28 fevereiro 2005

UMA FORMA SUPERIOR DE ESTAR NA VIDA?

Já que fui invocada e, de certo modo, «provocada» a opinar, respondo colocando aqui algumas reflexões (parte das quais já presentes no meu blogue ao longe os barcos de flores) sobre como entendo a poesia e o fazer poético.

Antes, porém, devo dizer que me agrada esta troca de pontos de vista entre o Compadre Esteves e a Sílvia.

Colocando-me numa posição mais ou menos intermédia, digo, como parece dizer o Compadre, e repetindo Rimbaud, que «o poeta é um vidente», um visionário; e com a Sílvia, que o poeta, não sendo diferente dos outros homens, se define como aquele que transfigura o real pela palavra, criando assim uma espécie de supra-realidade,em que nos reconhecemos, (ou não…). O poeta, disse, salvo erro, Sophia «é um escutador», ou, como disse Nemésio, «um mostrador». E tudo isto graças a u trabalho sobre essa matéria-prima que é a palavra.

E gostaria de recordar, para que melhor se entenda o meu ponto de vista, um texto de Almada Negreiros

–A FLOR:

Pede-se a uma criança. Desenhe uma flor!
Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.
Passado algum tempo o papel está cheio de linhas, Umas numa direcção, outras noutra; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase não resistiu. Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais.
Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: uma flor! As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor! Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas, são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!

Prosseguindo, agora com o que me foi sugerido por este texto de Almada e pela minha reflexão sobre o que é a poesia (é justamente esta parte que constitui o primeiro Do Falar poesia no meu blog):

(....) É esta a dura tarefa do poeta e do fazer poético: - Lutar insistentemente com a palavra indescoberta, incriada, porque de seu labor árduo recolhe novos sentidos e os transfigura pela palavra, «fingindo», tantas vezes, como diz Fernando Pessoa, «a dor que deveras sente».-É também esta a luta de Orpheu (por isso, a poesia é eminentemente órphica)- encontrar a palavra primordial e única que lhe faça reencontrar Eurídice e trazê-la de volta, depois da sua longa e árdua caminhada iniciática.
Começa então o trabalho do leitor. Ele completa o poema, captando-lhe o sentido, recuperando com o poeta um saber das origens, simultaneamente longínquo e reencontrado.

Ler um poema será então este reencontro com a palavra do poeta, - que vai do coração para a cabeça, como dizia Almada Negreiros - o contacto com modos de dizer, produzindo sentidos ‘outros’, (estamos no domínio da ‘transcendência’, dado que na base da criação poética está a metáfora, criadora de realidades ‘outras’; - sendo assim o texto uma ficção, um fingimento - em que nos reconhecemos - ou não...).
Ora, sabemos, o acesso ao transcendente faz-se pela via da iniciação e por degraus - iniciando-se, no caso vertente, pela emoção ( o coração que, como no poema de Pessoa, é um combóio de corda que «gira a entreter a razão»). Mistério órfico por excelência, é essa a via iniciática a que nos convidam os poetas, os fazedores de sentidos.
Por isso eu posso dizer também isto - que a muitos poderá parecer ousado demais: - viver, ler e sentir a poesia é também: - sentir, tocar com a nossa alma e coração o coração e a alma que habitam o poema - ou que o poema sugere.
[Vem-me daí essa sensação de uma certa espécie de «plágio» que sinto em relação a tantos poemas e poetas - - os que dizem o indizível que só a palavra transfigurada permite. Como se eu fosse, também, uma espécie de co-autora...]
«Sentir, sinta quem lê» - é certo. Mas só sentimos com os poemas que estavam em botão dentro de nós e «partilhamos» com o poeta que os «fingiu» nessa luta incessante pela palavra justa. (....)
Amélia

9 comentários:

Amélia disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Amélia disse...

Olho Vivo:

Para quem não gosta de poesia, até que nem vai nada mal, terminando com um verso de Pessoa...:))


Carteiro:

E eu gosto de poemas, que são poesia feita acto por poetas.Nem todos os versos são poemas...e nem todos os poetas o são.A mim interessam-me bastante menos os poetas que os poemas.Nisso estou também consigo.

Silvia Chueire disse...

Amélia,

Aí está, concordo com a sua posição intermediária. É bastante próxima do que penso. Sendo melhor elaborada do que a minha que, diferentemente do que pensou o compadre, não sou uma estudiosa ou uma pessoa que produza teoria neste campo.

Olho vivo,

Um belo trecho de prosa poética você nos proporcionou.Gostei dele, ainda que não acredite nas suas afirmações. Mas não há que se acreditar em poemas, não é isso? O que há é que senti-los. Ademais,além da citação de Ricardo Reis, li um comentário seu de 14 de janeiro passado que contradiz o que você acaba de escrever.Por outro lado não me parece que haja superioridade moral numa morte antecipada recusando ou não a superioridade, a vida,o poema, a poesia ou o poeta. Por ora estamos todos vivíssimos.

Carteiro,
Pessoalmente nada tenho contra os poetas. Nem contra outras pessoas que exerçam quaisquer outros ofícios. Em geral gosto de gente. E gosto muito de poesia. Mas também de música, de artes plásticas, de teatro,de tantas coisas. Enfim, de viver.

Primo de Amarante disse...

O ponto de vista do Olho Vivo levanta, indirectamente, uma questão fundamental: que tipo de racionalidade deve orientar o homem?!...
Max Weber considerava que a sociedade moderna estava marcada por um paradoxo: «Vivemos numa sociedade altamente racionalizada (a nível dos meios tecnológicos e organizativos) e, ao mesmo tempo, profundamente irracional (quanto à reflexão acerca dos fins, do homem, ou modelo de sociedade que se quer realizar)». Faz, portanto, a distinção entre Razão de Fins ou valorativa, utilizada pela filosofia, pela poesia e pela ética, e Razão de Meios referente à ciência e a técnica.

