19 maio 2004

"Formação divide Justiça"

Pelo seu inegável interesse, transcreve-se um texto de Liliana Palhinha, extraído dos extintos Cordoeiros e aí "posto" em 11-5-2004:

"Formação divide Justiça"
Com este título, Ana Isabel Abrunhosa publicou, no Expresso de ontem, um artigo onde dá conta da conclusão do Projecto do Ministério da Justiça para alteração à lei de recrutamento e formação de magistrados.
Do referido artigo saliento alguns aspectos que me parecem particularmente merecedores de reflexão.

“Contactado pelo Expresso, o gabinete da ministra da Justiça reconheceu que a proposta é polémica, mas salientou que teve o contributo de uma comissão formada por representantes da Procuradoria-Geral da República, do Conselho Superior da Magistratura e do CEJ.”
”O porta-voz de Cardona explicou ainda que o projecto será apresentado para debate público antes da aprovação em Conselho de Ministros, para tentar encontrar uma solução consensual.
Mas esse objectivo prevê-se difícil, dada a pluralidade de ideias em confronto. Enquanto os juízes defendem a separação completa das duas magistraturas, logo a partir do primeiro ano (aqui Ana Isabel Abrunhosa equivoca-se, é a partir dos primeiros seis meses de formação, de âmbito teórico), os magistrados do MP reivindicam cursos teóricos e práticos comuns (durante parte da formação, concretamente da inicial, especifico eu) e a permeabilidade das carreiras.
Além da oposição do Sindicato do MP, a proposta é rejeitada pelo Presidente da República, Jorge Sampaio.” (…) A proposta “choca com as conclusões do Congresso da Justiça, subscritas pelos representantes de todas as profissões do sector, que defenderam o aprofundamento de uma cultura judiciária comum. E também se distancia da mais recente proposta do Presidente da República sobre «um prolongado tronco comum e conjunto de formação» entre juízes, magistrados do Ministério Público e até advogados.”


Importa, antes de prosseguirmos, fazer mais algumas precisões ao artigo sob comentário:
- é certo que na comissão que trabalhou, junto do Ministério da Justiça, na preparação do Projecto em referência, teve assento o seu Director do CEJ, juiz desembargador Mário Tavares Mendes. Contudo, e sem pôr em causa o facto de esta instituição ser, como é, representada por aquele, parece-nos não ser de omitir que o CEJ, enquanto colectivo de pessoas, designadamente magistrados, que se entregam em dedicação exclusiva ao mister da formação, não teve qualquer participação neste processo.
- é incorrecta a informação constante do artigo de que, no final do período de formação, os candidatos serão sujeitos a um exame eliminatório; diversas outras inexactidões, de menor relevo, poderão ser descortinadas pelo confronto com o que , mais abaixo, se explicita relativamente ao conteúdo do Projecto (a que tive acesso, uma vez que foi já entregue a algumas entidades para apreciação).

O que mais me surpreende, no que respeita ao teor do artigo do Expresso, é a agora revelada preocupação da Senhora Ministra da Justiça em encontrar consensos, numa matéria em que os únicos consensos até agora encontrados foram os resultantes dos debates sobre Formação nas Carreiras Jurídicas no Congresso da Justiça, sendo que esses foram totalmente ignorados pela Comissão que com a senhora ministra trabalhou na preparação do Projecto em apreço!
Donde se poderá retirar que os participantes na dita comissão (representantes do CSM, do CSTAF, do PGR e o Director do CEJ) fizeram, eles também, tábua rasa dos consensos gerados no referido Congresso (já agora, registe-se que pela senhora Ministra da Justiça foi recusada a solicitada participação do SMMP na Comissão, ainda que com o simples estatuto de observador).
E se bem que este fosse, na verdade, um “congresso de corporações”, certo é que, ainda assim, aí foi possível aprofundar suficientemente o debate (recorde-se que os trabalhos do Congresso se prolongaram por um ano…) por forma a encontrar convergências em pontos fundamentais e estruturantes no que respeita aos rumos que urge dar à Formação nas Carreiras Jurídicas.
Aliás, este foi o único debate que houve sobre a matéria, para além dos promovidos pelo SMMP.
Na verdade, nem o CSMP levou por diante uma reflexão consequente e detalhada dos vários pontos a equacionar, quer no âmbito do recrutamento/selecção, quer no âmbito da formação – objectivos, métodos, conteúdos -, apesar dos vários alertas efectuados, quer externa quer internamente, para a necessidade de aquele órgão não dever deixar de aprofundar esta problemática fundamental para a melhoria do sistema de justiça e dignificação das magistraturas.

Mas não vale a pena chorar sobre leite derramado.
Eis que, vá lá adivinhar-se porquê :), repentinamente, um Projecto que, tudo o indica, se pretendeu fosse (e foi) elaborado à margem de qualquer debate quer interno às magistraturas, quer alargado à sociedade, parece não ser assumido pela própria Ministra que criou a Comissão com a qual o elaborou, anunciando-se – hélas! – o há muito reivindicado debate público e posterior apreciação na Assembleia da República.

Passemos, então, ao Projecto.

