03 janeiro 2005

Regresso ao passado

Tenho uma certeza: sou o colaborador menos culto deste blog de pessoas cultas. Tenho uma vaga ideia, dos tempos de menino - entre os 5 e os 18 anos -, em que li tudo o que havia para ler, a família entusiasta, reunida à minha volta, de queixo caído, porque ganhava todos os concursos de cultura geral da TV. Com sete anos passei para a 4ª classe e com 5 tinha uma autorização especial para levantar livros da biblioteca. Li Sarte, Camus, os clássicos... ainda com borbulhas na cara, e, hoje, olho-os, são apenas um caldo de cultura. Cantava canções de intervenção com a minha tia mais jovem, ainda antes do 25 de Abril, tinha a curiosidade insaciável de tudo o que girava, lia os jornais ainda menino, fazia as palavras cruzadas a lápis, porque o meu pai as fazia depois de apagadas, às vezes mal apagadas, o que era pretexto para uma cena má, das muitas más que tive, mas às quais sobrevivi sem rancores. Escrevi poemas e poemas que já não tenho e que tenho pena de não ter.
Demasiado puto, fiz coisas que eram de adultos, dirigi jornais, escrevi em jornais a sério, tornei-me boémio, fiz o curso de direito mais com engenho do que com estudo, tive muitas namoradas - quase todas muito bonitas (como aconteceu com compadre esteves... :-)) -, andei pela política, quando a política era ainda um sonho, acabei o curso de direito com jornalismo pelo meio, com ameaças de morte e ameaças de retaliações a outros níveis, porque era atrevido (às vezes arrogante), e tinha toda a coragem do mundo.
Quando acabei o curso, estudei mais em três meses do que durante os anos que o curso durou.
Hoje, olho o estendal de sabedoria que por aqui passa. Coisas, autores que me passam ao lado. Olho para os livros que leio agora e lamento o plano descendente. Mas nem tudo é mau.
Aprendi coisas, entretanto, que também são importantes. Aprendi a pensar por mim, sem influências, a deter-me nas coisas que parecem pequenas, mas que são as mais importantes do mundo. E o mundo torna-se ascendente. Às vezes, sinto-me um revolucionário. Ou, pelo menos, um homem livre. E, por isso, estes são os postais de um homem livre...

8 comentários:

josé disse...

Amigo carteiro:

O seu postal fez-me lembrar uma notícia recente.
Aqui há umas semanas atrás, dei comigo a folhear mais um desses livros de escaparate intitulado "Cultura-tudo o que é preciso saber" ( Publicações D. Quixote e em alemão original, Bildung -Alles, was man wissen muss).
O autor, desconhecido para mim, dava pelo nome de Dietrich Schwanitz. A sonoridade teutónica cativou-me e fez-me acreditar que não estaria perante mais uma reescrita revisionista de certos acontecimentos culturais do Ocidente.
Num dos últimos dias do ano, um blogger que assina como JG e escreve na GLQL e no Portugal dos Pequeninos, noticiava que o escritor tinha morrido, sozinho, em casa.
Procurei mais e o jornal espanhol El Mundo noticiava:

"MADRID.- El escritor alemán Dietrich Schwanitz, autor del bestseller 'Bildung' ('La Cultura. Todo lo que hay que saber', en su edición en español), fue encontrado muerto en su domicilio por la policía alemana. Tenía 64 años, y según fuentes policiales "había fallecido hace varios días" cuando encontraron su cuerpo.

Dietrich Schwanitz fue profesor de Cultura y Literatura inglesa en la Universidad de Hamburgo de 1978 a 1997. Allí descubrió la tremenda ignorancia de la mayoría de sus alumnos, que desconocían las bases sobre las que se ha construido el mundo donde viven. Y escribió 'Die Bildung' ('La cultura. Todo lo que hay que saber'), una suerte de biblia cultural, que vendió un millón de ejemplares sólo en Alemania.

