10 dezembro 2004

O que diz Cluny

Li a entrevista do "Público" ao Sr. Procurador António Cluny. Destaco esta parte, relativa às eleições para a Ordem dos Advogados. Para dizer que não percebi muito bem onde queria chegar o Sr. Procurador. Aliás, poucas vezes percebi. A distinção que faz entre os advogados que votaram A, B, ou C parece-me precipitada. Não sei porquê, mas pareceu-me que o Sr. Procurador quis colar em todos os que votaram em António Marinho Pinto a imagem de advogados de vão-de-escada. Eu votei no AMP, por razões que explicitei, aqui, há dias, e não sou advogado de vão-de-escada. E, pelos vistos, houve muitos outros que, não sendo advogados de vão-de-escada, votaram em AMP que, aliás, ganhou em vários Conselhos Distritais. No fundo, parece-me que, de vez em quando, os Srs. Procuradores-das-Grandes-Metrópoles deviam deslocar-se ao país real. Para perceberem melhor o que se passa...

Eis o trecho da entrevista em causa:

"Depois das recentes eleições para a Ordem dos Advogados, "parece difícil sustentar a ideia do bastonário como porta-voz e expressão consensual de uma advocacia unida numa idiossincrasia comum", considera António Cluny.

(...) R. - Aquilo a que chama "guerra aberta entre magistrados e o ministro", e que melhor se deveria chamar "guerra aberta entre juízes e ministro", parece radicar numa série de subentendidos, equívocos políticos e receios correlativos. Na verdade, ainda não se ouviu e parece, agora, que já não se vai a tempo de ouvir o que é que o Ministério da Justiça realmente pensa sobre uma série de questões importantes para estruturação do edifício da justiça. O discurso político tem estado a cargo exclusivo do dr. José Miguel Júdice e ninguém em rigor sabe se ele traduz ou não o pensamento do ministro. A verdade é que esse discurso assenta numa visão muito neoliberal e tem tido, naturalmente, como objecto privilegiado a advocacia e os seus interesses específicos, que estão no fundamental ligados à defesa privada dos direitos individuais.P. - No seu entender, os problemas da justiça devem ser vistos sob outros prismas...
R. - Claro, na democracia sobreleva a defesa da garantia judiciária como ideia estruturante da igualdade de todos perante a lei. E esta é uma outra questão que não tem estado presente no actual discurso dos responsáveis da Ordem dos Advogados e do ministro da Justiça. Os problemas actuais não radicam numa oposição entre magistrados e ministro ou entre magistrados e advogados, mas entre visões políticas diferentes para a resolução dos problemas da justiça. Uma justiça mais eficaz não pode ser uma justiça restrita a alguns e manipulada por uns poucos em seu exclusivo benefício.
P. - Considera que a recente eleição de um novo bastonário da Ordem dos Advogados poderá modificar a política que tem sido seguida por esta instituição? R. - O que o resultado desta eleição para a Ordem dos Advogados revela é a divisão desta classe em três grupos equivalentes de profissionais com interesses distintos e por vezes antagónicos. A partir de agora parece difícil sustentar a ideia do bastonário como porta-voz e expressão consensual de uma advocacia unida numa idiossincrasia comum.
De um lado sobressaiu uma ideia de advocacia centrada e organizada nas grandes sociedades/empresas de advogados lisboetas, de outro o mundo da advocacia não profissional e de "part time" e de outro ainda o mundo, em vias de extinção, de uma advocacia tradicional centrada em escritórios de referência. Todos estes mundos divergem quanto aos interesses que defendem, quanto ao discurso que reivindicam e quanto à política que a justiça deve trilhar. O problema não será assim tanto o do relacionamento dos magistrados com esta nova Ordem de Advogados, mas o de todos os cidadãos que procuram justiça com os modelos que esta "desordem" parece evidenciar.

É caso para dizer que o Sr. Procurador deveria preocupar-se, essencialmente, com a "desordem" que grassa na sua sua própria corporação.

(Coutinho Ribeiro - advogado, da província, pois claro)

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