizados pelo poder central.

A Justiça é uma aspiração profunda e uma sociedade é tanto melhor quanto os cidadãos possam obter mais celeremente a resolução dos seus litígios.

Urge que o poder político defina entre as diversas concepções de ordem política-social qual a mais apta a realizar os princípios constitucionais no que concerne à Justiça, supesando o interesse nacional de maneira racional e duradoira, sem preocupações das contigências e conjunturas populistas do momento, antes traçando uma política para o futuro.

“Pese embora a consciência generalizada, que aliás, muito tardiamente se instalou entre nós, de que o sistema de justiça que temos em Portugal não serve, continuam a ser raras as intervenções públicas em que se proponham soluções ou se defendam ideias com frontalidade e sem medo de enfrentar os interesses corporativos que vão sobrevivendo à sombra da inépcia do sistema”

É comummente aceite que urge rever o mapa judiciário. È fácil perceber que hodiernamente o caminho é a especialização dos tribunais, e consequentemente, dos juizes. Já Alberto dos Reis ao perguntar “Que fim se pretende atingir com a repartição da competência entre os tribunais especiais e o foro comum?” afirma: “Procura-se adaptar o órgão à função, procura-se assegurar a idoneidade do juiz; pretende-se que as causas sejam decididas por quem tenha uma formação jurídica adequada. Põe-se assim a matéria da causa em correlação com a preparação técnica do magistrado que a há-de julgar, de modo a obter-se um julgamento mais perfeito”

Claro que a especialização dos tribunais implica um investimento, não em sentido estrito mas em sentido amplo ; um investimento social de que a nação espera um acréscimo de rentabilidade na administração da Justiça. O investimento na Justiça representará, indubitavelmente, um progresso económico e social.

E esta afirmação não é de modo algum uma forma de impaciência respiratória que incita a roubar o oxigénio ao futuro, ou seja, não é uma utopia.

27 abril 2005

suplemento à farmacia nº10

quatrocentos anos e tanta juventude

Eu peço-vos desculpa humildemente, desculpas por vos vir bater à porta a desoras, desculpas pelo meu entusiasmo, pouco condizente, porventura com a minha idade, desculpas, como dizia não sei quem, por qualquer coisinha.
Mas o caso não é de somenos, amigos e companheiros, não é de somenos. Há quatrocentos anos publicava-se o D Quixote pela primeira vez. Ou, por extenso, El ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha (compuesto por Miguel de Cervantes Saavedra, con privilegio en Madrid por Juan de la Cuesta, vendese en casa de Francisco Robles librero del Rey, nuestro Señor).

Tão extraordinário foi o acolhimento deste livro que em 1614, um falsário de nome Avellaneda dava à estampa uma apócrifa segunda parte que obrigou Cervantes a publicar a sua vera segunda parte, onde, com um espírito absolutamente novo, não só refere essa edição apócrifa como intra texto a refuta, fundando num mesmo momento, num verdadeiro big bang literário, o romance, tal qual hoje o conhecemos.
Impérios, nasceram e caíram, milhares, milhões de livros publicaram-se, tiveram o seu momento de glória e foram esquecidos. De alguns só se conhece uma referencia ao título. Outros foram presa das chamas odientas e na própria terra pisada pelo imortal cavaleiro e pelo não menos engenhoso Sancho, correu tanto sangue que parecia ser por isso, por uma predição do futuro, que Cervantes afirma não se querer sequer recordar do nome desse lugar da Mancha onde vivia o fidalgo.
Nessas terras adubadas de sangue e sofrimento a guerra cedeu o lugar a uma pacífica disputa entre pequeníssimas terras que se reclamam de berço duma simples figura literária.
E as pessoas, e não são tão poucas, antes pelo contrario, que conhecem o Quijote de cor e salteado, discutem-no como quem discute a última novela da tv ou o desafio de futebol de ontem. O livro faz parte das suas terras, das suas vidas, do modo como se sentem no mundo.

Entre nós, correm várias edições do livro ( as três primeiras são ainda de 1605!!!) e anunciam-se para breve mais duas, na “D. Quixote” e na “Relógio de Água”. Eu propor-vos-ia qualquer uma espanhola mas estou bem consciente que não é leitura fácil. Ao fim e ao cabo foi escrito há quatrocentos anos. Portanto, avante com uma edição na língua de Camões (e de Mendes Pinto... e de Vieira... acrescento). Contra o meu costume não irei aconselhar qualquer edição. Passei quase dois meses do Verão passado a ler e a rever, página a página, palavra a palavra, uma das novíssimas traduções e não quereria, como calculam, que sobre este tão sincero entusiasmo caísse a simples sombra de uma suspeita.
Assim sendo, por aqui me fico, desejando-vos a intensa, luminosa felicidade de ler este livro inicial e único.
Para leitores ousados, aqui fica uma proposta boa, barata e interessante: a edição do IV centenário proposta pelas academias de línguas de Espanha e dos países latino americanos. Custa menos de 10 €, tem anotações q.b. e letra decente.
Quem além disso quiser ler uma entusiasmante homenagem ao Quijote tem à disposição “Al morir don quijote” de Andrés Trapiello (o fidalgo morre e Sancho e o licenciado Carrasco vão à procura do autor que já os imortalizou: um regalo)

Farmácia de serviço nº10

Cura de emagrecimento

A viajeira Kamikase recomendou-me antes de zarpar para as Eslavónias, menos texto: “faça render o peixe”, dizia-me, tratando-me como um perdulário. Eu não sei fazer render o peixe, K, sento-me diante do iBook G4 e aí vai disto. Mas percebo a intenção e aqui estou a tentar um estilo mais telegráfico. E para já, para já, vamos até à Gulbenkian.
Então não é que a livraria perdeu a cabeça e faz uma feira do livro? Olhem manos, aproveitem que a veneranda instituição tem muito para oferecer. Por exemplo: a revista colóquio letras. Ora aqui vão uns quantos títulos IMPERDIVEIS: 117/8: Mário Sá Carneiro a 100 anos do seu nascimento; 119: Camilo a cem anos da sua morte; 123/4: Antero; 127/8: memoria de António Nobre; 142: literatura medieval; 149/150: Almada; 153/4: Garrett; 157/8: João Cabral de Melo Neto; 161/2 Fernando Assis Pacheco. Há mais, claro, por exemplo o belíssimo nº 159/160 ou os volumes dedicados a Aquilino (115/6), Machado de Assis (121/2) ou Irene Lisboa (131).
Corram, amigos que estas revista (cuja morte é cada vez mais anunciada) é de uma qualidade invejável.
Sempre nesta onda, passemos a fronteira e mergulhemos no inacreditável: A Espanha é o reino das grandes esplendorosas revistas. Telegraficamente citam-se, “Poesia”, "Espacio-Espaço Escrito", "Litoral", "La Rosa Cubica", "La Alegria de los Naufragios". Poderia citar mais vinte mas o respeitinho pela nossa K. é mais que muito. Só há um adjectivo para estas publicações: sumptuosas! Pelo grafismo, pela colaboração, pelos extra-textos!!!
Portanto: para os incursionistas de Lisboa e arredores, está feito. O resto do pessoal, chucha no dedo porque a Gulbenkian ainda não tem um catálogo on line. Todavia, para os que quiserem seguir o meu conselho há a possibilidade de encomendar via internet: vendas@gulbenkian.pt Quem é amigo, quem é?

Postscriptum
falar da Gulbenkian é, para mim, falar de um grande senhor: o Professor Doutor Férrer Correia, um fidalgo doublé dun clerc. A honra da universidade nos anos de chumbo.
Falar de revistas, é para mim, falar de um intelectual rebelde a tudo até ao partido em que militava: Joaquim Namorado. Com ele percebi quanta verdade havia no verso de Paul Éluard:
"A terra é azul como uma laranja!"
A receita é em memoria deles.

Notícia do dia

«Fim dos prazos de prisão preventiva
Libertação do "gang" do Vale do Sousa vai ser alvo de inquérito»
27.04.2005 - 14h36 Lusa, PUBLICO.PT

O Conselho Superior da Magistratura (CSM) e a Procuradoria-Geral da República (PGR) vão investigar as circunstâncias em que foram libertados os três membros do "gang" do Vale do Sousa, um dos quais suspeito da autoria do homicídio de um investigador da Polícia Judiciária (PJ).
Num despacho assinado pelo vice-presidente do CSM, Paulo Guerra, aquele órgão determina a abertura de um processo de averiguações com efeito imediato.
Também o Ministério da Justiça anunciou hoje em comunicado que discutiu o caso com o procurador-geral da República. A tutela indica que "a indiscutível gravidade dos factos" justificou o encontro e assegura que a PGR "vai levar agora levar a cabo um rigoroso inquérito" para apurar responsabilidades e esclarecer a opinião pública.
Os três homens, condenados por assaltos a carrinhas de valores durante cerca de ano e meio e suspeitos do assassinato do inspector da PJ João Melo, estavam em prisão preventiva. Os arguidos aguardavam a decisão de um recurso sobre a sua condenação, mas foram libertados ontem por decisão do Tribunal de Instrução Criminal.
Segundo Noémia Correia Pires, advogada ligada ao processo, a libertação foi determinada por excesso de tempo de prisão preventiva, tendo em conta que o acórdão nunca transitou em julgado, devido à apresentação de vários recursos.
Datas do Processo: 26 de Janeiro de 2001 - detenções dos arguidos; 18 de Abril de 2002 - relatório final da PJ;
26 de Abril de 2002 - acusação do Ministério Público; 6 de Agosto de 2002 - despacho de pronúncia; 10 de Outubro de 2003 - início do julgamento em Penafiel; 13 de Abril de 2004 - acórdão do Tribunal de Círculo de Penafiel; 20 de Dezembro de 2004 - acórdão da Relação do Porto; 26 de Abril de 2005 - libertação de três arguidos."