A poesia só poderá ser maldita se apenas aceitarmos a racionalidade de meios; ou seja,se confiarmos apenas na técnica e na ciência para a resolução de todos os nossos problemas. Mas, como somos seres complexos, amamos, sofremos e sonhamos, a racionalidade de meios não dá resposta aos nossos problemas. Só por desespero ou, então, plagiando, de forma descontextualizada, poeticamente, Fernando Pessoa (Mensagem), poderemos dizer «somos cadáveres adiados que procriam». Mas Fernando Pessoa não quer com isso significar «Na vida só há a superioridade moral de quem a recusa, numa morte antecipada. No resto, somos cadáveres adiados que procriam». Fernando Pessoa não faz a apologia do suicídio. Põe na boca de D.Sebastião, «Minha loucura, outros que me a tomem/ Como o que nella ia./Sem a loucura que é o homem/Mais que a besta sadia,/Cadáver addiado que procria?».
O que Fernando Pessoa faz é, de certa forma, o elogio ao sonho e, como diz Gedeão “o sonho comanda a vida”. E é nisto que reside a arte “do fazer poético”, como diz a Amélia com a autoridade que lhe vem de muitos anos a pensar estas questões.
Esperamos que o Olho Vivo abra as janelas do seu quarto e veja a enorme beleza que há no voo das aves que se anteciparam ao seu madrugar.
A verdadeira lição (para mim) que a Amélia nos dá no seu post, levanta, entretanto, a seguinte questão: não haverá outras estéticas poéticas que não se enquadrem no conceito de poesia que, suponho (!) estamos todos de acordo?!.. Por exemplo, a poesia gráfica ou concreta de Ronaldo Azeredo
“Z
Crê
no
azul
como
O
anzol

no peixe”

Finalmente, sobre o dilema: poeta/poesia. Só para não falar em muitos poetas do nosso tempo, sabemos que Homero era um bêbado, que Virgílio era um vaidoso, que Horácio foi considerado covarde, que Rafael era libertino, etc. No entanto, colocados num prato de uma balança os seus defeitos e no outro a obra que os imortalizou, verificamos que os defeitos são uma espécie de pó na balança.
A questão, gostar dos poetas ou gostar dos poemas, penso que não faz muito sentido. Estou com o que diz a Amélia: «viver, ler e sentir a poesia é também: - sentir, tocar com a nossa alma e coração o coração e a alma que habitam o poema».

Primo de Amarante disse...

Não consegui colocar na forma gráfica (Z) o poema de Ronaldo Azeredo. Peço desculpa.

Silvia Chueire disse...

Caro Olho Vivo,

Ainda que seu último comentário tenha sido uma resposta ao compadre tive vontade de dizer que não achei que você fizera a apologia do suicídio.
Concordo com sua afirmação sobre sermos vaidosos, inúteis e precários - há outros adjetivos eu diria, nem todos negativos.
Não tenho ilusões quanto a sermos uma espécie de sucesso- não somos de todo insucesso, se você levar em conta nosso potencial de início. Nem tenho certeza quanto a estarmos na infância do Homem - talvez já estejamos nas degenerescências geriátricas. E discordo quanto à sua afirmação de que o otimismo poético seja a doença infantil da Literatura, muito menos da Vida.
O otimismo poético só é doença literária quando é má poesia, mas aí nem é Literatura. : )
Há doenças infantis da Vida muitíssimo mais significativas do que o otimismo, poético ou não.
Aqui eu citaria Barthes (que encontrei ontem no blog da Amélia), quando fala sobre a vida,de uma certa idade após os cinquenta anos, da experiência de desaprender, de deixar germinar a mudança :
"Sapientia: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria e o máximo de sabor possível."
Não sei muito, não tenho muitas certezas, mas quero o sabor possível..
Talvez eu não tenha sido clara no nexo que fiz, mas o fato é que ele há.
Last but not least, meu protesto pelas generalizações em relação aos poetas.Definitivamente não gosto de generalizações. : )
Abraço,
Silvia

Primo de Amarante disse...

Se o princípio recíproco de só fazer valer argumentos não constituir regra tacitamente aceite entre todos os dialogantes, haverá algum interesse em colocar empenho neste tipo de diálogo bloguista?!...
Não é a primeira vez que coloco a mim mesmo esta interrogação.

Silvia Chueire disse...

Compadre,
A discussão vem correndo bem. Um diálogo, mudança nas posições iniciais, etc. É natural que tentemos fazer valer os argumentos.
É sempre assim que começa este tipo de discussão. Pessoalmente gosto delas, no mínimo nos fazem pensar. E ao longo do diálogo, vamos revendo opiniões. Mas nem todos as reveremos necessariamente. Isso também faz parte. Fora dos blogs não é a mesma coisa? : )
Abraços,
Silvia

Primo de Amarante disse...

Nunca quis dar ao "Fazer valer argumentos" um sentido constrangedor do debate. Pelo contrário, entendo que os argumentos são destinados a produzir consensos, na medida em que argumentar supõe disponibilidade para aceitar a refutação ou a corroboração e a conclusão legitima é a que se aproxima da consensualidade. Referia-me ao "ruído" que não é argumentativo, o "mandar bocas" para gozar com as situações. Só há comunicação dialógica,quando afirmarmos aquilo em que acreditamos. É a regra fundamental do diálogo. Se o que acreditamos está errado ou não é verosímil, isso é outra coisa. O decorrer do diálogo serve, como diz,"para rever opiniõe", corrigir pontos de vista e progredir no conhecimento. Mas não era a isto que me referia no último comentário, como é evidente.