Meu caro LC
Acolheu-me V. neste blogue com a amizade e a consideração que se usa entre pessoas de bem que se conhecem, respeitam e estimam. Permita-me que, em nome desse conhecimento antigo, dos tempos em que falar era proibido, e agir significava vexame e prisão, lhe venha dizer um par de coisas.
1 Os adversários escolhem-se entre pessoas que são nossas iguais e que agem dentro de limites éticos e sociais aceitáveis. Numa palavra: entre pessoas civilizadas. O resto é mera paisagem. Por exemplo: um cão raivoso morde-nos. Não é um adversário mas tão só um pobre animal atacado por uma doença que o dementa e torna agressivo. Se, porventura, tiver de ser abatido, a sua morte não é um castigo mas apenas uma maneira de o tornar inofensivo e de lhe acabar com o sofrimento.
2 As ofensas que recebemos só são, na realidade, ofensas se o ofensor for da nossa "laia". Ou, por outras palavras, se um pobre tolinho, desses que os nossos vizinhos chamam "loco de atar", nos atira com uma parvoejada, não vale a pena prestar-lhe atenção. É que, no meio da sua insanidade, desponta-se-lhe uma pobre luz de reacção e ele continua a dizer tolices e/ou impropérios enquanto se baba. E, então, lá temos de chamar um enfermeiro ou dois, munidos de um colete de forças e de um lenço para lhe limpar a baba e o ranho do nariz. Está V. a ver a trabalheira...
3. Contava-se, numa Espanha negra e felizmente desaparecida, que o senhor general Franco queria casar a filha com algum descendente da mais alta nobreza. Terá deitado a vista oblícua sobre um daqueles grandes duques carregado de títulos e de glórias e, sem perder tempo, propôs-lhe o negócio nupcial. O velho aristocrata, conservador e monárquico, ter-lhe-á dito que a proposta era amável mas que via uma dificuldade: havia classes. E com isso queria dizer que, entre o novo riquismo franquista de mãos tintas de sangue e ódio e a velha nobreza que abominava a república vencida, havia um abismo intransponível.
4 O mundo em que vivemos está cheio de pessoas de bem, de pessoas tout-court e de malandrins e marotos das mais diversas procedências. Às vezes aparecem mesmo algumas criaturas que, além destas características pouco entusiasmantes, não "batem bem da bola" como agora por aí se diz. Se, ainda por cima, se junta a este desagrável cocktail, alguma notória falta de chá (bebida que se deve tomar em quantidade quando pequenino), a coisa assume aspectos francamente repelentes. Todavia que isso não nos desanime nem nos obrigue a desistir de ser o que somos e de fazer o que fazemos. Est modus in rebus!, ainda não se chegou ao ponto de uma pessoa de bem ser avaliada por gentinha que a si própria se qualifica como "tolinha rematada". Nem todos nos podem ofender.
5 Antero de Quental, esse "génio que era um santo", dizia a propósito de um cavalheiro de quem, por pudor, escondo o nome: "Em termos morais esse senhor é um esgoto!" Antero está aí, exemplar e resplandecente, enquanto o outro jaz debaixo de duas pazadas de terra, tão ignorado dos vindouros quão desprezado pelos seus contemporâneos.
6 Permita-me, agora, que nesta carta dirigida a Si (e às pessaoas de bem) meta um ou dois parágrafos para alguns dos Amigos que fizeram o favor de comentar o texto de apresentação de Au Bonheur des Dames:
- em primeiro lugar agradeço a indignação que manifestaram pelo despudor do primeiro e anónimo comentador; tanto mais que assinaram com o seu nome, sans peur et sans reproche, como pessoas de bem, civilizadas e capazes de perceber a diferença entre uma troca de opiniões e um ganido fétido.
- em segundo lugar, gostaria de dizer que, apesar do muito apreço que tenho às profissões jurídicas, não sou magistrado ou advogado e não tenho tenções de alguma vez mais o vir a ser. Tão pouco me interessam as guerrilhas internas destas duas classes a menos que reflitam políticamente ataques aos direitos humanos, à democracia e à liberdade. Evidentemente que se da prática de um senhor advogado, conservador, notário, juiz ou procurador houver indícios de abuso de poder, de tirania de capoeira etc..., eu reajo. Mas reajo com o meu nome, de cara descoberta, firmado apenas num passado de que me orgulho e da amizade e solidariedade de gente que tentou mudar isto, quando as lálás da Caparica, os lulus da pomerânia, os lólós da pevide e restante geringonça andavam calados e mudos como carpas. Verdade se diga que com o 25 de Abril rapidamente se lhes soltou a voz esganiçada e trauliteira... As revoluções também têm efeitos perversos...
-em terceiro e último lugar, isto não é um jogo de futebol: ou seja, não é igual ser-se o ofendido ou o ofensor. Que as boas almas caridosas e imparciais não me venham dizer que estamos perante partes iguais num confronto leal e aberto. Uma coisa é ser a Checoslováquia, obrigada a ceder os Sudetas sob a pressão das boas almas internacionais que apelavam à manutenção da paz, e outra é ser o Reich hitleriano e nazi, agressor e insaciável. Uma coisa foi ser a Espanha legal e republicana e outra foi ser a amotinação da oficialagem franquista apoiada pelos mussolinianos fascistas e pela legião Condor de Hitler. A não intervenção significou derrotar a razão e permitir o atropelo e o crime. Isto não é a guerra do alecrim e da mangerona, nem eu sou mercenario ou cabo de esquadra do Amigo LC
7 e conclusão: Amigo e Velho colega duma Coimbra que já vai longe: faça luto pelo Papa, pela Justiça, pela Liberdade tantas vezes maltratada. Não se vista de preto por uma palhaçada. Não se ponha ao mesmo nível da calúnia. Nem V. o merece, nem os seus amigos neste e em muitos outros blogues o merecem. A minha reacção ao ler aquela pobre tolice começou por ser uma gargalhada: Meu Deus ao que isto chegou! Depois pensei em suspender a abertura da retrosaria e convidar a farmácia a seguir o exemplo. Depressa, porém, me deixei disso: Era o que faltava! E tanto assim é que, hoje mesmo, reaparece a farmácia e se estreia Au Bonheur des Dames. Ambos os estabelecimentos relembram o Fernando Assis Pacheco cujo último e póstumo livro o traz retratado a fazer um manguito.
Permita-me, em consequência, que desse livro retire um poema que também vai para essa delicada e sagaz poetisa que dá por Sílvia Chueire e a quem saúdo:
R., 1992
Quando os anos passarem
sobre esse teu desgosto
vais ver que te curaste
não de vez mas um pouco
pois o que a gente busca
nas dobras do amor
é a cura para a morte
que não tem consolo
e por falar em f'ridas
até as que mais doem
acabam por fechar
só ela vence o corpo
(Lisboa 30-III-92)
08 abril 2005
os tempos e os costumes
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3 comentários:
Agradeço muitíssimo, o poema e as palavras . : )
Abraços,
Silvia Chueire
Agradeço muitíssimo, o poema e as palavras . : )
Abraços,
Silvia Chueire
Subscrevo na íntegra as receitas do nosso boticário.
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