TESTEMUNHO

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FOMOS NÓS QUE NOS DEIXÁMOS EXPROPRIAR DA FESTA
“Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo”
(Sophia de Mello B. Andresen)

Quem julgar ser coisa pirosa andar agora a dizer-se que se tem trinta anos por causa do 25 de Abril ou é velhinho ou ainda anda de cueiros. É verdade. Nasci nos princípios da Segunda Grande Guerra e… tenho trinta anos e… não sou piroso. É assim mesmo e andei também no PREC e não estou arrependido.Naquele tempo, encontrava-me em terra pequena, de grandes vizinhanças e proximidades, de revoltas camufladas e de submissões a fingir: a necessidade aguça o engenho, mas não compra as almas.Alguns funcionários públicos, da Fazenda e da Câmara, contados pelos dedos das duas mãos; de bancários, o gerente do balcão e o barbeiro que, em tempo de nada fazer, dava uma mãozinha nos formulários; de professores, menos que os precisos; meia dúzia de comerciantes, mais uma pensão para viajantes, de lençóis limpos, águas correntes e comida cheirosa. As almas e as conversas pediam dúzia e meia de tasquitas, em jornada contínua; consoante a hora do dia e os trabalhos nos chãos, abriam--se de quatro a oito cafés.Por ali andava gente; uns morriam a trabalhar na terra, outros, na terra onde havia guerra; muitos tinham saltado para franças e araganças.
De princípio andava por ali; depressa, provei uma ponta de chouriça, cheirei, depeniquei e engulosinei-me com uma morcela; um vinhito medrado ao sol nascente alegrou-me dos pés até à cabeça e das tripas ao coração… Deixei de andar por ali: passei a estar lá.
Pessoas quentes. Pobretes, mas, de maneira nenhuma, alegretes; a submissão era a fingir e as afeições tinham de ser merecidas. Quem passa a vida a trabalhar na terra ou a morrer na guerra guarda as sementes da liberdade e aprende a conhecer quem vai na carruagem muito para além da aragem.Pagavam foros que alguém estuporava nos casinos, mas cheiravam a sombra do cobrador e adivinhavam-lhe a chegada: o vento havia levado parte da sementeira, o lobo comido uma rês e a trovoada tinha encharcado o faval: sempre ficava qualquer coisita que não ia parar ao casino.
De vez em quando, aparecia um forasteiro, de chapéu descaído, olhar de estrábico a mirar as pessoas de cima da burra; entrava e saía dos comércios, a tentar contar os leitores do “República” (éramos quinze, sim, senhores) e a “Seara Nova” (aí éramos menos…); sentia tudo frio, logo que chegava; em dias de lume aceso no café, espetava aqueles olhos desgraçados do glaucoma no quentor do brasido…mas a roda estava feita e apertada… já não cabia mais ninguém à lareira.Quis vingar-se, o malandro, mas já não teve tempo: surgiu “o dia inteiro e limpo” que nos ofereceu “a substância do tempo”. É que, sempre que alguém instalado na burra começa a perder o equilíbrio e os que fazem a limpeza aos cascos já não suportam a bosta, ocorrem as revoluções. Está nos livros e no direito das gentes…
É só assim que consigo falar do 25 de Abril: é a voz dos afectos. A mesma força que leva a que quem guarda as sementes da liberdade não queira que se pise o que acaba de nascer. Por isso, andei no PREC, sim, senhores, e não estou arrependido.
Éramos muitos. Experimentavam-se procedimentos; das lutas de uns e outros se fez a aprendizagem da democracia: nas famílias, nas ruas, nos bairros, nos empregos. De barricadas diferentes, entre conflitos, ora com diálogos, ora com silêncios e algumas ganas, todos sentiam a coisa pública e a coisa privada como assunto que galvanizava e empenhava palavras e actos. A democracia que se aprendia era aquela em que se sabia que não há uns homens que nascem para mandar e outros que andam por cá para obedecer. A participação era a palavra de ordem. Não se depositavam destinos em iluminados, mais ou menos eleitos.Ainda (e já) se sabia que, mesmo que não se saiba bem para onde se vai, tem-se a certeza de que se há-de lá chegar.
E isto é que era uma festa.
Parece que estamos a regressar da festa. Não porque já não se fale de processos revolucionários, mas porque as paixões mais ou menos solidárias e as lutas sempre conscientes e, por vezes, duras, cederam lugar a esta cousa que nos leva a andar a resmungar de tudo e de todos e a fechar-nos em casa, ou a ir, aos domingos e religiosamente, ao futebol a destilar impropérios contra sulistas e nortistas… para regressarmos a casa com cara de urso, porque no dia seguinte… nunca mais é sábado!

“País engravatado todo o ano
e a assoar-se na gravata por engano”
(O’Neill)
Os salazarentos tempos eram assim… Mas, pior que tudo: fomos nós que nos deixámos expropriar da festa.

Em 2004, trinta anos depois de Abril


Zeferino M. Silva

Obs.: como devem lembrar-se, no final das Notícias do Antigamente, eu interpelava os leitores a, caso o desejassem, as completarem com o seu testemunho. Este meu amigo assim fez, enviando-me esta sua crónica, elaborada em 2004 - que agradeço.

REORGANIZAÇÃO DO MAPA JUDICIÁRIO - I

A Drª Isabel Batista, Juiz de Direito em Caldas da Rainha, nossa habitual colaboradora, enviou-nos um oportuno texto sobre uma proposta de reorganização do mapa judiciário. Devido à sua extensão, optámos por o publicar em capítulos.

Aqui vai o primeiro:


“A Sabedoria traz discernimento político
Eu, a Sabedoria, sou vizinha da sagacidade, e tenho o conhecimento e a reflexão. (...) Por isso, eu detesto o orgulho e soberba, o mau comportamento e a boca falsa. Eu possuo o conselho e o bom senso; a inteligência e a fortaleza me pertencem. É através de mim que os reis governam e os príncipes decretam leis justas . Através de mim, os chefes governam e os nobres dão sentenças justas. Eu amo os que me amam, os que me procuram encontrar-me-ão”

Mais uma vez a discussão sobre o funcionamento dos tribunais entrou na ordem do dia. Talvez não pela forma mais acertada, mas apenas pela mais populista, logo pela mais demagógica.

Dito de uma forma simplista os tribunais – e supostamente aqueles que nele trabalham - durante três meses por ano – têm as chamadas férias judiciais. Porém, o que não se diz é que durante esses períodos o tempo é escasso para conter os atrasos provocados pelo excesso de processos existente em cada secção, em cada juízo, na titularidade de cada juiz.

Se tivermos em conta que na grande maioria dos tribunais do país cada magistrado tem mais de 2000 processos, muitos têm mais de 3000, e que, à excepção dos tribunais das grandes cidades (p.ex, Lisboa, Porto, Coimbra, Faro) a maior parte dos tribunais do país ainda funciona em competência genérica, fácil é de ver que o número de magistrados e de funcionários que gozam efectivamente 20 dias de férias é bastamente inferior àquele que poderão fazer coincidir as suas férias com as férias judiciais, sem esquecer que mesmo estes terão de fazer os turnos.

O problema do “entupimento dos tribunais” não se resolverá com um qualquer decreto que determine qual o mês em que os funcionários e os magistrados estarão de férias.

É certo que se for reestruturada toda a orgânica judiciária, deixará de fazer sentido que os tribunais apenas tramitem os processo ditos urgentes durante os períodos previstos na lei.: artigo 10º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais passando estes a funcionarem ininterruptamente .

Se forem tomadas medidas mo sentido de racionalizar a distribuição de processos, por forma a que cada magistrado tenha na sua titularidade um número de processos igual a qualquer outro colega na Europa Comunitária, nenhuma dificuldade advirá do facto de cada magistrado escolher o período em que pretende gozar férias, (até ao mês de Março, por antiguidade, conforme acontece em qualquer empresa do sector privado, ou do sector público do Estado, ou em qualquer outro serviço público) e de ser substituído de acordo com as regras legais do regime de substituição, sem que tal facto cause qualquer prejuízo para o normal funcionamento do Tribunal.

