06 dezembro 2004

A detenção por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos

Este post do judicioso blogue direitos, aqui linkado, suscita-me um breve comentário sobre a detenção por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos.
Trata-se de saber se esta forma de privação da liberdade pode ser ordenada em quaisquer circunstâncias, como que arbitrariamente, mesmo quando não é previsível que venha a ser aplicada uma medida de prisão preventiva ou esta nem sequer é promovida.
A Constituição da República, no seu artigo 27.º, n.º 2, al. b), admite-a, a título excepcional, pelo tempo e nas condições que a lei determinar. E a lei ordinária limita-se, aparentemente, a indicar as finalidades que se pretendem atingir, as situações em que pode ter lugar, as formalidades a que está sujeita e, quanto às condições gerais da sua efectivação, a remeter para duas disposições gerais das medidas de coacção e de garantia patrimonial, que pouco interessam para a questão (arts. 254.º e ss. do Código de Processo Penal). Nenhuma remissão directa faz, por exemplo, para o princípio da adequação e proporcionalidade consagrado, para aquelas medidas, no art. 193.º – as medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
Será que este princípio não é aplicável às meras detenções de que falamos?
Uma leitura meramente literal, formal e não racional levaria a responder que não – a lei não o diz, logo é admissível deter qualquer pessoa para a apresentar ao juiz competente para o primeiro interrogatório judicial ou para aplicação de uma medida de coacção, mesmo que essa pessoa não tenha manifestado qualquer falta de colaboração com as autoridades judiciárias ou de investigação. Em suma, seria possível usar esse meio de coacção de forma inadequada e/ou desproporcionada, como muitas vezes se vê por aí.
Quanto a mim, não pode ter sido este o espírito do legislador. Será concebível que um cidadão, por mais notável que seja, ainda que pacato, muitas vezes verdadeiramente inocente e sempre presumidamente inocente, pelo simples facto de ter de responder perante uma autoridade judiciária, tenha que se ver sujeito ao espectáculo degradante, transmitido a milhões de espectadores, de ser arrastado, sob escolta policial, a um tribunal qualquer, como se de um verdadeiro criminoso já se tratasse? Quem lhe limpa, depois, a imagem? Quem lhe repõe, depois, a honra vilipendiada? Quem o salva dessa tortura circense?
Há que recorrer a outras formas de interpretação que fujam a uma mera leitura acéfala dos textos da lei.
Uma delas será, sem dúvida, a do princípio da proibição de excesso ou da proporcionalidade em sentido amplo, e dos seus subprincípios da conformidade ou adequação de meios, da exigibilidade ou da necessidade, e da proporcionalidade em sentido estrito, que enformam qualquer estado de direito democrático como o nosso se afirma que é. E fazer, à luz desses princípios, uma leitura conforme à Constituição dos preceitos processuais penais atinentes à detenção.
Nesta linha, deverá começar por se entender que a detenção para apresentação ao juiz para aplicação de uma medida de coacção, acompanhada ou não de interrogatório, é já um acto que, pela sua natureza instrumental, deverá sujeitar-se aos princípios e regras processuais que norteiam essa visada medida de coacção. E, assim, que aquela detenção terá de subordinar-se, também, ao princípio de adequação e proporcionalidade consagrado no art. 193.º do CPP; e que terá de respeitar os requisitos gerais enunciados no art. 204.º do mesmo diploma. De outro modo, teremos de continuar a assistir à selvajaria pseudo-legal, de autêntico terrorismo de Estado, que os nossos meios de comunicação social ávida e frequentemente transmitem, para gáudio dos mais sádicos.
Duas notas apenas, para terminar. Primeira: de há muito que defendo publicamente este ponto de vista, mesmo em reuniões institucionais. Segunda: não me move qualquer pretensão de crítica à actuação do Ministério Público ou das polícias em recentes acontecimentos que são do domínio público – para além de não conhecer, nem pretender conhecer, os seus contornos e desenvolvimentos, razões de ordem deontológica levar-me-iam a não enveredar por esse campo.
Em suma, subscrevo inteiramente o post dos direitos e não compreendo que alguém se tenha doído tão toscamente aqui.

Lemos da Costa

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