Ponto prévio:
(…) “ a recente reforma do contencioso administrativo e tributário impõe que a formação das magistraturas passe a contemplar as matérias administrativas e fiscais, a fim de que os auditores que sigam a judicatura possam optar indistintamente pelos tribunais comuns ou pelos administrativos e fiscais” - in Exposição de Motivos.
Quanto a esta alteração, que me parece oportuna (e que implica a inclusão do CSTAF no Conselho de Gestão do CEJ), apenas se me oferece dizer que a formação em direito administrativo e fiscal dará também, seguramente, “muito jeito” aos magistrados do M.P. que forem exercer funções nesses tribunais…

As alterações essenciais:
As diferenças entre o actual sistema de recrutamento e formação e o sistema constante no Projecto são, no essencial, as seguintes:

- opção pela magistratura judicial ou do M.P. logo após publicação da lista de graduação dos candidatos aprovados ao curso de formação no CEJ (actualmente essa opção é feita apenas no termo da formação inicial, que tem a duração de 20 meses); havendo desproporção entre as vagas disponíveis para cada magistratura e as opções dos candidatos, estes serão colocados de acordo com o seu lugar na graduação;
- formação conjunta apenas durante os primeiros seis meses de formação inicial no CEJ, aos quais se seguirão, para os considerados aptos a prosseguir, seis meses de formação no CEJ em formação específica para a magistratura judicial ou para a magistratura do MP, seguindo-se 5 meses e meio de formação nos tribunais (actualmente a formação conjunta tem a duração de 20 meses, sendo dez meses no CEJ e dez meses nos tribunais – cinco meses e meio junto de formadores magistrados judiciais e outros cinco meses e meio junto de formadores magistrados do MP);
- os auditores de justiça que, finda a fase de formação inicial (1 ano no CEJ e 5 meses e meio nos tribunais) tiverem notação não inferior a 10 serão colocados, pelos Conselhos Superiores, como assessores nos tribunais (mantendo o estatuto de auditores de justiça), por período não superior a um ano, período esse que os Conselhos podem encurtar ou eliminar in totum (“consoante o desenvolvimento e a desenvoltura evidenciadas pelo candidato”);
- os auditores de justiça (que não tenham sido excluídos durante a fase de assessoria) são nomeados magistrados em regime experimental, pelo período de um ano, exercendo, nessa fase, com a assistência de formadores mas sob responsabilidade própria, as funções inerentes à respectiva magistratura; podem ser excluídos durante esta fase ou no seu termo, por deliberação dos Conselhos, precedendo inspecção extraordinária (este período de formação corresponde, nos seus termos e timings, à actual fase de estágio).
- institucionalização dos Cursos Especiais, sem qualquer indicação do tempo mínimo de duração da formação, que será estabelecido, caso a caso, por despacho do Ministro da Justiça após audição do Conselho que tiver proposto a sua realização.

(sobre formação conjunta/formação separada e o significado, em termos “formativos”, da fase de assessoria - que, registe-se desde já, não é efectuada junto de magistrados formadores (?!) -, bem como relativamente aos termos em que estão previstos os Cursos Especiais subscreve-se o que pode ler-se aqui , a págs. 22 a 24).

E, finalmente, a pérola das inovações, a chave que vai permitir, de vez, a permeabilização das magistraturas judicial e do Ministério Público (sendo de presumir que a eliminação de 14 dos actuais 20 meses de formação conjunta, com erradicação total da que ora se faz nos tribunais, é o caminho mais adequado para alcançar tal desiderato):
Então é assim (art. 72ª - A - Alteração da opção inicial):
- decorridos que sejam dois anos sobre a nomeação definitiva e antes de perfazerem sete anos de serviço, os magistrados que não tenham sofrido qualquer sanção disciplinar e tenham classificação de serviço não inferior a Bom podem manifestar ao respectivo Conselho a vontade de transição para a outra magistratura;
- os Conselhos podem condicionar, antecipadamente e de forma concertada, as transferências entre as duas magistraturas a critérios objectivos que evitem perturbações significativas de serviço;
- verificados os requisitos legais, os candidatos à transição são nomeados magistrados judiciais ou do Ministério Público em regime experimental, sendo para o efeito requisitados e abrindo vaga no lugar antes ocupado, mantendo o estatuto remuneratório;
- os Conselhos podem prolongar por seis meses o período de nomeação em regime experimental quando especiais necessidades de formação o justifiquem;
- em caso de nomeação simultânea para o período de regime experimental, de magistrados candidatos à transferência e de auditores de justiça, estes precedem aqueles; os candidatos à transferência mantêm entre si a antiguidade que tinham na magistratura de origem;
- os magistrados candidatos à transferência que não venham a ser nomeados definitivamente para a magistratura para a qual pretendem transitar voltam à magistratura de opção inicial, perdendo a antiguidade correspondente ao tempo de desempenho de funções em regime experimental;
- o tempo de serviço prestado na magistratura de opção inicial NÃO conta para a determinação da antiguidade na magistratura de destino, mas releva para todos os outros efeitos.

Liliana Palhinha

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