26 abril 2005

Colloque international

Les enquêtes judiciaires en Europe au XIXe siècle
Acteurs - Imaginaires - Pratiques

19, 20 et 21 mai 2005, en Sorbonne




Programme du colloque

Tristeza

de onde vem esta tristeza?
talvez da orla do mar da nortada
dos altos castelos de lápis lazúli,
anto, nas praias de leça
na boa nova menino e moço assim
perdido mas é outra a luz das
minhas praias outra a raíz
apátrida não reconhecido nessa
ausência de país o sonho que me conduz
a outros espaços à flor
da minha infância alada

Anto
Junho de 2002

Um novo blog

O carteiro, que durante muito tempo foi um dos principais animadores deste espaço, abriu ontem as portas de um novo blog – o marco2005. Para tratar de assuntos de Marco de Canaveses e, talvez, não só. A ver.

25 abril 2005

O "DR."

Uma editora de Coimbra - a Minerva - publicou recentemente um livro com o título "O Peso do Dr.", cujos autores, António Paiva e Cláudia Soares, jovens licenciados em Animação Sócio-Educativa, resolveram "indagar qual o peso que tem em Coimbra o título académico nas relações sociais". Queriam eles saber: "Será o "Dr." factor determinante de discriminação social na cidade de Coimbra?".
É evidente, para quem conhece o ambiente da cidade, que tinham de chegar à conclusão que SIM!
Filho de futricas, nascido e crescido na Baixa de Coimbra, conheço este fenómeno desde miúdo. Lembro-me de que quando entrei para o 7º ano do liceu (agora o 11º) já tinha o direito a ser chamado de "Dr." nos cafés - "Ó Dr., é uma bica?".
Na "Coimbra" de Miguel Torga (in "Portugal") está exemplarmente descrito o que, ainda hoje, se percebe na vida da cidade, particularmente com a restauração que desde o início dos anos 80 do século passado tem vindo a ser feita do que de mais bafiento existe nas chamadas tradições académicas.
Os movimentos estudantis de 1962 (era miúdo e lembro-me como se fosse hoje de o meu pai mandar abrir a porta de casa a alguns estudantes que fugiam da perseguição policial), de 1969 (que fui espreitando), e depois os de 1971 e 1972 (em que já participei) foram importantes, não só para o combate nacional à ditadura salazarista e à ilusória primavera marcelista, e estes últimos também na politização e radicalização do movimento estudantil, foram importantes, dizia, para oxigenar Coimbra.
Mas, hoje, Coimbra, agora que perdeu a indústria e a tem substituído por cimento e centros comerciais, é cada vez mais uma cidade de estudantes, de "doutores" e de construtores civis. O desemprego disparou, as bolsas de pobreza avançam no tecido urbano em mancha de óleo, a habitação atingiu os preços mais elevados do país ... mas é cada vez maior o cortejo da Queima das Fitas! Não o público, pois este tem mostrado preferir a procissão nocturna da Rainha Santa.

PARA QUE A MEMÓRIA NÃO SE APAGUE

Sugiro uma visita a GALERIA VIRTUAL DA CENSURA.
A conquista da liberdade de expressão teria sido o bastante para ter valido a pena o 25 de Abril.

24 abril 2005

Para onde íamos em Maio? Para Abril

No dia 19 de Maio de 1962, duzentos e cinquenta estudantes de Coimbra barricaram-se na Associação Académica. Protestavam contra um acordo para encerrar a crise académica de 62 que, segundo eles, não defendia suficientemente os colegas de Lisboa nem resolvia os problemas que tinham feito parar a vida estudantil coimbrã. A polícia, a pide e guarda nacional republicana atacaram a sede da associação, aprisionaram-nos e algumas horas depois, feita a triagem, mandavam quarenta rapazes e quatro raparigas para Caxias. Nas ruas da cidade, entretanto, centenas de outros jovens manifestavam-se e eram convenientemente agredidos.
Nos autocarros que nos levavam para Lisboa, havia quase tantos polícias de choque quantos presos. Eu ia na primeira fila e do lado de fora. Volta e meia olhava para trás e observava os meus companheiros de infortúnio. Duas ou três filas atrás um jovem frágil e com ar extenuado dormia com a cabeça no ombro de um guarda de aspecto facinoroso. A placidez do dormente, o ar incomodado do polícia que, apesar de tudo, não se atrevia a acordar o rapaz que dormia, fizeram-me rir, ainda que silenciosamente. Por um lado íamos presos. Para uma cadeia de políticos, ainda por cima. Mas por outro a calma do dorminhoco dava-me uma coragem só ultrapassada pela ironia da situação: um polícia façanhudo com receio de acordar o preso.
Nesse momento percebi que, mesmo presos, éramos os vencedores.
13 anos depois, numa noite de 24 para 25 de Abril, aguardava com mais outros, poucos, conspiradores pela senha que nos enviaria para algumas missões de apoio à intentona. Noutro ponto desta cidade, o mesmíssimo jovem, agora com menos cabelo mas com a mesma determinação fazia o mesmo. Éramos colegas no mesmo escritório de advogados, defendíamos políticos e sindicalistas e nesse momento, preparávamos uma revolução.
31 anos mais tarde, mais velhos, mais gordos (pelo menos eu) escrevemos no mesmo blogue. Com uma diferença: enquanto eu avio umas trivialidades bem humoradas ele presenteia-nos com o belíssimo poema mesmo aqui debaixo. Tenho orgulho em dizer que fui eu quem o propôs para colaborar nestas incursões.
Viva o 25 de Abril!
Viva a amizade, saravah meu querido Anto: estamos vivos!

A véspera

eram os vinte anos vogavam
sobre as águas do mondego
as palavras acesas nas frias
douradas tardes de novembro
nas serenas noites de junho no sossego
da memória os escritos antigos:

coimbra estende as ruas
com uma vaga inquietação.

o rio ainda vai seco e o verão já passou
já passou e a cidade adormece com o rio
que a formou
detrito sobre detrito.

isola-se no silêncio da colina
a cidade
isola-se - mulher estéril mulher vazia.

o rio ainda vai seco e o verão já passou

era outubro, digo
outubro de mil novecentos e sessenta e quatro

de repente é noite:
fecho olivro
um livro de poemas
e da janela olho as casas
- as luzes vagamente foscas -
e eu
que sei do silêncio (...)

era um espaço onde havia amigos
eram os vinte anos também a guerra
baça e sombria como morrinha
encharcava até aos ossos:

de cinzento-vermelho
vestiram-se as árvores
de pedra e veludo
ergueram-se os homens
na estrada até lisboa

na estrada até lisboa
o corpo de sangue do horizonte
caíu ao longo dos braços
perdeu-se no chão
mordendo a noite

mas de lisboa os homens partem
um vento morno
um tempo de esquecimento
um vazio de metal nos dedos
na estrada até lisboa

e no silêncio das fontes
as mãos navegam
no silêncio das fontes em alcobaça.

agora só há conhecidos
os amigos doem nos ossos
dormem na vidraça do pensamento:

caminhaste: na praia um oceano
ainda grita
a tristeza da terra que é tua
e no rosto marcaram-te o silêncio dos punhos.

pesam na sombra da memória
os papéis amarelecidos
novembro de mil novecentos e sessenta e três:

domingo

1. sou um objecto
algures a meio da manhã com um livro na mão.

2. a manhã é cinzenta e eu acordei triste:enlouqueci
aos poucos no meu quarto onde passeio descalço.

3. sou um animal inquieto e acabado de nascer.

eram os vinte anos os nomes na minha
boca as vísceras da guerra o coração
do poema nos verdes anos:

setembro tem
o cheiro da terra e da resina
o sabor total da uva
como o teu corpo novo de menina.

e depois os livros o josé gomes ferreira
escrevendo nos eléctricos:"Não, não queremos cantar
as canções azuis
dos pássaros moribundos.

Preferimos andar aos gritos (...)"

a chuva cai em cada palavra de pedra
como se as pedras amassem um tempo antigo:

no meu país
viajo como um estranho
procuro na terra a semente ou raíz
- mas nem semente nem raíz
nem fonte que as alimente

e na cidade
o meu país é mais estranho ainda
porque nas pedras nos abrigamos e as pedras
permanecem mudas.

mas agora busco o sopro do silêncio
a primeira a única palavra: o aleph os fecundos
dias do nascimento e da morte


Anto
Dezembro /2003

23 abril 2005

Quase poema


Ando pela casa,

inquietude nos pés,
à volta das coisas mudas,
como se o poema me pudesse ser dito.

O quê dizer, e quando?
Em que lugar esconde-se a ordem das palavras,
que me permita estar próxima de alguma poesia?

Nada interessa às buganvílias da varanda,
ou ao menino que brinca lá fora.
O dia é calmo
como todos os domingos em que choveu.

