18 janeiro 2005

Vivemos Paralisados pela Inveja

Entevista com José Gil (considerado pela "Nouvel Observateur" como um dos "25 grandes pensadores de todo o mundo"), publicada na Pública, Domingo, 16 de Janeiro de 2005

Pública - Depois da leitura do seu livro ("Portugal, Hoje - O Medo de Existir"), é impossível não se ficar deprimido.

José Gil - Hesitei muito antes de o publicar. Decidi fazê-lo, porque acho que estas coisas devem dizer-se publicamente, e não apenas em circuitos fechados, como habitualmente. E também porque penso ter encontrado um fio condutor, que dá
unidade a tudo o que afirmo.

P. - É aquilo a que chama "não inscrição". Que significa?

R. - Significa que os acontecimentos não influenciam a nossa vida, é como se não acontecessem. Por exemplo, quando uma pessoa ama, esse sentimento não afecta a outra pessoa, objecto do amor. Quando acabamos de ver um espectáculo, não falamos sobre ele. Quando muito, dizemos que gostámos ou não gostámos, mais nada. Não tem nenhum efeito nas nossas vidas, não se inscreve nelas, não as transforma. Ainda outro exemplo: o primeiro-ministro, Santana Lopes, classificou a dissolução da Assembleia da República pelo Presidente como "enigmática". Não disse que era incorrecta ou injusta, mas "enigmática", o que é a forma mais eficaz de a transformar em não-acontecimento.

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3 comentários:

Simas Santos disse...

«Não por acaso, 'O Medo de Existir' (de José Gil) começa e acaba na televisão e nos 'media'. Começa com a referência a uma característica dos noticiários há muito estudada: a da estrutura cujo fim é invariavelmente um 'fait-divers' garantindo aos espectadores a certeza de que a vida continua para além das catástrofes e tristezas dos noticiários. xemplificando com a notícia do nascimento de um panda num zoo, José Gil chama a este final anedótico 'o golpe do panda'. (…) Definindo Portugal como 'o país da não-inscrição', onde nada se inscreve 'na história ou na existência individual, na vida social ou no plano artístico' e 'as consciências vivem no nevoeiro', José Gil pode então recorrer com frequência à realidade mediática portuguesa como exemplo da superficialidade, do estar-se sempre 'entre-dois' sem se inscrever verdadeiramente num espaço definido (noticioso ou outro). Afirma: o espaço público não existe em Portugal, os 'media' substituem-no. E continua: 'não há debate político' em Portugal e até a televisão cria nesse domínio um 'espaço artificial' marcado sempre pelas mesmas pessoas e pelos mesmos temas. Quer dizer: o debate não debate o fulcro da questão, que é o 'sistema', o bloqueio. O discurso dos 'media' sobre o discurso político tem por função confirmar as políticas dos políticos e não debatê-las (...). Conclui Gil: 'Os lugares, tempos, dispositivos mediáticos e pessoas formam um pequeno sistema estático que trabalha afanosamente para a sua manutenção.' Eis-nos, pois, confrontados finalmente no livro com a palavra 'sistema'. O retrato demolidor que Gil traça da sociedade portuguesa não se limita aos políticos e aos 'media', abarcando também a administração, os meios e criadores culturais, o povo em geral e a Crítica, que não sai do 'fundo dos espíritos' para iluminar os seus leitores e receia colocar-se, como deveria, entre a obra e o público. Gil afirma que, ao ficarem 'entre-dois', ao criarem um simulacro de espaço público, os 'media' não permitem a eclosão do 'real quotidiano' nas pessoas, a sua inscrição nas vidas, pelo que as coisas passam sem nos marcarem. O acontecimento é tratado como algo 'para se comunicar' e 'não para eclodir no curso da minha vida'. E, como a fala existe num plano de não-inscrição, o mais que se ouve e lê é 'o esvaziamento da palavra'. (…) Este retrato de Portugal termina com a reafirmação de que 'o exercício do poder político, nas sociedade mediocráticas, passa pelo controlo dos 'media'' e de que a carreira de muitos políticos só terá êxito, 'mesmo dentro dos partidos políticos, através dos meios de comunicação social'. Este doloroso retrato do país é habitual; partilham-no elites e povo; mas é exagerado, como o próprio dá a entender. Não vale a pena Gil manter-se no plano do analista e recusar o epíteto de pessimista, porque um português que fala numa colectiva 'recusa do enfrentamento' - e portanto da extrema dificuldade em romper-se o sistema - tem necessariamente de se inscrever no crescente e difuso grupo duns novos 'vencidos da vida', que, feita a análise do 'sistema' e interiorizada a incapacidade de o mudar (…), procuram formas de fazer a catarse anti-suicídio: seja na literatura, na filosofia, na gastronomia, no lazer, e, por que não, na crítica. Mas José Gil não está apenas, como analista, fora deste retrato. O seu pessimismo histórico põe-no dentro e é, também ele, uma forma do 'medo de existir' e de justificação da inacção. É o intelectual como observador não-participante e, já agora, como telespectador - impressionado, impressionista e impressionante»

EDUARDO CINTRA TORRES
Público, 17 de Janeiro de 2005

Silvia Chueire disse...

Gostei muitíssimo de ler esta entrevista.Faz pensar, e eu gosto de pensar. Obrigada.

Silvia Chueire

josé disse...

A entrevista lembra-me outra de Manuel Castells, o espanhol que se doutorou em sociologia, economia e ciências da informação, mistura tudo isso e ensina na Califórnia.

Realço esta parte:

"É através da expressão que nos podemos livrar do medo?

R. - Nós temos uma pobreza enorme de expressão em relação à nossa existência. O que sabemos de nós, hoje, é pouquíssimo. Por exemplo: o que uma mulher pode sofrer, com a sua condição de inferioridade social, com os dramas domésticos... Tudo o que se diz, mesmo o que aparece na literatura, não exprime o que ela poderia sentir, e acaba por fazer com que ela não possa sentir o que verdadeiramente sente."

Fazendo o paralelo, esse medo de que fala o filósofo, talvez seja o que impede os magistrados e outras pessoas publica e socialmente comprometidas de vir aqui ou para outros fora, falar e escrever sobre o que sentem, o que pensam disto ou daquilo, etc.
Têm provavelmente o tal medo de que fala GIl. O Medo de se confrontarem com eles mesmos e os outros e poderem ficar mal, embora seja um mal imaginário.
Toda a gente tem dúvidas e as dúvidas são as mesmas para todos, parece-me. Então, porque há pouca gente nestas profissões a expôrem o que sente e pensa?!
Protecção. Medo, no fim de contas.
É um atavismo como outro qualquer, mas merecia ser desmontado e ultrapassado.
Há exemplos aqui disso mesmo-da ultrapassagem desse medo- e ainda bem.