27 junho 2005

Gaudeamus igitur 10

HOMEM AO MAR


Quem for ao Mauritshuis, museu maneirinho e rápido de ver, por muito que queira não escapa ao celebrado quadro de Rembrandt "Retrato do Dr. Tulp" que corre mundo sob o pseudónimo de "Lição de Anatomia".

Este Dr. Tulp, sobre ser médico, rico e de boas famílias, teve o bom senso de casar com uma filha do poderoso burgomestre de Amesterdão ascendendo assim ao mais alto patriciado neerlandês. Também, e sem o saber, inaugurou, além de uma dinastia, um museu.

De facto a honra de ter sido retratado por Rembrandt (honra, aliás, paga - e bem!!! - com força de florins...) deu azo a um costume que, eventualmente, ainda persistirá: os primogénitos Tulp têm sido sistematicamente pintados pelo que há de melhor na Holanda.

Ora, quando cheguei a Amesterdão e depositei as bagagens no quarto que me estava destinado numa residência universitária descobri que, a minha lusitaníssima pontualidade não era correspondida por um único dos meus habituais companheiros. Vai daí, lancei-me, inda a manhã ia fresca, ao assalto da cidade. Cerca das cinco da tarde descobri, por mero acaso, um café junto ao que não hesito em qualificar de melhor livraria de Amesterdão (respectivamente café "Spui" e livraria "Athenaeum") . O prazer de verificar a grata proximidade da livralhada com a cerveja a copo aumentou quando vi, entre os consumidores que ocupavam todo o passeio, outro antigo amigo e companheiro destas andanças: o Bob v. d. R. (anda agora na política pelo que convirá apenas dar-lhe as iniciais como coordenadas). Grandes manifestações, muitas canecas que o calor apertava, e logo ali se combinaram vários encontros de eminente natureza gastronómica, o primeiro dos quais seria com a noiva do Bob e com outra veterana do curso de Lisboa que se chamava Sílvia.

Na noite aprazada lá nos encontrámos num excelente restaurante onde a Sílvia me apresentou o noivo que era, está-se mesmo a ver!, o último (na altura) abencerragem da família Tulp .

Quinze dias depois, a Sílvia e o Jan Pieter, decidiram dar mais um passo no imparável caminho que os levava (e levou) ao altar e, como é de boa tradição, resolveram celebrar o que, à falta de melhor, penso poder traduzir por esponsais. Metade da tribo jurídico-comparatista foi convidada para o evento que se realizaria em Scheveninguen e seria abrilhantado por lautíssimo banquete e baile.

A cerimónia foi comovente, a noiva esteve, como se espera, muito bonita, os comparatistas apresentaram-se com vestuário apropriado e digno. Nos convidados holandeses avultavam velhas famílias patrícias, políticos conhecidos e um general, todo de general e medalhas com fartura.

O ágape esteve à altura das nossas melhores expectativas, o bar era aberto e bem fornecido e o pé de dança, passada que foi a primeira valsa, prometia. O grupo comparatista incluía dois polacos, meia dúzia de catalães, dois neozelandeses e uma chusma de franceses belgas, italianos e alemães. A nação imortal do nobre povo conformava-se com a minha pobre pessoa.

A bailação ocorria nos jardins, num grande estrado que cobria, inclusive, parte da piscina. A noite, contra o costume, ia macia, e os generosos, generosamente servidos por empregados eficientes, iam, a par da música daqueles anos de ouro, suscitando pequenas febres, entusiasmos, risos mais agudos que até os plácidos holandeses (que a beber só cedem perante os eslavos, polacos incluídos) já mostravam evidentes sinais de euforia.

O coeso grupo ibérico (reforçado por um chileno, uma brasileira e os eternos Michael e Gérard) já fazia apostas sobre qual dos nativos soçobraria primeiro. A brasileira apostava num deputado, os hispanos rezavam fervorosamente por um sacerdote calvinista (os espanhóis mesmo em versão catalã nunca perdoaram aos reformadores da Igreja que os expulsaram dos Países Baixos...) eu tinha fartas esperanças no Cees Berensen mas quem ganhou foi o chileno que tinha arriscado 10 florins depositados na mão do Michael que servia, como convém a um "bife", de bookmaker.

Num momento de exaltação patriótico-bailante o brioso militar afocinhou na piscina, vergado, quiçá, ao peso da glória antiga e das condecorações, muitas.

Por um breve segundo a festa empalideceu, as damas holandesas crocitaram sabe-se lá o quê e a criadagem debandou. Porém, ninguém contava com a fina flor da Polónia. Em 1939, os seus pais tinham afrontado os aviões e tanques da besta nazi a cavalo e de sabre em punho. Em 73, e para não lhes ficarem atrás em galhardia, dois polacos de nomes impronunciáveis a quem conhecíamos por Jan e Lech, mergulharam na mansa piscina onde naufragava um general do exército de terra e arrastaram nesse insano acto de duvidosa higiene um nutrido e multinacional grupo de cavalheiros e meninas das melhores sociedades, local e estrangeira .

Houve, todavia, quem não saltasse. O tranquilo Édmond Gérard, luxemburguês e advogado, limitou-se a gritar educadamente "Homem ao mar!"
Gaudeamus Igitur!

Com esta entrega chega a seu termo esta viagem aos recônditos mistérios de uma juventude estudiosa (???!!!) e devotada ao direito comparado. Foi para aqui transcrita como homenagem ao 1º aniversário de INCURSÕES e tinha como modesto objectivo divertir os escassos leitores que pacientemente me aturam: dado serem em larga medida juristas escolhi estas histórietas que mais do que lições de direito foram lições de vida. Em todas há um forte fundo de verdade temperado com três pitadas de fantasia como mandava Eça, jurista também, malgré lui. (E acabam aqui as comparações, claro). Todos os nomes citados (e todos os locais) existem bem como as instituições de que dei fé. Gostaria de lembrar por todas e todos o nome da senhora Isabel de Solá y Cañizares, Madame de Solá, catalã sempre de azul, viúva do fundador da Faculté Internationale pour l'Einseignement du Droit Comparé, e sua perpétua secretária geral. Aristocrata, catalanista democrata e boa amiga. Durante a ditadura franquista só falou catalão ou francês. Merci Madame.
Gràcies, Senyora Solá
mcr

2 comentários:

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Obrigado por estas magníficas "historietas", caro MCR.

Silvia Chueire disse...

MCR,

Pena terem acabado já as histórias. Nem sempre se lê histórias tão saborosas.

Abraços,
Silvia