Assisto ao filme francês,
quieta.
Como se tudo fosse assim,
pacífico.

Fumo um cigarro,
mordo a maçã .
Com a naturalidade de quem não vive o paradoxo,
discretamente.
E sinto escapar-me dos dedos
a poesia do mundo.

Como encontrar o verso
que diga a falta que me atravessa,
o impacto do silêncio?

As palavras são tantas
e são nenhuma.
O poema não é meu,
nem teu,
nem de ninguém.
Ando à procura dele
como quem procura um bálsamo.
Entardece o longo dia de verão
e não estás onde disseste que estarias.

Por um momento
em gestos lentos
acaricio o sonho,
os lábios no beijo mais longo que o dia.

Mas não, não sou de sonhos,
ou crenças,
não vivo de sombras.
Talvez mesmo não seja de poemas,
este encontro aleatório de palavras
com nexo obscuro.

Assim, levanto-me
e me preparo para ir comprar cigarros.

Dentro de mim
um cello murmura
certa música distante.


Silvia Chueire

25 de Abril, bem longe do 25 de Abril

Ao 25 de Abril aconteceu-lhe um pouco o que aconteceu a Camões: a falar de Camões muitos tornaram-se ricos e poderosos, enquanto o poeta morreu abandonado e na miséria.

É certo que Portugal não é hoje o mesmo que foi antes do 25 de Abril e que a maior indignidade de todas já acabou: não vivemos amordaçados por uma ditadura. Mas isso não significa que, podendo falar e vivendo em democracia, os cidadãos possam fazer ouvir a sua voz e participar nas questões públicas. Hoje, só influencia politicamente quem tem poder económico e os que vivem do seu trabalho estão tão abandonados como está o espírito de Abril.

O sentimento de que em relação ao espírito de Abril temos uma distância incomensurável é bem patente no facto de a política actualmente se parecer cada vez mais com a rua mal afamada, onde as pessoas de bem já não ousam aventurar-se. Bem longe vai o tempo em que a política era feita de sacrifícios, de horas esquecidas em colar cartazes, propor ideias, travar debates, em que um deputado de Braga vivia numa roulotte no parque de Monsanto.

A "falar" de Abril muitos se vão tornando poderosos, enquanto que o espírito de Abril cada vez está mais pobre e longínquo.

22 abril 2005

Au Bonheur des Dames 3ªentrega

O PROVISÓRIO E O DEFINITIVO

"Provisórios" e "Definitivos" eram, no Portugal bisonho de 40 e 50, duas marcas de tabaco francamente populares. Os ricos fumavam "Tip-top", "3 Vintes" ou "Português Suave" e a arraia miúda contentava-se com as duas simpáticas marcas que, aliás, se me não falha a memória, apresentavam uma outra vantagem: vendiam-se em caixas de 12 ou 24 cigarros!

Diga-se, desde já, que, nesses depauperados tempos, não havia no país tabaco de filtro. Mariquices desse jaez estavam reservadas a quem podia abastecer-se no contrabando de "Camel" e "Lucky Strike" ou aos africanistas em férias que se pavoneavam pendurados em "Favel" ou "L M" king size.

A "oisive jeunesse" impecuniosa iniciava o seu "cursus honorum" de fumadora com barba de milho ou, mais raramente, com paivantes sacados da cigarreira paterna. Nas "famílias" o consumo do tabaco só era consentido na maioridade e, às vezes, nem assim. Puxar de um cigarro diante da "patria potestas", sem para isso se obter prévia autorização, era, mais do que uma deselegância, um desafio.

Pelos jardins e passeios viam-se modestíssimos cidadãos a recolher "beatas" que reciclavam em tabaco para cachimbo ou para enrolar em papel onça.

A que vem tudo isto, toda esta desbotada fotografia a preto e pardo de um país e de uma época que, a avaliar pelos debates que pontuam o 20º aniversário do 25 de Abril, nunca existiram?

Permitam-me os escassos leitores que utilize as duas marcas e o que elas significavam na nossa vaga vida para nomear o inominável e dizer o, na altura, indizível.

Os portugueses eram provisórios adolescentes retardados a quem um poder, com todas as características de definitivo, permitia uma existência precária desde que pautada pelo respeito pelo chefe e pela resignação perante a sorte madrasta que lhes acenava com a possibilidade de passar lentamente do maço de 12 cigarros ao de 24 e deste aos de 20 (mas com 20 gramas!). E, se tudo corresse bem, poder-se-ia mesmo (!) sonhar com tabaco loiro e estrangeiro com filtro e tudo.

Os cidadãos eram provisoriamente pobres mas o país era definitivamente grande e, um cartaz mostrava para nosso provisório contentamento e definitivo escarmento da estranja, o mapa da Europa perversa, coberto pelos territórios ultramarinos, o que evidenciava, a quem quisesse ver, a herança que os heróis do mar tinham legado ao nobre (e pobre) povo.

Os costumes sobre ser castos (nem nas praias os cidadãos machos podiam mostrar nu o peito!) eram brandos. A polícia usava bastão e pistola por mera bizarria, a pide cevava os poucos degenerados que prendia a lagosta e queijo da serra e o máximo de repressão que se conhecia era a praticada por uma "inspecção" que multava os portadores de isqueiros que se não munissem da respectiva licença de uso!

No "ultramar" a lusa gente suportava com doce paciência o fardo do homem branco e ensinava os pretinhos a ler e escrever o nome. Ensinava-se também o indígena a trabalhar para ganhar o pão de cada dia, pagar o imposto de palhota, e mais algum benefício da civilização.

Numa Europa, definitivamente decadente e amolecida pelos dólares que escorriam do plano Marshall, alevantava-se, provisoriamente pobre mas honrado, o nobre povo de heróis do mar (os almirantes Américo Thomaz e Henrique Tenreiro), de terra (os três pastorinhos) e do ar (Gago Coutinho e Sacadura Cabral ).

A escolaridade era, desde 1951, obrigatória até à 3ª classe e, com igual força de lei, estava proibido aos cidadãos menos abonados circular descalços pela via pública. Este inútil dispositivo legislativo não passava de letra morta para os agentes da ordem bem como para os destinatários.

Florescia um sem número de actividades que evidenciavam a poupança forçada necessária para se (sobre)viver com decoro. Cerzideiras, apanhadoras de malhas em meias de "vidro", alfaiates especializados em "virar" fatos, amoladores de facas e tesouras que também deitavam "gatos" a uma travessa partida e consertavam guarda-chuvas, costureiras que iam a casa das famílias deitar um par de fundilhos, fazer lençóis e camisas... E isto, tudo isto, tinha, naqueles pasmados anos, um toque de definitivo...ou, se quiserem, uma ameaçadora, espessa e agónica provisoriedade.

Este lento e desalentado rosário de recordações vem a propósito dos 20 anos de Abril e da perda de memória evidenciada por uma quadrilha de órfãos do estado dito novo que assacam à revolta dos capitães os males maiores e menores da época pouco exaltante em que vivemos. Esquecem-se que foram os anos de chumbo que precederam a guerra que condicionaram o resto e mesmo a deprimente euforia caetanista alimentada já a remessas de soldados e de emigrantes, à venda de sol e solo algarvios e baratos e à súbita abertura do mercado de trabalho graças à maciça saída de mão de obra para as franças e araganças e para as matas do império. Bastou um choque petrolífero e quatro gatunos na Bolsa para a provisória prosperidade escorregar do ombro ossudo e anquilosado do país real para este se mostrar em toda a sua remendada miséria.

A presença de um ex-agente da PIDE num debate televisivo excitou um punhado de boas almas habituadas a ver a árvore e a esquecer a floresta. O rufião apenas deu uma voz mais agressiva à algazarra que uma direita que poderá ter falta de inteligência mas que mantém intacta a memória dos privilégios ainda não recuperados e, sobretudo, não esquece nem perdoa o humilhante pânico que a multidão que invadiu as ruas lhe causou.

É nisso que um pensa neste 25 de Abril: a liberdade nunca é definitiva quando os cidadãos só provisoriamente, por ocasião de uma efeméride, se lembram que a desmemória tem dois filhos: a ignorância e a resignação.

Maio de 1994

Entendi que este texto de há 11 anos ainda tem alguma dolorosa actualidade. Não é festivo ou é-o só para quem queira comparar os tempos e os costumes.

25 de Abril

Aproxima-se o dia que não pode, nunca, cair no esquecimento ou na banalidade dos tempos que correm. Saibamos manter vivo o espírito do 25 de Abril, em cada gesto, na atitude perante o outro, nos valores que defendemos, no futuro que vamos construindo todos os dias.

ZECA

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AINDA DEU PARA COMPLETAR A ENTRADA DO COMPADRE ESTEVES

Grândola vila morena

Grândola vila morena
Terra da fraternidade
o povo é quem mais ordena
Dentro de ti ó cidade

Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade
Grândola vila morena
Terra da fraternidade

A sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola a tua vontade

Recados e Até já (*)

Contributos para a reforma do processo penal - o debate no Incursões continua aqui e aqui.