En su libro, Schwanitz, nacido en 1940 en Werne an der Lippe, en la cuenca del Ruhr, explica cómo y por qué surgieron el Estado, la ciencia, la democracia, quiénes son Hamlet, Fausto, Don Quijote, el doctor Jekyll y Míster Hide, qué dicen el Antiguo y Nuevo Testamento, qué es una revolución, cuáles son las grandes obras de la literatura, la ciencia, la filosofía... Su afán era pedagógico: incluyó un cuadro cronológico, una lista de los libros más importantes de la historia, consejos de lectura y un CD con las piezas musicales más destacadas.

En su ambicioso empeño, Schwanitz fue criticado por superficial. Él se defendía asegurando que su objetivo era hacer de la cultura algo entretenido. De hecho, sus referencias están hechas con humor y sentido crítico.

A juicio del autor, los contenidos de 'La cultura' deberían sustituir en los cerebros de los ciudadanos a otros materiales inútiles. 'La vida privada de los famosos ocupa mucho sitio en nuestras cabezas. A través del dominio de los idiotas en televisión, vemos que los medios tienen su propia vida, que son meros instrumentos para quienes los saben usar. De ahí viene una parte de la melancolía y el pasotismo. Pero es a través de la imbecilidad pública como todo eso se hace soportable', aseguró el autor durante la presentación de su libro en Madrid en 2002.

Desde 1997 Schwanitz, que estudió Filología Inglesa, Historia y Filosofía en las universidades de Münster, Londres, Filadelfia y Friburgo, vivía de su trabajo como escritor. Publicó, entre otros libros, 'El campus', 'La historia cultural inglesa', 'El síndrome Shylock' y 'El círculo'. "

Outro tipo do género? Umberto Eco! Ambos intelectuais e professores, escreveram livros de divulgação de saberes e tiveram sucesso estrondoso- lá fora, por esse mundo mais civilizado!
Aqui, a notícia da morte do alemão, ficou-se pelos blogs...

A cultura não tem de ser uma chatice e a leitura uma obrigação, e acredito que se consegue viver bem, sem nada disso. Basta olhar à nossa volta ou ligar a televisão em hora de prime time.
Mas ainda assim, é bem verdade que "nem só de pão vive o homem..."

Primo de Amarante disse...

Meus caros: no meu modesto entender, a cultura não é ler livros, mas o que fica depois de os ler e nos ajuda a melhor saber interpretar a vida, os outros e o mundo. Lembram-se dos "sebenteiros" -- os que só sabiam o que diziam as sebentas?!... Eram óptimos alunos, mas de uma ignorância profunda: nada sabiam sobre a vida, os outros e o mundo?! Todos nós conhecemos diplomados que sofrem de iliteracia, nomeadamente engenheiros. E também há os "intelectuais de sovaco".

josé disse...

É verdade, compadre que a cultura não será o ler livros, mas o resultado já digerido dessa leitura, condimentada pela experiência vivida.
Também nesta quadra fui ver um filme com a minha mais pequenita: Polar Express. Pensei que iria adormecer ao fim de dez minutos, mas não! É um magnífico filme.
De lá retirei a minha frase de bolso actual:
Nos combóios, o que importa não é o destino. É entrar e fazer a viagem!
Bela frase. Também na cultura, o que importa não é contabilizar autores e leituras, mas sim o que se adquire por osmose, se assim se pode dizer.

Primo de Amarante disse...

Talvez se possa aplicar, então, aquele princípio: "o culto é a medida de todas as coisas e o inculto também". Logo...

Kamikaze (L.P.) disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Kamikaze (L.P.) disse...

Este seu postalito, caro carteiro, tocou-me especialmente, por razões pessoais várias(e umas poucas "ex-profissionais"). Fiquei a matutar no assunto, com muita reminiscência paterna à mistura. Pela primeira vez desde há já demasiado tempo, senti que estava a construir mentalmente um texto e que se me dispusesse a escrever teríamos postal. Intimista qb... Mas logo hoje tive que começar a desibernar e agora, que chego a casa com uma rara sonolência, o postal foi-se. Por ora. Em contrapartida, deleitar-me-ei com os extraordinários aforismos de Fermin Romero de Torres (A sombra do vento - Carlos Ruiz Zafón), que qualquer dia trarei aqui à nossa tertúlia.

