25 novembro 2004

"Entre a liberdade dos arguidos e a credibilidade da justiça"

É a opinião de Francisco Teixeira da Mota (Público de hoje):

Começa hoje o julgamento do processo judicial mais mediatizado dos últimos anos. Em causa, no essencial, estão abusos sexuais sobre crianças internadas na Casa Pia que terão sido perpretados pelos arguidos pronunciados, entre os quais algumas figuras públicas.
Se a figura do crime de pedofilia se presta a incursões históricas ou multiculturais sobre a sua própria existência e limites, a verdade é que choca profundamente a maioria da nossa sociedade, a prática dos actos porque vêm acusados os arguidos.
E, por isso mesmo, a "sociedade" está particularmente atenta ao que se vai passar. Para os arguidos, com o julgamento, está em causa a sua liberdade e para a Justiça, a sua credibilidade.
Desde logo, é preciso colocar a hipótese de o julgamento ser adiado já na primeira sessão através de qualquer incidente processual, voluntário ou involuntário. Como é sabido, os incidentes processuais multiplicaram-se neste processo, durante o inquérito e a instrução, servindo as diversas estratégias da defesa e com razoável êxito. Mas tudo indica que deverá haver um esforço de todos os intervenientes no sentido de se dar início ao julgamento: quem provocar o adiamento ficará com o "odioso" de ter "parado" a Justiça...
O interrogatório dos arguidos poderá ser muito esclarecedor, nomeadamente porque se anunciam novas e completas revelações por parte de um dos arguidos mas o núcleo essencial do julgamento serão os depoimentos das vítimas.
No processo da "Casa Pia", como em todos os casos de pedofilia, a questão da veracidade ou não veracidade do depoimentos das crianças e/ou a sua credibilidade vai ser determinante. As vítimas que, ao longo do processo, relataram os actos sexuais que foram obrigados a praticar, vão ser obrigadas a prestar novas declarações que serão determinantes na absolvição ou condenação dos arguidos.
Não se sabe, naturalmente, o que as vítimas vão relatar ao tribunal e, como não houve declarações para memória futura, as únicas declarações que terão qualquer valor como prova serão as que forem prestadas em julgamento. Convém recordar, que no recente processo de pedofilia de Outreau em França, os depoimentos das crianças na audiência de julgamento foram muito menos explícitos e/ou pormenorizados do que aqueles que haviam prestado durante a instrução do processo. Muitos dos actos sexuais em causa na acusação não foram sequer referidos pelas crianças no julgamento e, com a absolvição de sete dos arguidos, chegou-se à conclusão que as crianças e os seus cúmplices/abusadores tinham acusado e feito prender diversos inocentes....
Os interrogatórios das vítimas pelos advogados de defesa vão ser, assim, particularmente importantes porque, em defesa dos seus constituintes, procurarão de forma sistemática demonstrar a não veracidade do que afirmam e a sua não credibilidade. Saliente-se que, quanto às perícias médico-legais realizadas sobre os menores, nomeadamente quanto aos testes psicológicos, a juiz de instrução concluiu que tais testes não têm potencialidades ou validade para atestar se as crianças falam ou não verdade quando identificam os arguidos como abusadores.
Parece, assim, que o tribunal não se poderá, apoiar na verdade científica para descobrir a verdade jurídica. Terá, pois, de se apoiar na sua própria "sabedoria" para, com serenidade, ver a verdade no meio da prova que se vai desenrolar a partir de hoje. O que, se calhar, não vai ser, assim tão difícil ...

P.S. O relatório da comissão presidida por Roberto Carneiro para a reforma da "Casa Pia" mais não faz do que apostar na manutenção do "gigantismo" da instituição. Um erro crasso já que, hoje em dia, parece claro que as unidades de acolhimento de menores não podem deixar de ser de muito reduzida dimensão, sob pena de não só não cumprirem os seus objectivos como de perpetuarem inevitalmente todas as perversões...

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