Discursos do novo Procurador-geral Distrital do Porto e do Procurador-geral da República, na tomada de posse daquele, podem ser lidos aqui e aqui respectivamente.

Comentando estes significativos discursos, ver interessante post do José, na GLQL.

(*) Faço minhas as palavras da Amélia no post anterior quanto à próxima ausência por uns dias. Quanto aos problemas no blogger, estão ultrapassados.

21 abril 2005

DESAFIOS PARA PORTUGAL

Na passada 2.ª Feira, no Palácio de Belém e com a presença do Senhor Presidente da República foi lançado o livro "Desafios para Portugal", que reune documentos de reflexão de 5 Seminários organizados pela Presidência da República, sobre outras tantas áreas críticas da economia e finanças do País.
São apresentadas propostas de reformas estruturais, a par de medidas mais imediatas, para o Investimento Directo Estrangeiro, Política Fiscal, Saúde, Rigor Orçamental e Crescimento, Finanças Municipais.
Como muitos dos autores do documento e das propostas analisadas estão actualmente no desempenho de funções governativas ou em condições de mobilizar vontades, espera-se que façam aplicar as propostas que o livro enuncia e cuja leitura se recomenda.

Conclusões do II Encontro Anual do Conselho Superior da Magistratura

Foi por mim noticiada em post de Dezembro de 2004 a realização, em Faro, do II Encontro Nacional do Conselho Superior da Magistratura, que tratou do "Balanço da Reforma da Acção Executiva" e do "Segredo de Justiça e Dever de Reserva".

Divulgam-se agora aqui, nos Arquivos Incursionistas as conclusões do encontro, cuja publicação em livro, conjuntamente com o texto das intervenções então proferidas, está anunciada para breve.

Realço a conclusão de que o dever de reserva, que constitui, "antes de mais, uma norma ética e deontológica" e que é coisa diferente do "cumprimento do segredo de justiça", "não pode ter uma amplitude tal que coarcte a liberdade de expressão ou o direito à participação cívica de cada juiz".

Assim como a constatação da "ausência de canais organizados de comunicação nos Tribunais" e a afirmação de que "a mediatização da justiça implica e impõe a introdução da "media training" na formação dos magistrados".

Regresso

de Rui do Carmo ao leque de colaboradores permanentes (contributors) do Incursões.

NOTICIAS DO ANTIGAMENTE - 10

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um notícias do 'antigamente' especial...

Há 30 anos...o meu Liceu:crónicas contra o esquecimento

Testemunho da Professora Maria Madalena Morna

Andei num Liceu daqueles de arquitectura estereotipada do antigo regime.Era no Porto - um liceu estritamente feminino, que, por descuido do planificador destas coisas, distava apenas cerca de 1 quilómetro de um outro liceu, esse, claro, estritamente masculino.E essa perspectiva assustadora de encontros e cruzamento de sexos era diligentemente resolvida pelas prevenções cooperantes da Reitoria e da PSP: nenhum jovem rapaz podia entrar em conversações com qualquer alegre menina a menos de 500 metros de distância da porta do Liceu .E se as regras eram cumpridas!...

1 de Outubro, recomeço das aulas.

Éramos religiosamente recebidas no Ginásio, numa cerimónia abrilhantada pela presença da abundante Reitora, mulher de grandes alturas e superfícies, de que até o nome, que por respeito omito, enchia e dilatava a já de si roliça pronúncia do Norte. E então era o discurso monocórdico de boas vindas, bons conselhos e boas regras.Tive um episódio de pavor com essa imensa reitora. Num dia de frio a sério, atrevi-me a vestir o casaco sobre a bata.
[A bata era uma instituição. Havia-as de folhinhos para os primeiros anos, de escapulário e pregas para as adolescentes e, já mais crescidinhas, de franzidos para as debutantes finalistas.]
Pois, ia eu ainda na fase dos folhinhos achatados pelo casaco, quando fui chamada à Reitoria. Foi a derrocada: - ir àquele gabinete significava sempre um castigo, fosse ele disciplinar, uma bofetada ou um raspanete. Que teria eu feito?
Tinha os trabalhos de casa em dia, não falava nas aulas, não respondera a essa verdadeira instituição de autoritarismo que era o jardineiro (maldosamente chamávamos – lhe o 'senhor Reitor'...), não ultrapassara ninguém na fila da Cantina, não...não...não... E, mal entrei, a Grande Senhora desabou o seu terrível raspanete: - eu, pecadora, tinha ousado tapar os folhinhos, cedendo à cobardia; e para cúmulo, manchara os sapatos no pátio em correrias impróprias de meninas...
Que vergonha para a instituição! E que alívio para mim!...
Das aulas lembro apenas 3 ou 4 professoras, mas era tudo tão igual que pouco me marcou. Mas não esqueço as «sessões».
Ah! que inefáveis dias, esses em que, uma vez por mês, éramos levados para o Ginásio e sabíamos da nossa pátria, das nossas colónias agradecidas; onde víamos filmes do Chefe Gungunhana, inimigo terrível, que, mostrado num filme a sépia de péssima qualidade, nos horrorizava de tal modo que, à noite, deitada no escuro do quarto, tinha visões aterradoras em que o pançudo selvagem saía pelo espelho do guarda-vestidos para me atacar, a mim, vestida com a farda de jovem defensora dos valores nacionais!
E os feriados? Divinos! Éramos canalizadas para a Biblioteca, onde nos sentávamos calmamente à espera dos livros, que não escolhíamos. De uma das vezes, em que já era "pregueada", lembro-me de ver essa 'jóia'- de - empregada – que – resmungava - sempre - que - entrávamos, subir ao escadote, pegar numa braçada de livros e começar a distribuir. - Pega e lê, toma lá... calhou-me o Conto das Botas Altas. E assim se promovia em mim o gosto pela leitura!...Depois lembro as aventuras loucas de quem não podia andar em sítio nenhum e, então, explorava todos os sítios, relembro as aulas de Ginástica, em que tudo se praticava, e bem ,-trave olímpica,plinto, espaldares, cordas móveis...Lembro-me do oásis: as actividades voluntárias - música e voley. Quantas festas a cantar, quantos jogos disputados!
E, finalmente, o começo super - proibido e, claro que nem imaginado, da militância Pró-Associação de Estudantes. Eram minhas colegas algumas das mulheres 'políticas' de hoje.
E como sofremos a passar folhetos clandestinos sobre a necessidade de inovação e liberdade!Como nos tremiam as pernas ao avistar um polícia! A quem passar a pasta comprometedora? Em quem confiar'?
E o medo, e a coragem, e de novo o medo, e finalmente o alívio - e 20 anos depois, a nostalgia divertida que tudo isto gera!...


Maria Madalena Morna
(F.1996)
(Escito em 1994, 20 anos depois)
Amélia Pais - 31 anos depois,em 2005


Nota: termina aqui a publicação das «minhas» crónicas contra o esquecimento. Nada impede, porém, antes pelo contrário, que outros amigos escrevam as suas lembranças e as coloquem aqui. Preservar a memória é olhar de frente o passado, encarar igualmente o presente - mesmo que por vezes nos pareça de «nevoeiro» ou «de vil tristeza» - e preparar o futuro com esperança reforçada.

COMENTÁRIOS do SMMP AOS PRINCÍPIOS BASE DE UMA PROPOSTA LEGISLATIVA, DA AUTORIA DO MAI, SOBRE “OPERAÇÕES ESPECIAIS DE PREVENÇÃO”, TAL COMO RELATADOS NO PÚBLICO DE 13/4/2005

são 32 pontos a ler aqui.

