18 abril 2005

NOTÍCIAS DO ANTIGAMENTE - 6

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A Mocidade Portuguesa - crónicas contra o esquecimento


O regime salazarista cedo entendeu que, para se consolidar, um sector importante seria, a par da censura à imprensa e espectáculos e da polícia política, o do 'endoutrinamento' dos jovens portugueses, mediante a veiculação da ideologia do Estado Novo na escola.
Tal era, basicamente, conseguido de vários modos:- já falámos um pouco do controle apertado dos professores pelos reitores' e seus 'ajudantes' -- os reitores e vice-reitores - nomeados pelo Governo, e pelos serviços de inspecção (lembramos que os professores tinham de fazer anualmente uma declaração de apoio ao regime e de repúdio 'activo do comunismo e de outras ideologias subversivas');- pelo conteúdo dos programas, e nomeadamente dos livros de estudo 'únicos' aprovados, não pelos professores, mas pelo Ministro da Educação .
[1]- finalmente pela criação, desde 19 Maio de 1936,da Mocidade Portuguesa e da Mocidade Portuguesa Feminina.
Tratava-se de uma organização de inscrição obrigatória para todos os estudantes e de tipo para- -militar (à semelhança de organizações congéneres alemãs e italianas, de tipo fascista, bem como das Juventudes Comunistas dos países da órbita soviética).A Mocidade Portuguesa tinha um Comissário Nacional da confiança de Salazar - e era organizada à maneira de um exército, com as seguintes divisões: as quinas (grupo de 6 elementos, chefiados por um 'chefe de quina'); os castelos (30 elementos, chefiados por um 'comandante de castelo')e as falanges ou bandeiras (comandados por um comandante de falange e constituídas por 240 elementos); portanto, um mini - exército devidamente hierarquizado, para rapazes e raparigas. Havia também 5 categorias etárias de filiados: os lusitos (7-10 anos); os infantes (10-14 anos); os vanguardistas (14 a 17 anos)e os cadetes(17-25 anos).
E o que se fazia nas tardes destinadas às actividades da Mocidade Portuguesa?
Havia uma 1ªpreparação paramilitar para os rapazes, que envolvia uma espécie de 1ª'recruta 'a partir dos 17 anos havia também uma forte preparação física - ginástica e desportos [os professores de Educação Física viviam na dependência dos responsáveis da Mocidade Portuguesa nas escolas em que leccionavam; a sua continuação na escola dependia de boa informação dada pelo(a)responsável da M. P. ou M.P.F.]; havia também outras actividades extra-curriculares de ideologia nacionalista, mas também de índole cultural e recreativa - por exemplo, as 'meninas' podiam ter aulas de enfermagem, 'arte de dizer', culinária ,etc, de modo a poderem vir a ser as 'sentinelas das mais lusas tradições' '-'as lusitanas vigias', enquanto competia aos 'varões', ou seja, aos rapazes, defender a Pátria 'de armas na mão'.
Cultivava-se, por um lado, para todos um patriotismo de feição 'patriotinheira' - nós, portugueses éramos o povo' entre todos escolhido para povo do Senhor',
[2] os melhores do mundo, os que sempre tínhamos tido Deus do nosso lado (desde o milagre de Ourique) e sempre tínhamos feito o bem, por idealismo, levando desinteressadamente a civilização aos pretos e outras raças, na África, na Ásia, no Brasil...ao contrário dos outros povos, quase sempre 'os maus', que só se moviam por interesses económicos, pouco nobres ;,e, por outro lado, o sentido do dever de obediência aos chefes - no hino dos 'lusitos' (7-10 anos) dizia-se :"Somos pequenos lusitos / Mas já firmes e leais / honramos e respeitamos / nossos chefes, nossos pais // Temos pela Pátria amor / e esperança no porvir / De bom grado aqui vimos / o nosso dever cumprir..."//[...] E se algum dia /preciso for /ir combater pela Nação /iremos com a fé em Deus e a Pátria no coração"Como já foi dito, era obrigatória a inscrição na Mocidade Portuguesa - e para os rapazes a aquisição de uma farda semelhante à da tropa, castanha e verde, com as insígnias da organização - o cinto fechava com um S - oficialmente de "Servir no Sacrifício", mas que era vulgarmente interpretado como Servir Salazar...Havia também inúmeros cânticos patrióticos / patriotinheiros que celebravam o culto dos heróis, dos chefes, do sacrifício e da obediência.
Por ex. um tinha o seguinte refrão:
Dos valentes Portugueses / Honremos a sua glória / Aos mouros e Castelhanos / Alcançam sempre a vitória // Pelos mares abrem caminhos/Em todas as direcções/ E assim mostram novos mundos/ às conhecidas Nações. //Tenho orgulho / em ser filho/desta tão linda nação/Tão bonita, tão formosa/que a trago no coração...
O equipamento de ginástica levava também colado o emblema da M.P./MPF.E os cadernos diários, folhas de testes, etc., vendidos exclusivamente nas escolas, igualmente.) Havia anualmente desfiles e paradas no 1ºde Dezembro e 10 de Junho, acompanhados de grandes festivais ginásticos.
[E de novo nos vem à memória o que se vê nos filmes sobre Hitler e Mussolini e também nos festivais de juventude que ocorriam nos países comunistas;De resto a saudação da Mocidade portuguesa era a saudação hitleriana - que agora os grupos e 'gangs' neo-nazis também adoptam - ].
Nas escolas primárias cumprimentavam-se assim o professor e os retratos obrigatórios de Salazar e do Presidente da República. E rezava-se obrigatoriamente diante de um crucifixo colocado a meio dos dois retratos. Pelo menos nas aldeias era assim. - Na escola onde andei era assim, juro.
A Mocidade Portuguesa desenvolvia também actividades sociais de tipo caritativo - de que se destacava, para as 'meninas', a feitura de 'enxovais' para oferecer aos bebés pobres no dia das Mães(na altura,8 de Dezembro).Muitos dos elementos e quadros mais destacados da Mocidade vieram a ser os futuros quadros de confiança de Salazar.
A partir de 1966 (data em que Marcelo Caetano se tornou primeiro-ministro e quis dar mostras de alguma ‘abertura’ do regime) a Mocidade abandonou as práticas e treinos paramilitares e ficou apenas com actividades de acção social escolar, circum - escolares e de ocupação de tempos livres para jovens não estudantes. A Mocidade Portuguesa, como a P.I.D.E., a Censura, a Legião Portuguesa foram naturalmente extintas após o 25 de Abril de 1974.
A autora destas linhas teve, durante 7 anos, de ler, em todos os cadernos diários que obrigatoriamente deviam ser adquiridos no Liceu
[3] que frequentou, cadernos ornamentados com o emblema da Mocidade Portuguesa, frases deste tipo:

TUDO PELA NAÇÃO- NADA CONTRA A NAÇÃO


"Temos de lutar pela verdade da vida que é luta, que é sacrifício, que é dor, mas queé também alegria, céu azul, almas lavadas e corações puros"(Oliveira Salazar)-
- um pouco à maneira do 'livro vermelho' de Mao Tse Tung ou do 'livro verde' de Khadafi...
Por isso, não recorda com saudade tais tempos - mas entende dá-los a conhecer, para que os mais novos fiquem a saber como era - e vejam como o 25 de Abril de 1974 era necessário.
[4]De resto, verdade se diga que também os grandes e pequenos responsáveis do anterior regime e das suas organizações, a nível nacional e local, se deram depois conta de que, afinal, viver em democracia é melhor e acabaram por saudar - vamos acreditar que com sinceridade - os novos tempos .E ainda bem, para todos vivermos contentes...
(continua)

Amélia Pais

____________________
[1] a título de exemplo: era recomendado não adoptar ou recomendar a História da Literatura Portuguesa de Oscar Lopes e António José Saraiva (ambos intelectuais de esquerda);e cortavam-se os textos considerados «escabrosos» d’ Os Lusíadas(por ex., entre outros, todo o Canto IX – Ilha dos Amores- considerado imoral).[2] Cantava-se num cântico religioso[3] Liceu Nacional de Viseu, hoje Escola Secundária Alves Martins.[4] Para os ainda mais novos: sabias que não podia beber-se Coca-Cola antes do 25 de Abril?e que se tinha de pagar imposto para usar isqueiro? e tinha de se pagar um imposto de guerra a partir de 1961(guerra colonial) no valor de 1%sobre artigos de luxo? -entre eles, era considerado «de luxo» o frigorifico...

