"La Cathédrale engloutie", de Debussy 
Creio que nunca perdoarei o que me fez esta música. 
Eu nada sabia de poesia, de literatura, e o piano 
era, para mim, sem distinção entre a Viúva Alegre e Mozart, 
o grande futuro paralelo a tudo o que eu seria 
para satisfação dos meus parentes todos. Mesmo a Música, 
eles achavam-na demais, imprópria de um rapaz 
que era pretendido igual a todos eles: alto ou baixo funcionário público, 
civil ou militar. Eu lia muito, é certo. Lera 
o Ponson du Terrail, o Campos Júnior, o Verne e o Salgari, 
e o Eça e o Pascoaes. E lera também 
nuns caderninhos que me eram permitidos porque aperfeiçoavam o francês, 
e a Livraria Larousse editava para crianças mais novas do que eu era, 
a história da catedral de Ys submersa nas águas. 
  
Um dia, no rádio Pilot da minha Avó, ouvi 
uma série de acordes aquáticos, que os pedais faziam pensativos, 
mas cujas dissonâncias eram a imagem tremulante 
daquelas fendas ténues que na vida, 
na minha e na dos outros, ou havia ou faltavam. 
  
Foi como se as águas se me abrissem para ouvir os sinos, 
os cânticos, e o eco das abóbadas, e ver as altas torres 
sobre que as ondas glaucas se espumavam tranquilas. 
Nas naves povoadas de limos e de anémonas, vi que perpassavam 
almas penadas como as do Marão e que eu temia 
em todos os estalidos e cantos escuros da casa. 
  
Ante um caderno, tentei dizer tudo isso. Mas 
só a música que comprei e estudei ao piano mo ensinou 
mas sem palavras. Escrevi. Como o vaso da China, 
pomposo e com dragões em relevo, que havia na sala, 
e que uma criada ao espanejar partiu, 
e dele saíram lixo e papéis velhos lá caídos, 
as fissuras da vida abriram-se-me para sempre, 
ainda que o sentido de muitas eu só entendesse mais tarde. 
  
Submersa catedral inacessível! Como perdoarei 
aquele momento em que do rádio vieste, 
solene e vaga e grave, de sob as águas que 
marinhas me seriam meu destino perdido? 
É desta imprecisão que eu tenho ódio: 
nunca mais pude ser eu mesmo - esse homem parvo 
que, nascido do jovem tiranizado e triste, 
viveria tranquilamente arreliado até à morte. 
Passei a ser esta soma teimosa do que não existe: 
exigência, anseio, dúvida e gosto 
de impor aos outros a visão profunda, 
não a visão que eles fingem, 
mas a visão que recusam: 
esse lixo do mundo e papéis velhos 
que sai dum jarrão exótico que a criada partiu, 
como a catedral se iria em acordes que ficam 
na memória das coisas como um livro infantil 
de lendas de outras terras que não são a minha. 
  
Os acordes perpassam cristalinos sob um fundo surdo 
que docemente ecoa. Música literata e fascinante, 
nojenta do que por ela em mim se fez poesia, 
esta desgraça impotente de actuar no mundo, 
e que só sabe negar-se e constranger-me a ser 
o que luta no vácuo de si mesmo e dos outros. 
  
Ó catedral de sons e de água! Ó música 
sombria e luminosa! Ó vácua solidão 
tranquila! Ó agonia doce e calculada! 
  
Ah como havia em ti, tão só prelúdio, 
tamanho alvorecer, por sob ou sobre as águas, 
de negros sóis e brancos céus nocturnos? 
Eu hei-de perdoar-te? Eu hei-de ouvir-te ainda? 
Mais uma vez eu te ouço, ou tu, perdão, me escutas? 
  
Jorge de Sena 
21 julho 2004
Palavras musicais
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