Assalto


O grupo cola-se à parede, numa fila compacta junto à porta.
O primeiro, com o aríete na mão, mede a porta sua inimiga, tentando adivinhar o local onde a vai impactar de forma a fazê-la voar das dobradiças e assim dar acesso à sua equipa (tudo isto acompanhado de insultos mentais às suas chefias que acham que o uso de explosivos para abertura de acessos é uma coisa só para os militares... enfim, ignorantes!).
O resto do grupo vai apertando as suas armas nas mãos, nervosamente, procurando acalmar o coração que já vai batendo a mais de 140.
Parece que a quase hora e meia de infiltração discreta pelo interior do bairro manhoso estava a dar resultado e ainda ninguém tinha dado o alarme!
O chefe da operação, dentro da carrinha de apoio, consulta o relógio: 07.00, está na hora! Porcaria de lei que nos faz estar agarrados a uma hora fixa para se poder começar uma busca! É mesmo coisa de totós que nunca saíram de um gabinete... se eles um dia viessem à rua ver o que é a realidade!
- Tudo pronto? Vamos a isto – diz para o condutor, ao mesmo tempo que pergunta ao rádio “- Estão prontos? VAI! VAI! VAI! VAI!” – Arranca, arranca!!!
07:00 horas... o chefe do grupo dá um apertão no ombro do seguinte... o apertão vai seguindo de ombro em ombro até ao primeiro que de imediato começa a dar balanço ao aríete...
BLAMMMMMMM... o aríete esmaga-se contra a fechadura da porta, fazendo voar chispas e estilhaços. Todo o grupo se precipita para a frente... “- M....! F...!! NÃO ABRIU!!! NÃO ABRIU!!!!”
O primeiro puxa novamente o aríete atrás. BLAMMMMMMM... “- NÃO ABRIU! NÃO ABRIU!!”...
O segundo atira com a caçadeira para as mãos do terceiro e precipita-se para ajudar o primeiro com o aríete. BLAMMMMMMM... “- ACESSO! ACESSO!!”
07:00.50 horas. Cinco segundos, uma eternidade... O aríete é atirado para o lado e a equipa inunda a casa com as armas em riste, voando sobre a porta despedaçada.
O primeiro entra na casa desconhecida. Ninguém à vista.“- LIMPO!” e precipita-se para a primeira porta.“- FECHADO!” Um violento pontapé e a porta voa com a fechadura partida “- ACESSO!” E voa para o interior do compartimento... vazio. “- LIMPO!”
Atrás de si ouvem-se detonações. Prepara-se para sair do compartimento acanhado, com o seu companheiro a estorvar-lhe o caminho. “- Parvo... devias era estar em casa a trocar as fraldas – pensa”. Mais detonações. Sai. Um colega caído no chão a sangrar. Precipita-se sobre o compartimento seguinte.
Uma explosão de luz. Silêncio. Nada.
Aos poucos começa a ouvir vozes. Em fundo uma gritaria, uma algaraviada meio incompreensível. Sente a cara pegajosa.
- Então pá? – pergunta-lhe o chefe, qual é a graça de andares por aí às cabeçadas nas portas? Tens aí um lanho para uma meia-dúzia de pontos, pelo menos, mas não penses que te livras das transcrições das escutas, o que é teu, é teu…!
“- Filho-da-P...! – pensa – Então este animal é que proíbe uma pessoa de meter uma porcaria de capacete de skate na tola porque dá mau aspecto e agora que a tenho partida ainda goza?”
O colega ferido já está a ser tratado na ambulância do INEM. Um projéctil furou o colete balístico. Sim, porque como dizia o velho do depósito de material “- Um luxo! Isto é do melhor que podem ter! Não é por ser de Level II que protege menos! Já agora também querem uma armadura em aço? Vocês têm o melhor!!”

É ficção... uma mera ficção baseada em algumas largas dezenas, quiçá algumas centenas de buscas efectuadas em bairros fora dos circuitos turísticos do nosso país, pelos mais diversos motivos - droga, armas, homicídio, prostituição... uma lista que abrange o CP quase de uma ponta à outra.
Algumas dessas buscas foram acompanhadas por Magistrados - coisas pontuais, mas que aconteceram.
E que, se algumas vezes deram mau resultado por falhas de entendimento de lado a lado, outras também, talvez uma vasta maioria delas, foram bastante proveitosas, possibilitando a realização de todos os actos necessários dentro da legalidade, ao invés de se andar a pisar o risco e depois resolver as asneiras em secretaria, com o objectivo de preservar essa mesma legalidade.
Sim, poderá ser algo diferente... algo a que não estamos ainda habituados, ver os Magistrados a acompanhar os Polícias na prossecução da Justiça, qualquer que seja a desculpa para que tal possa acontecer - demagogias eleitorais, ideias peregrinas ou mesmo, espanto dos espantos, a cópia de sistemas utilizados noutros locais, outros países...
Certo é que muitos profissionais de Polícia de vez em quando comentam que em vez de uma chefia que só serve mesmo para dar despachos “Ao MP” ou “À secção, investigue-se” ou pouco mais e, cujas competências in fine acabam por não ser muito mais do que isso, se tivessem Magistrados, as possibilidades de trabalho seriam outras.
Eu por mim perfilho esta ideia - não o levar um Magistrado “emprestado” para uma operação qualquer, mas sim ter os Magistrados a trabalhar em conjunto com as Polícias.
Ficar a parte policial e operacional da investigação intimamente ligada à verdadeira investigação criminal como parecia que se queria fazer com o DCIAP... ou pelo menos como algumas Policias pensavam que iria acontecer.
No final, as questões que se levantam são pequenas e todas elas muito simples:
Será que a Magistratura está preparada para sair para a rua sem ser um peso morto para a Polícia?
Será que as Policias estão preparadas para serem acompanhadas pela Magistratura?
Será que as Magistraturas e as Polícias vão finalmente descer dos seus belos pedestais onde se cristalizaram há uma eternidade, conspurcadas pelos “pombos” da nossa sociedade e que, finalmente, se vão aliar para trabalharem dentro das suas competências mas lado a lado para o bem comum?

Saci (leitor e ocasional comentador do Incursões)

Habemus PGD

Alípio Ribeiro, novo Procurador Distrital do Porto, na cerimónia de tomada de posse do cargo, perante o Procurador-geral da República, cerimónia que decorreu ontem no Salão Nobre do Tribunal da Relação do Porto e segundo o DN, «elegeu as intercepções telefónicas como uma das preocupações prioritárias. "A sua prática está longe de ser consensual. Pelo contrário tem gerado legítimas perplexidades e inquietações", disse. Para o procurador distrital, "a utilização das escutas telefónicas deve ser contida", para evitar que haja intercepções a mais, "se as contabilizarmos com o número daquelas que são utilizadas, como meio de prova, em audiência de julgamento". Além disso, as violações à lei estão próximas da "incúria profissional" e afectam a credibilidade da Justiça.
A escassa utilização dos institutos de consenso em processo penal e a informatização judiciária estão também no centro das preocupações.»

O CSMP: entre a mudança e a letargia

"A última reunião do CSMP foi pródiga em ocorrências e ensinamentos."

Assim começa o comunicado em 4 pontos, do SMMP, datado de 19 de Abril e que pode ser lido aqui.

20 abril 2005

Farmácia de serviço 9

Mozart em Pasargada

Por algum lado eu havia de começar, nesta lufa-lufa de pagar dívidas antigas. E começo (aliás já comecei: ainda não fiz outra coisa senão agradecer a tantos músicos, poetas, pintores etc... o que me deram neste último meio século.) por Manuel Bandeira, que descobri pelos meus vinte anos, numa edição da Minerva (que ainda por aí corre em alfarrabistas amáveis). Desfiz-me desse exemplar quando encontrei Estrela da Vida Inteira (Livraria José Olímpio editora).
Bandeira foi portanto uma revelação: para um rapazola que arrastava pela faculdade de direito o seu mal de vivre e um considerável desprezo pela coisa jurídica, o modernismo foi uma revelação. Pela primeira vez irrompia nas minhas leituras um prosaísmo poético, um tu cá tu lá com as coisas mais elementares que subitamente se transformavam em objecto poético. Eu li-o entre estarrecido e maravilhado, de rajada. Foi tal o espanto que meti o livro na mala e levei-o para férias, em Nampula. Aí fui lendo e relendo, dei cabo da paciência a familiares e amigos que, porém, não ficavam indiferentes ao que ouviam. Ora oiçam, também:

Madrigal tão engraçadinho

Teresa, você é coisa mais bonita que eu vi até hoje na
minha vida, inclusive o porquinho-da-índia que me de-
ram quando eu tinha seis anos.

Teresa
A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do
corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.


Nova poética

Vou lançar a teoria do poeta sórdido.
Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito,
Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito
[bem engomada, e na primeira esquina
[passa um caminhão, salpica-lhe o paletó
[ou a calça de uma nódoa de lama:
É a vida.

O poema deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.

Sei que a poesia é também orvalho.
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens
[cem por cento e as amadas que
[envelheceram sem maldade.

Chegados que fomos a este ponto, a leitora começa a descobrir porque é que tantos e tão bons poetas portugueses citam continuamente Bandeira, porque é que Alexandre O’Neil lhe chamava “avôzinho”. Claro que também terão reparado que eu fiz apenas citações de poemas que pela sua contundência recordo. Obviamente a lira bandeirante tem outros registos:

Consoada

Quando a indesejada das gentes chegar
(não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga.
- Alô iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(a noite com os seus sortilégios.)
encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
a mesa posta, cada coisa em seu lugar.

