24 outubro 2004

FOLHETIM DE DOMINGO (em formato de blog)

por marinquieto

Capítulo V

"Porque é que não se juntam dois a dois?" - foi a mensagem que, dobrada em quatro, pedira ao empregado do café para lhe entregar. Desdobrou a folha, segurou-a com as duas mãos e manteve-se com os olhos fixos nela durante um longo período de tempo, que me pareceu ainda mais longo porque esperava dele uma reacção qualquer. Devia estar a sentir-se observado e sem saber muito bem o que fazer. Acabou por olhar para mim. Tínhamos duas mesas de permeio. Fixei-o e não baixei os olhos. Examinou-me de alto a baixo, embora sem grande minúcia. Pousou o bilhete em cima da mesa, utilizou o cinzeiro de vidro como pesa-papéis e voltou-se para o mar.
Escolhera-o porque parecia ser o menos ensimesmado de todos os que estavam na esplanada. E portanto, concluí, quem poderia ser mais receptivo à minha mensagem. O rapaz não tinha mais do que 23 anos, havia chegado depois de mim e ainda não tinha utilizado o telemóvel, que se mantinha surdo e mudo. Deve ter achado que eu estava no engate. Percebi-o pelo modo como me olhou, carregado de desdém e a querer acentuar a diferença de idade que nos separava. Estava de férias. Divertiu-me tão grosseira manifestação de falta de experiência da vida.
Tirei nova folha do bloco de notas, na qual voltei a escrever a mesma mensagem e chamei mais uma vez o empregado. Pedi-lhe então que a entregasse a uma mulher, que também havia chegado já depois de mim. Andava à volta dos 40 anos e tinha-se revelado como uma das mais compulsivas utilizadoras do telemóvel. Não estava ali há mais de meia hora e tinha recebido e enviado inúmeras mensagens nos intervalos dos inúmeros telefonemas. Recebeu o bilhete, perguntou qualquer coisa ao moço do café que lhe respondeu apontando-me com o olhar, abriu-o e leu-o rapidamente. Levantou-se como se estivesse a cumprir uma ordem e veio sentar-se na minha mesa.
- Aqui estou! È a dona do café?
- Não! Porque pergunta isso?
- Pensei que a sua ideia era rentabilizar o uso das mesas. O que se compreendia, pois só uma pessoa alapada em cada, quase toda a tarde, apenas pelo preço de um café, de uma cerveja, de uma água ou de um sumo de laranja, e tantas outras a chegarem e a irem-se embora por não terem lugar ...
- Se assim fosse, acha que eu estava também a ocupar uma delas?
- Também é verdade.
- Estou a passar uns dias de férias. Nunca aqui tinha vindo. Escrevi os bilhetes para vos provocar, pois, para além de toda a esplanada estar ocupada com uma só pessoa em cada mesa, como disse, todas têm o telemóvel nela pousado e praticamente todas dividem o tempo entre o seu manuseamento e a contemplação do mar. Com uma enorme ânsia de comunicar com alguém. Mas como se mais ninguém aqui estivesse. E reparei, ainda, que você era a que mais utilizava o telemóvel, sendo curiosamente a menos jovem ... à excepção de mim, claro, a quem aquele bonito rapaz já colocou no devido lugar - rematou, a sorrir.
- Sabe, dou-me com muita gente e gosto muito de conviver, de conversar. Conheço cada vez mais gente. O que é óptimo. Não gosto nada de estar sozinha. Pessoas que há uns anos diria que não conhecia porque nunca estive com elas. Contactamos muito pelo telefone e pela internet. Somos grande amigos.
- Mas não lhes conhece o cheiro, a textura da pele, o sorriso, o desenho das mãos, o movimento dos lábios ...
- Também os cegos, para compensarem a falta da visão, desenvolvem mais os outros sentidos.
- Não me diga que não tem curiosidade em conhecer fisicamente pelo menos alguns desses amigos que vai fazendo!?
- Já tive. Deixei de a ter quando me apercebi de que as nossas conversas perdiam a liberdade e a sinceridade de antes. E que a distanciação física permanecia mesmo quando estava junto deles, que no contacto pessoal perdíamos à-vontade, expressividade. Por outro lado, aprendi a distingui-los dos outros amigos e, vá-se lá saber porquê, a preferi-los.
Despediram-se. Ângela Novais ainda foi durante algum tempo, enquanto caminhava pelo passeio marítimo, a pensar no diálogo que mantivera com aquela mulher que conhecera acidentalmente. Deviam ter tido percursos de vida bem diferentes. Gostava de voltar a conversar com ela.

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