Em férias, o flâneur vai debicando na sua biblioteca, sem pressa. Revisita as estantes, os livros, as páginas, alguns de que já não se lembrava, outros de que nunca se esqueceu, associam-se ideias, tem-se uma disponibilidade mental que a rotina do resto do ano limita, voltamos sempre ao que mais nos marcou.
Nos últimos dias Simas Santos foi buscar Neruda e Sá Coimbra. Belíssimas escolhas. Que me levaram às estantes.
Soube d’A Chancela já só em 2001 e li-o através do serviço de empréstimo domiciliário da Biblioteca Municipal de Coimbra por já não existir no mercado. E foi por intermédio de um livro também esgotado e que merecia igualmente ser reeditado: “Magistratura Portuguesa – Retrato de uma mentalidade colectiva”, de Luís Eloy Azevedo (Procurador da República). Uma edição de 2001 das logo a seguir falidas Edições Cosmos.
O nome de Sá Coimbra sempre esteve, para mim, associado ao de Flávio Pinto Ferreira, talvez por a ambos associar a revista “Fronteira”, e o Porto. E logo me saltou à ideia um texto ainda hoje bastante actual e, na altura, também corajoso, de uma conferência realizada pela então juiz de 1ª instância Flávio Pinto Ferreira, em 14 de Julho de 1972, no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, cujo título é “Uma Abordagem Sociológica da Magistratura Judicial”, de que é difícil destacar apenas alguns aspectos, mas vou arriscar escolher dois extractos.
O primeiro tem tudo a ver com o texto do frontispício de “A Chancela”, transcrito por Simas Santos:
“É por isso que, com certo exagero, se pode dizer que não só a lei se mede pelo juiz que a aplica, como a mesma valerá, de certo modo, o que valer o juiz que a faz descer das alturas olímpicas da abstracção para o plano humano das realidades prosaicas de todos os dias”.
O segundo é, em 1972, representativo de uma visão rasgada:
“Uma passo sério, e talvez decisivo, naquilo que designei por formação técnico-profissional e cultural-humanística dos juízes, isto é, na actualização formativa e informativa com objectivos estritamente técnico-profissionais e no afinamento cultural dos magistrados judiciais, seria a criação da Escola ou Centro de Estudos Judiciários – de que já falei …”.
Mas não há nada como ler todo o documento. E, já agora, também o seu artigo “Reflexões sociológicas sobre a magistratura”, publicado em 1980, no Nº10/11 da revista “Fronteira”.
30 dezembro 2004
A DEBICAR NAS ESTANTES
Marcadores: Rui do Carmo
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5 comentários:
Essas obras glosam todas o mesmo tema: o magistrado ideal!
E qual será, afinal, o/a magistrado/a ideal? Uma pessoa culta?! Instruida? Inteligente? Com essas qualidades aferidas por uma craveira subida e de referência?
Ou a pessoa comum e de mediana sabedoria; mediana inteligência e mediana instrução?
COnfesso que não sei a resposta.
Há um denominador comum, na referência ao magistrado ideal: a capacidade de apreeensão da realidade do caso concreto.
A percepção do real e o seu enquadramento nas circunstâncias reais do caso concreto não me parece que sejam características comuns à maioria dos magistrados que conheço. Mas conheço alguns com essas características e que me permitem dizer que não me importaria de ser julgado por tal ou tal magistrado. É esse o único paradigma que tomo por bitola: a capacidade de compreensão do caso real!
Se a leitura, em período da adolescência, da colecção dos clássicos da literatura juvenil e a sua posterior actualização com leituras de obras de autores que reflectem um conhecimento dos outros e do mundo, adianta alguma coisa para definição desse paradigam, também não sei.
Continuo sem saber se a cultura livresca e jurídica será fundamental e imprescindível para o essencial do julgamento das causas e das acções alheias em causa. Segundo as leituras de Julieta Monginho, talvez não seja. O seu Carlitos deixa muito a desejar, nesse aspecto.
Mas quem poderá ter a presunção de saber julgar os outros, com saber e propriedade?
COmo se pode evitar e equilibrar essa tentação que vai beber directamente na fonte da soberba?!
Parece-me que residirá aqui o problema, pois dificilmente um julgador aceitará que lhe digam: V.não sabe julgar!
Logo, a questão a equacionar será o modo de equilibrar, com checks & balances, tal como se faz na política, a "nobre função de julgar". E isso, parece-me que não será tarefa fácil.
De resto, boas leituras- e Bon Ano!
Corrijo:
Em vez de: "A percepção do real e o seu enquadramento nas circunstâncias reais do caso concreto não me parece que sejam características comuns à maioria dos magistrados que conheço."
Escrevo:
A percepção do real e o seu enquadramento nas circunstâncias reais do caso concreto não me parece que sejam características generalizadas e comuns à totalidade dos magistrados que conheço.
Fica melhor assim, porque a análise é eminentemente empírica e eventualmente também desfasada da realidade, por defeito meu.
Abel Salazar, a propósito dos médicos, dizia: "Um médico que é só um técnico, nem é técnico nem é médico".
Paul Ricoeur(in: "Leituras 1")diz: "o sentido da justiça não se esgota na construção dos sistemas jurídicos"(pag.90).E explica: "(...) a justiça é, mais amiúdo, o que falta e a injustiça o que reina, e os homens precisam mais de uma reparação sobre o que lhes falta nas relações humanas do que da maneira correcta de as organizar". E na página seguinte: "Considerar a justiça como uma virtude, ao lado da prudência, da temperança, da coragem, é admitir que a aplicação da justiça contribui, em primeiro lugar, para orientar a acção humana para um cumprimento, uma perfeição, da qual a noção popular de felicidade dá uma imagem aproximada".
A reler, bem a propósito (com citação de Flávio Pinto Ferreira), post de 9/10, de mangadalpa (que é feito dele?): Breviário de ideias avulsas sobre Formação de Magistrados(cont) Cap. II – Escritos reeditados"
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