O iBook adverte-me neste momento que a receita vai já longa. Mau, Maria! E a Kamikaze que me pede para ser conciso. Paciência! É que ainda não contei o resto. Estava, pois, eu em Nampula, convalescendo duma bruta crise académica (a de 62, para ser mais preciso...) tratado a belos caris de camarão (se quiserem eu dou a receita...) e uma paixão assolapada por uma coleguinha de Lisboa. Um dia o meu pai entra triunfante em casa com uma molhada de discos debaixo do braço: tão bom freguês era da livraria-discoteca que, em chegando remessa nova, era ele o primeiro a ouvir e escolher o que queria. E nesse bendito dia, entre outros que não recordo, havia dois que me desgraçaram para o resto da vida “Lonely woman” pelo Modern Jazz Quartet e “eine kleine Nachtmusik” de Mozart. Olhem manos, endoidei! Passava horas a fio a ouvir estas duas preciosidades. E tão funda foi essa emoção que logo que tive um gira-discos, os dois primeiros LP que comprei foram, adivinhe-se, estes. E também foram os dois primeiros Cêdês, claro.
Alguma vez falarei do MJQ porque agora já só tenho tempo para Mozart. Alguém, grosseiro mas bem intencionado, disse um dia: Mozart é como o porco: aproveita-se tudo! Ámen, digo eu, embora acrescente: fica é pelos olhos da cara. E numa estante grande, mesmo por baixo dos livros de poesia lá estão arrumadinhos os 181 volumes da Integral de Mozart. Aliás não estão todos: há sempre um par deles que viajam comigo no carro, em alta grita (neste momento: Zaide, der Schauspiel Direktor e die Gärtnerin aus Liebe!)
É com Mozart que vos deixo. Com Mozart visto por Bandeira.

Mozart no céu

No dia 5 de Dezembro de 1791 Wolfgang Amadeus Mozart
[entrou no céu, como um artista de circo, fazendo
[piruetas extraordinárias sobre um mirabolante cavalo branco.

Os anjinhos atónitos diziam: Que foi? Que não foi?
Melodias jamais ouvidas voavam nas linhas suplementares
[superiores da pauta.

Um momento se suspendeu a contemplação inefável.
A Virgem beijou-o na testa
E desde então Wolfgang Amadeus Mozart foi o mais moço dos anjos.


Modern Jazz Quartet: Lonely woman (Atlantic 8122-75361-2
Mozart: Integral, Philips. O escriba lamenta não poder indicar uma ou algumas obras de Mozart: é tudo bom, muito bom, excepcional.

Vai esta em memoria de Marcelo Heinzelmann Corrêa-Ribeiro, João Semana devotado, caçador (de caça grossa!), inveterado fumador e jogador de bridge cantor de fado de Coimbra. Poucos tiveram tantos doentes quanto ele. Poucos receberam menos dinheiro das consultas. Mas muitos ainda o recordam. Com alegria e afecto. Era conservador mas solidarizou-se sempre com os filhos, o que é normal, com os amigos e até com simples conhecidos, o que é muito mais raro. Tinha um defeito: apreciava escassamente jazz pelo que devolveu à procedência a “Lonely Woman”. Ó doutor que falta de cavalheirismo!

Bento XVI

A Igreja Católica tem novo Papa que para si escolheu o nome de Bento XVI.
O Cardeal eleito era o sucessor natural de João Paulo II, de quem foi general durante todo o seu pontificado, agora muito elogiado. Mas, de repente, ouvindo os comentários, parece que afinal os méritos em João Paulo II serão defeitos em Bento XVI!
O Papa não é mais do que o Bispo de Roma e, como sucessor de Pedro, responsável pela unidade das Igrejas e pela confirmação dos irmãos na Fé. Compete-lhe velar pela integridade do depósito da Fé. E para essa função ninguém melhor do que quem exerceu a função nos últimos 20 anos.
A lógica da Igreja não é a lógica do mundo. A Igreja não tem que seguir as modas do Mundo, nem do momento. À Igreja compete fazer a proposta do caminho que em Jesus Cristo nos é revelado; à Igreja compete ler os sinais do Mundo e anunciar o Evangelho.
Se me perguntassem a mim quem eu escolheria, teria provavelmente outra opinião. Mas essa não é a minha função na Igreja e por isso resta-me respeitar a escolha de quem tem essa competência.
Como católico, nada tenho contra Bento XVI. E as críticas que lhe fazem enquanto Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé são muito injustas. A sua função era difícil, mas cumpriu-a conforme as instruções de João Paulo II. E a constante menção à Inquisição é uma idiotice, porque não é historicamente correcta. Todas as organizações têm o direito de verificar a ortodoxia de quem ensina em seu nome. Na Igreja está quem comunga da mesma Fé. E só pertence à Igreja quem quer!
Espero que este novo pontificado aprofunde algumas das tarefas de João Paulo II, designadamente na união das Igrejas, no diálogo inter-religioso e na promoção da paz e da liberdade, sem esquecer toda a acção a favor dos pobres e oprimidos do mundo. E se possível abra novos horizontes.

NOTÍCIAS DO ANTIGAMENTE - 9

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...e depois a festa : crónicas contra o esquecimento

O regime começava a cair lentamente, em processo de corrosão interna que começava também a tornar-se notório aos mais atentos - e que a tentativa malograda do 16 de Março vinha confirmar. Uma série de acontecimentos prenunciavam a queda - a publicação do livro de Spínola PORTUGAL E O FUTURO e os acontecimentos a nível de altas chefias militares daí decorrentes, mostravam que havia descontentamento e dúvidas a tais níveis - ora tinham sido justamente os militares que, em 28 de Maio de 1926, tinham instaurado uma ditadura que levaria ao poder Salazar e o seu regime de Estado Novo.
Lembro-me de em Paris, onde passava férias da Páscoa, ter estado com portugueses exilados - neles era já geral a convicção de que em breve seria possível o tal golpe militar de que se começava a falar, nomeadamente na imprensa estrangeira .E também eles perguntavam «noticias do (meu)país» não apenas ao «vento que passa » das trovas de Manuel Alegre, a quem vinha de Portugal para quando a revolução. Aguardavam ansiosamente o fim do exílio forçado e doloroso.
Em 24 de Abril, à noite, ouvindo, como de costume, o programa Limite, na Rádio, surpreendeu-me ouvir ler a 1ªquadra da canção proibida pela censura GRÂNDOLA VILA MORENA, seguida da canção propriamente dita. Surpreendeu-me, mas estava longe de imaginar que essa era a 'senha' do golpe. Dormi normalmente até cerca das 6 horas da manhã, altura em que fui acordada por uma colega que me dava a notícia
de que havia uma revolução.Liguei de imediato a rádio e ouvi com expectativa os comunicados dum tal MOVIMENTO DAS FORÇAS ARMADAS (M.F.A.) que dizia estar em curso uma acção de libertação do nosso povo, procurando destituir o governo que há 48 anos oprimia o país. Não sabíamos, inicialmente, de que militares se tratava: - se de militares democratas, se de 'ultras' militares de extrema-direita que contestavam Marcelo Caetano, por 'brandura'. Creio que nunca se ouviu tanto rádio como nesse dia - estávamos presos dos comunicados, das notícias, de saber o que se seguiria.
Vim para a escola tentar dar aulas 'normais' - naturalmente tarefa impossível, e se calhar nem sequer desejada .As autoridades da escola, essas, estavam fechadas no antigo gabinete do Reitor, ouvindo rádio - a ver ,também, no que dava....Às 3 da tarde já se sabia: - o poder autoritário tinha sido derrubado, aguardava-se a rendição de Marcelo Caetano, refugiado com os seus ministros no Quartel do Carmo, onde era a sede da fidelíssima Guarda Nacional Republicana. Essa rendição far-se-ia mais tarde, às ordens de Salgueiro Maia, o 1ºherói conhecido do golpe [foi também aluno desta nossa Escola].
Entretanto, às 3 da tarde, e com a presença já das autoridades liceais (Reitor e Vice-Reitores), fomos todos para o Ginásio, no 1ºdos muitos Plenários que se seguiriam. Houve algumas palavras do então Reitor, que afirmou que nunca tinha vivido em democracia - e por isso, também ele iria ter muito que aprender. Falaram mais professoras, mais ou menos conotadas com a até ali oposição democrática -e conhecidas como tal. Lembro-me da palavra de ordem mais aplaudida: Hoje começa uma nova vida para todos nós - uma vida de liberdade. Há tudo para fazer .Por isso, não há tempo a perder. COMECEMOS DESDE JÁ A TRABALHAR!
E é essa a minha principal memória do dia - o dia que depois seria o 'dia da liberdade': de descompressão, de libertação, da festa - que o foi.Nunca vi tanta gente contente. Por uns tempos as pessoas foram diferentes: sorriam abertamente umas para as outras, não se insultavam na estrada, davam mais facilmente boleias, exigiam mais justiça, mais fraternidade, mais solidariedade - e o fim da guerra e a liberdade para os povos colonizados. Aprendiam a falar abertamente, a tomar a voz em plenários, em sindicatos, em manifestações.
.Acreditámos piamente que estávamos a construir um mundo melhor, mais fraterno, mais justo .Empenhámo-nos a sério - acreditámos que era possível a utopiaMuito errámos em muitas ocasiões. Fomos enganados na nossa boa fé, outras tantas. Mas nunca professores e alunos estiveram tão unidos na sua generosidade, nunca vi juntar-se tanta gente em torno do que consideravam boas causas (mesmo que, mais tarde, viessem a não considerá-las assim tão boas...).
Nem tudo correu bem, é certo. A história far-se-á desapaixonadamente um dia. Mas foi bom poder ver a libertação dos presos políticos, foi bom ter a ilusão de que podíamos reconstruir a História,- foi bom também ver mais tarde o país seguir, após os sobressaltos de 2 anos, uma vida democrática ,moderna, europeia, civilizada.Foi bom estar nas primeiras eleições livres, em 1975, como tinha sido linda a festa do 1º primeiro de maio...em 1974. FOI BOM VER A FESTA. Uma festa de todo um povo que era bom e generoso - e se muitos pecámos durante o chamado Período Revolucionário em Curso, a verdade é que o balanço final é positivo : podemos orgulhar-nos de sermos um país e um povo que soube vencer a 'austera, apagada e vil tristeza' de que já Camões falava, de recuperar direitos de cidadania longamente usurpados, de se erguer, sem complexos, face a uma Europa que finalmente nos aceitava no seu seio, como igual em dignidade e direitos.E de termos feito uma revolução de um modo geral civilizada, a primeira 'de veludo' das que aconteceriam na Europa - uma Europa que assistiu mais tarde, à libertação do povo espanhol, dos países do Centro (Alemanha de Leste, Polónia, Hungria, Checoslováquia, Roménia e Bulgária),dos Países Bálticos e, finalmente , de outros povos e nações da ex - União Soviética.Uma Europa maior porque mais livre - mesmo se albergando ainda grandes inquietações e uma guerra terrível na Bósnia e noutras regiões da ex - República da Jugoslávia...
Depois de termos mostrado a essa Europa como era o mapa do mundo, depois de séculos de 'vil tristeza', erguíamo-nos de novo, encerrando o ciclo do império, sempre atlânticos, recuperando a grandeza [comprometida em Alcácer - Quibir] de não aceitar como fatal a infelicidade, o 'nevoeiro' de que falava Fernando Pessoa - e de podermos voltar a sonhar uma pátria mais justa e solidária.
Compete-nos continuar o sonho, crescer mais e melhor, e, sobretudo, reparar injustiças, democratizar e desenvolver mais - visto que a missão de descolonizar, bem ou mal, foi feita. Essa é a tarefa dos políticos, é certo, mas é também a de cada um de nós.