3 comentários:

M.C.R. disse...

Entrei para o liceu no longínquo ano de 1952 e, claro, às quartas e sábados, à tarde, lá tinhamos MP. Quem nos dava instrucção era o capitão Bazílio. Havia sempre um oficial do exército que, para arredondar o fim do mês, se encarregava de dar instrução militar aos "infantes" (o liceu só tinha o 1º ciclo de modo que não dava para haver "vanguardistas" nem o resto...
Convenhamos: nessa altura a MP já era uuma pálida imagem do passado. A malta lá formava, aprendia a marchar, e pouco mais. Nesse pouco mais incluia-se a aprendizagem dum alfabeto feito por bandeiras. como estas eram poucas, e como todos tínhamos de aprender aquela chochada, a transmissão era mais ou menos deste teor: O-L-A-; O-L-A; S-O-U D-A-P-R-I-M-E-I-R-A- Q-U-I-N-A- E -T-U; S-O-U- D-A S-E-G-U-N-D-A; e pronto fechava a transmissão, vinham os seguintes e tocava o mesmo. Em Moçambique já era obrigatória a farda. Em compensação a maior parte do tempo era para o desporto. Menos mal! Eu, entretanto descobri que havia uma secção de cinema e pirei-me para lá: andei 3 anos com mais três sócios, igualmente pouco dados a grandes esforços, a fingir que fazíamos os desenhos de base para um filme de desenhos animados. Como ninguém nos controláva, íamos andar de bicicleta por todo o Lourenço Marques. Só uma vez tivemos de marchar pela cidade mas o meu "castelo" que era aliás a minha turma, foi para o local de concentração de bicicleta. Fomos obviamente castigados. Quando voltei para a metrópole e me inscrevi no liceu D João III de Coimbra, tive o cuidado de não apresentar uma guia de marcha que trazia de África pelo que nunca puz o pé nas actividades da M.P.
Todavia, Caríssima Amélia, não me posso queixar da dita cuja MP.
Eu conto: em 1962 a malta de Moçambique que estudava na "metrópole" organizou viagens a baixo preço para a colónia. Por isso iamos embarcando na TAP consoante as vagas. Ora isso implicava esperar pacientemente a nossa vez, o que só podia ser feito se estívessemos em Lisboa. Claro que ao fim de uns dias, nem eu nem o meu irmão, tínhamos dinheiro, aliás gasto em coisas muito mais úteis. Vai daí acolhemo-nos à protecção da MP que nos alojou numa belíssima casa ali à Visconde de Valmor onde comemos e dormimos durante quuase duas semanas, prometendo pagar quando regressássemos. Até hoje, claro!
A MP tinha ainda outro excelente atractivo, desculpe lá mais esta, ó Amélia: Tinha uns serviços quaisquer no palácio da independência ali ao pé do Rossio. Descobri suponho que já nos finais de sessenta, inícios de setenta que se lá estacionasse com ar de quem mandava naquilo (ou em qualquer coisa conexa) não havia porteiro que mo impedisse. Pelo contrário: ao fim de algum tempo até já nos cumprimentávamos de bacalhoada. Em suma: a MP que eu conheci ( e só esta, claro!...) era uma balda, um desastre, uma caricatura e um sintoma do que no fundo o país era.
De todo o modo parabéns pelo seu texto
mcr

Amélia disse...

Gostei desta sua experi^^encia a trocar as voltas à M.P.....Vou acrescentá-la ás mimhas crónicas para memória futura.Um abraço

Silvia Chueire disse...

Tem sido ótimo ler estas suas crônicas, Amélia. E agora a contribuição do MCR.
Obrigada.

Beijos,

Silvia