14 abril 2005

Au Bonheur des Dames (segunda entrega)

Sempre para o Porto

"Para onde vamos nós?
Sempre para casa!"
J.W.Goethe

Para os nados e criados no Porto é fácil, é normal, é quase obrigatório, amar a cidade, reconhecê-la a todo o momento instintivamente, saber em que exacto centímetro da ponte D. Luis ela acaba.

Para nós outros, e tantos que somos!, que à cidade dos antepassados regressámos, que a escolhemos para viver e morrer nada foi simples: faltou-nos , e faltar-nos-á sempre, a memória da meninice, os amigos da escola, a ternura alumbrada do primeiro baile, invernos de cheias em Miragaia e naufrágios à beira foz.

A cidade, para quem aqui chegou com olhos de ver, pelos finais de 50 inícios de 60, era, antes de tudo, um colégio, prefeitos, porteiros e proibições temperadas pela aventura da fuga por telhados e quintais.
Uma vez na rua tudo - ou quase - era desconhecido, agreste ou, pelo menos, diverso daquela Figueira da Foz marítima e solar, cosmopolita por três meses e suavemente embalada pela modorra durante o resto do ano.

Aturado que foi o colégio, arribei a Coimbra e jurei,"in pecto secretissimo", que nunca mais me apanhavam a norte do leitão da Bairrada.
Erros meus e amor ardente fizeram com que, findos os loucos 60, a boa fortuna para aqui me atirasse a praticar de advogado. Pouco depois de Abril de 74, alguém, alucinado pelos bons sentimentos e fervor patriótico que no momento grassavam, entendeu desviar-me daquilo que mais parecia, a seus olhos, profissão de peripatética e encorajou-me a salvar a Pátria supostamente remoçada e virtuosa.

Aportei, como o capitão Morgan, à presidência da Caixa de Previdência Têxtil e foi por esses primeiros e trémulos dias de Janeiro de 1975 que, por inexplicável (?) acaso, me deparei, na Rua do Pombal, com um grafitti que não dava vivas a ninguém e muito menos morras a alguém. Dizia assim, a verde pingão e apressado:

Colhe
todo o ouro do dia
na haste mais alta
da melancolia

O poema é de Eugénio de Andrade, outro que, das "terras de nomes porosos", para aqui emigrou. E estava ali numa rua quase anónima, numa parede leprosada pelo tempo e pela incúria, como um farol, um foguete de lágrimas, num silêncio espantado e violentíssimo, a encher a cidade de luz e o inverno de um vero lume vivo.

E, subitamente, a cidade "ao meu encontro veio como uma ponte" pejada de amigos velhos, nozes e passas de figo, memórias e, na multidão apressada, havia vozes e risos. Hoje seja na rua Bela ou na esplanada do Ferreira, há algo que me recorda o verso imortal de Goethe
Wohin gehen wir?
Immer nach Hause!

Leitor: a cidade, esta cidade, está virada de patas para o ar - há estaleiros rua sim rua não, prédios, quarteirões inteiros, prometidos ao desmantelamento, tapumes de todo o tamanho e feitios. Não consintas que a lepra continue patente e impune ou que o desaforo publicitário nos atragante a vista cansada. Convoca amigos, parentes e aliados que a causa é merecedora! Pixem-me esses muros, tapumes, e paredes de versos, de palavras vivas de palavras-vida que alvorocem consciências e corações e façam com que um passante (bastará um) se sinta menos estrangeiro, menos de passagem.

E se me leste até aqui com sofrida paciência, porque não ler de verdade quem melhor do que eu, que tu, que nós, por nós fala agora e para sempre?
Por exemplo, e do Porto: Eugénio, Egito, Manuel Pina ou Fernando Guimarães. E mais não cito, que, ao ler uns, outros virão, e ao encontrá-los, encontrar-te-ás.

Mais do que salvar uma vida, um poema pode dar sentido à vida.

O texto que tenta ser uma homenagem ao meu amigo Eugénio de Andrade, tem uns bons quinze anos em cima. Não tenho a certeza, mas penso que foi uma única vez publicado no “Comércio do Porto” mas como não tenho cópia não o posso garantir.

E agora permitam um par de sugestões: de Eugénio lê-se tudo mas, para começar, não há melhor do que “Primeiros Poemas" (com: “amantes sem dinheiro” e “as mãos e os frutos”). Está na Limiar. A Imprensa Nacional publicou há anos as Obras Completas em 2 volumes (é uma oportunidade!). Manuel António Pina tem uma edição recente de “Poesia Reunida” (Assírio & Alvim) e um excelente livro de crónicas “O Anacronista” (Afrontamento). De Fernando Guimarães recomenda-se, devotamente, "Poesia Completa", 1º vol. também na mecenática Afrontamento. Egito Gonçalves de quem alguma vez se falará aqui mais detalhadamente é um caso muito bicudo: o diabo do homem está quase esgotado. Imperdível, o que se chama imperdível é, notem bem, “Destruição: dois pontos” (Inova) Trata-se, além do mais, de uma edição belíssima!!! O resto que é muito e é bom anda distribuído pela Limiar, Quetzal e Campo das letras.

Boas leituras e que Deus abençoe os poetas.

2 comentários:

Kamikaze (L.P.) disse...

Amén.

Silvia Chueire disse...

Tem sido um prazer ler os seus posts. Mesmo.

Abraços,

silvia Chueire