(continua)

Amélia Pais





Fernando Pessoa/Alberto Caeiro

NOTÍCIAS DO ANTIGAMENTE - 8

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o aparelho repressivo - a P.I.D.E.. : memórias contra o esquecimento
Já falámos nas 'notícias' anteriores de como o salazarismo se conseguiu implantar graças, principalmente, à promoção do obscurantismo [manutenção em estado de analfabetismo ou semi-analfabetismo de grande parte da população, política educativa marcada ideologicamente, de que destacámos, a existência de livro único, o controle exercido sobre os professores e principalmente os do ensino primário, a não democratização da gestão das escolas, a proibição de associações de estudantes no ensino secundário e o controle das universitárias, a proibição de sindicatos de professores, etc, a existência da Mocidade Portuguesa e da Mocidade Portuguesa Feminina - lembremos sempre a afirmação despudorada de Salazar de que quanto mais ignorantes, mais humildes]; - tal obscurantismo prosseguia, já fora da escola, com a instituição da censura à imprensa , aos livros e aos espectáculos - do mundo e de Portugal só se sabia o que era conveniente ao regime - e as grandes questões nacionais não podiam sequer ser discutidas - por exemplo, as questões de regime ou a guerra colonial, ao abrigo do lema salazarista : não discutimos deus, não discutimos a pátria, não discutimos a família...Mas, para além destes eficientíssimos instrumentos de controle do pensamento e da inteligência, havia também, para quem conseguia furar o bloqueio, instrumentos repressivos muito eficientes. Tratava-se das polícias em geral, da Legião Portuguesa, tropa de elite enfeudada a Salazar -como os camisas negras ao fascismo italiano, ou os S.S.a Hitler, e, sobretudo, da polícia secreta, primeiramente chamada P.V.D.E .(os oposicionistas chamavam-lhe a 'pevide'),depois P.I.D.E.(Polícia de Informação e Defesa do Estado) e, nos últimos tempos do regime, D.G.S.(Direcção Geral de Segurança).
A Polícia secreta de Salazar funcionava, como outras polícias secretas do mundo, com base numa rede tentacular de informadores (em linguagem vulgar 'bufos') que, a troco de salário, espiavam todos. O clima era tal que ninguém ousava exprimir opiniões nos cafés, nas aulas -nunca se podia ter a certeza se o amigo com quem estávamos ou um seu parente não seria um 'bufo'...Vivia-se, como em período de Inquisição, no clima que António Ferreira, poeta do s. XVI, definira assim : "A medo vivo, a medo escrevo e falo, e hei medo do que penso só comigo".A Pide espiava, fazia crescer os seus ficheiros, prendia, torturava, matava (para além dos presos do campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, foram assassinados pela Pide o General Humberto Delgado e o pintor José Dias Coelho - cujo assassínio é tema da canção de José Afonso, A morte saiu à rua - e alguns estudantes).
E como as pessoas tinham medo de falar abertamente de política, inventavam-se muitas e saborosas anedotas, cujos protagonistas eram Salazar, o Almirante Tomás, a Pide, etc...Mas mesmo essas anedotas eram só contadas entre amigos...não fosse o diabo tecê-las...
Havia para algumas pessoas dificuldade em obter passaporte - além de que só se podia pedi-lo para determinados países - estavam excluídos todos os países comunistas da época; a sua emissão dependia da informação da Pide; por exemplo, quando eu quis obter o meu 1ºpassaporte, em 1964, (ainda que oposicionista, eu não militava em nenhum partido) tive de dizer na Pide, em Coimbra, para onde ia, que ia fazer, etc.. Cometi a ingenuidade de dizer que ia a um curso na Universidade da Paz, na Bélgica. Obtive passaporte, mas, após o regresso, fui visitada por um 'pide' que queria saber afinal o que era isso da Universidade da Paz - é que estávamos em guerra e falar de paz era algo de subversivo. E eu era na altura estudante universitária - logo, suspeita. Além de que o fundador dessa Universidade da Paz era um dominicano, Prémio Nobel da Paz de 1958, que começava a incomodar um pouco o governo português, intervindo em casos de prisão arbitrária de pessoas, denunciadas pela Amnistia Internacional e por alguns padres portugueses mais corajosos, na altura designados de 'progressistas', em oposição à generalidade da Igreja Católica, que apoiava claramente Salazar, pessoa muito devota - e também em casos de massacres na guerra colonial igualmente divulgados na informação estrangeira. Chamava-se esse dominicano Dominique Pire, foi meu amigo, amava Portugal e morreu sem ver o 25 de Abril de 1974.
De resto, seriam ainda da responsabilidade da Pide os únicos mortos da revolução de Abril. Esta, a revolução, acabou por ser generosa e libertou os alguns pides que ainda foram presos. Do mesmo modo que deixou partir em paz os grandes responsáveis do regime, nomeadamente Américo Tomás, o Presidente, Marcelo Caetano, o 1ºMinistro- e quase todos os membros do governo de então.
Só uma dúvida subsiste ainda para mim: - como foi possível que a revolução de 25 de abril triunfasse tão rapidamente, apesar da Pide tudo controlar - sem encontrar, praticamente, resistência? Para mim este foi e é ainda um enigma - que talvez só daqui a muito tempo se desvendará...
Claro que o chamado fascismo português não foi tão violento e sanguinário como o foram o alemão (viste a lista de schindler?), o italiano, o espanhol (franquismo) ou o soviético, chinês ou cambojano (bem sei que a alguns destes não é costume chamar-se fascismo...). Mas também não foi preciso...É que a política de promoção do obscurantismo de que falámos, e os nossos tradicionais 'brandos costumes', evitaram o recurso sistemático à violência física.
No fundo éramos ' bem comportadinhos ' - para além de sermos na época um país fortemente rural (perto de 70%de população rural) a quem os padres ensinavam que a recompensa do sofrimento viria após a morte...Por isso, a contestação do regime foi, sobretudo, obra de intelectuais (esses até liam ...nomeadamente livros e revistas estrangeiras), estudantes (que para intelectuais caminhavam) e de operários das zonas mais industrializadas,(Lisboa, Marinha Grande) com tradições de sindicalismo e de politização, conseguida, nomeadamente, pela influência do na altura clandestino Partido Comunista e não só. - e depois, a fome quando aperta, aperta mais nas cidades e zonas industriais do que no campo...como continuamos, infelizmente, a saber.
[1]

(continua)

Amélia Pais
[1] Há um romance muito bonito de José Saramago que te recomendo. Chama-se Levantados do Chão e fala de tudo isto...