Entretanto,deixo excerto de um artigo de opinião, assinado por Almeida e Sousa, eng., publicado hoje no JN:

(...)"Tenho uma larga experiência desde que, há muitos anos, andei de saco plástico às costas a distribuir livros pelos nossos bairros mais carenciados. Todos aqueles a que consegui incutir o gosto pela leitura singraram na vida. Os outros... E despois o sonho lindo que se tornou realidade quando, com outros meios e outra extensão, a Fundação Gulbenkian pôs nas estradas as suas bibliotecas itinerantes, cujos resultados pude medir. Acabaram, mas outros (algumas bibliotecas municipais) lhe tomaram o exemplo e a cruzada prossegue.

Com quanto desgosto, tão pouco tempo depois da inauguração da Biblioteca do Barredo com a expressa determinação de quanto mais empréstimo melhor, vejo agora que uns senhores lá de Bruxelas, ignorando completamente a situação cultural dos Barredos, que ainda por cá temos, resolveu proibir o empréstimo gratuito de livros em defesa dos interesses dos autores e editores. Não vêem esses senhores que, cortando o empréstimo, estão a impedir o gosto pela leitura, prejudicando, e de que maneira, aqueles a quem querem defender? Se nos não habituarmos a ler, quem comprará os livros? Basta que comparemos as tiragens dos seus países e as nossas." (...)

josé disse...

Sobre as bibliotecas Gulbenkian, que nos anos sessenta percorriam os caminhos de Portugal:
Também fui cliente assíduo dos funcionários da carrinha Citroên de chapa ondulada e que parava fora da escola primária, à tardinha; e depois da escola primária, ainda por alguns anos. Dentro havia cheiro a livros, novos e velhos, todos marcados na badana, pela vinheta do número. Ser leitor dava direito a cartão de identificação. O meu primeiro cartão, ainda antes do BI!
A professora aconselhava a leitura e quem gostava de ler não se fazia de rogado. O problema era a escolha. Como é que um puto de 8, 9 anos e até com 12 e mais, procura um livro, numa altura em que a ilustração era sóbria e limitada? Pelas indicações dos homens da carrinha!
-Tu, levas este! E mais este e ainda este! Tu, ali, levas aquele e também este!
- Este não quero...
- Não! Não! Levas e lês e depois dizes se gostaste.
E assim foram os Salgaris e os Walter Scotts.
Mas tarde embarcaram os Adolfos Simões Muller e outros que já nem recordo.
Quase tudo literatura, historietas, para entreter.
Muda alguma coisa, ler historietas na infância e na adolescência?! Tenho dúvidas. Mudará tanto como hoje as histórias na televisão , logo pela manhã, com super heróis em barda?! Tenho dúvidas.
Esse entretenimento será apenas isso e ainda bem.

O que muda, a meu ver, é a leitura de história, de livros de curiosidades científicas, de filosofias e de livros que nem sabemos que existem e nos surpreendem. Poe exemplo, descobrir um livro com o título de Paideia e não fazer ideia sobre o que é até se começar a ler, mesmo sem perceber nada.
Lembro-me que uma das leituras mais interessantes da adolescência primária (11, 12 anos) era a de uma obra de divulgação, ilustrada, do Antigo Testamento. A Bíblia com ilustrações, para um puto com pouca imaginação, era um maná!
Agora, na tv, há imagens que mostram tudo o que então era misterioso e ainda assim, parece que pouca diferença faz ou então tem um efeito perverso que é o de limitar ainda mais a imaginação.

Na adolescência, o horizonte é quase ilimitado e a curiosidade o guia. Aí, sim! Aí é que a orientação e o papel do professor deveria ser essencial- para mostrar, mais do que ensinar.
Porém, acima de tudo, permanece uma coisa como de importante fundamental: a curiosidade! Essa é que me parece ser o motor da história.
Perdoem-me as intimidades, mas os postais do carteiro desinibiram-me um bocado para falar destas coisas.

Primo de Amarante disse...

O eng.Almeida e Sousa é das pessoas mais cultas que conheço. É uma das excepções que corfirma a regra.