Não menos chocantes do que muitas situações viriam a ser, porém, as reacções corporativas logo desencadeadas - ora disfarçadas sob a forma de reivindicações sindicais, ora invocando pretensos direitos adquiridos, ora intentando manter insustentáveis regimes especiais ou excepcionais. Causa espanto que se manifestem tantos egoísmos corporativos e tanta falta de solidariedade nacional!
Paradigmáticos são, entre vários casos que poderiam ser referidos, os casos dos professores sindicalistas do ensino básico e secundário, de alguns juízes, de presidentes de câmara municipal e de deputados. Paradigmáticos e difíceis de entender, em face do lugar eminente que ocupam na sociedade e do magistério cívico que lhes deveria estar associado.
(...)
Outro caso: a reacção de alguns juízes perante certas medidas anunciadas pelo Governo. Os juízes, os magistrados do Ministério Público e quantos trabalham nos tribunais (não raro em condições precárias) merecem todo o respeito. No entanto, justamente por isso, eles devem dar-se ao respeito, não fazendo declarações, movimentações e ameaças de greve que contrariam o seu estatuto constitucional de titulares de órgãos de soberania. Então os órgãos de soberania podem fazer greve? Admiti-lo, admitir as formas de luta que alguns juízes reclamam, equivaleria a pôr em causa o próprio Estado.
(A este propósito, vale a pena perguntar se, em vez da redução das férias judiciais, outra providência legislativa não deveria ser adoptada: a proibição absoluta de qualquer juiz ou qualquer magistrado do Ministério Público desempenhar funções estranhas aos tribunais. E isso não tanto por causa da multiplicação de processos quanto por imperativo de dignidade das respectivas funções. Como conceber um juiz - que deve ser isento politicamente e independente - a assumir cargos políticos ou de confiança política? Não representa tal o contrário da atitude que os deve marcar? E como conceber que depois voltem à carreira e até, por vezes, venham a ser promovidos?
(...)
Mais do que o respeito do princípio republicano como princípio jurídico, está aqui em causa a ética republicana como ética de responsabilidade, de exigência cívica e de desprendimento ao serviço do interesse geral. Esperamos que ela venha a prevalecer!
Jorge Miranda, Público, 09Jul05
11 comentários:
Só tenho duas mãos para bater palmas ao artigo de Jorge Miranda. Já o tinha recortado. Muito do que ele diz, já o disse aqui, se se lembrarem. Nomeadamente, fez-me sempre impressão a ameaça de greve por quem se tem por pertencer a um orgão de soberania. Aliás,quando ouço a retórica dos dirigentes sindicais ela não me parece muito longe da matriz seguida pelos políticos.
Gratifica-me (nas expectativas que criei em relação à justiça)conhecer quem colocou o post. Para ele a minha admiração e um abraço. Precisamos cada vez mais da credibilização da justiça e o seu rosto são os seus agentes. Este post dignifica-a. Devo esclarecer que não sou do "ramo", mas sinto (e tenho-o escrito)que sem a credibilização da Justiça não é possível a coesão social e corremos o risco de um regresso a um certo barbarismo.
Comentários à parte sobre os magistrados e o direito à greve, não posso deixar de considerar uma tristeza a reacção das corporações de magistrados ao "pacote ABC", ainda que, a final, os sindicatos tenham tentado dar-lhe uma conotação de "desagravo" (e não de reacção ao anunciado encurtamento das férias), defendendo até, demagogicamente, para ficarem menos mal no retrato popular, uma solução que sabiam inviável neste momento: a da extinção pura e simples das férias judiciais, com a inerente possibilidadae de marcação das férias de magistrados e funcionários em qualquer altura do ano.
Para além de tais reacções terem contribuído em muito para desprestigiar ainda mais a magistratura aos olhos dos cidadãos, era absolutamente escusado... é certo que ABC afrontou, também ele, e escusadamente , as magistraturas. Mas estas sairam a peder no confronto que alimentaram, o que era mais que previsível!!!
E nem a chamada greve de zelo é sustentável já a curto prazo (quer por razões de ordem meramente prática, quer por razões de ética e consciência individual) nem, afinal, as férias foram significativamente reduzidas (veja-se a propósito a "descoberta" de Francisco Bruto da Costa no Ciberjus, que quanto a mim só peca por tardia, já que tal era também previsível desde o início, até por razões meramente "aritméticas"...).
Cito do post em referência: "na prática, a proposta acaba por deixar quase na mesma o tempo de férias dos magistrados. (...)Este projecto-lei de redução das férias judiciais foi feito “em cima do joelho”, é superficial, precipitado e tosco.
Com a sua demagogia populista, o Governo transformou uma falsa questão (as férias judiciais) num verdadeiro problema."
Pois, remato, e os magistrados, com os juízes à cabeça, ajudaram à triste festa, levaram com os foguetes na tola e agora ficam a apanhar as canas por muito e muito tempo. Bonito serviço!
Paul is right!
Espanta-me sempre um pouco ler um constitucionalista, jurista emérito, lente de Direito, activista político, mesmo na reserva, a escrever destas coisas.
Dá a impressão de que a opinião de um lente com esta graduação, é a do senso do povoléu que lê o Correio da Manhã ou o Jornal de Notícias e olha de soslaio a primeira página do Público.
Se JM ignorasse que os juizes são um órgão de soberania apenas e enquanto decisores de pleitos judiciais, ainda ficaria mais espantado. Mas de certeza que não ignora e por isso também não ignorará que cada juiz, nesse veste e apenas com essa beca vestida, assume o estatuto de órgão de soberania que é o poder judicial.
Enquanto colectivo associado numa agremiação de defesa de interesses comuns, os juizes serão órgão de soberania?! Não podem ser! Um colectivo como o CSM ou a Associação Sindical ou até mesmo os desembargadores todos das relações ou os juizes de todos os supremos, não são, em si mesmos, órgão de soberania.Individual ou colectivamente.
O poder judicial sendo uma das funções do Estado, como o é o poder legislativo ou o poder executivo, exerce-se através de órgãos próprios, precisamente Órgãos de SOberania e que são os Tribunais e não os juizes que os compõem individualmente se não estiverem de beca vestida e nessa qualidade de administrar justiça em nome do povo.
Este fenómeno antonomásico em que se substitui o conceito de "órgão de soberania " pelo nome de cada juiz ou de varios juizes em associação, despidos da beca, está mais espalhado do que se pensa e precisa de desbaste para evitar que entre no lugar comum a todos nós- a cidadania.
Um juiz, ao contrário de um deputado ou de um membro do governo que são membros de pleno direito de órgãos de soberania, só o será enquanto se senta nas cadeiras centrais do palco da sala de audiências ou escreve o direito, aplicando-o aos factos, nas sentenças que apresenta. E mesmo aí, é a instituição Tribunal que o comanda nessa função, não podendo desligar-se dela, pois nessa desvinculação perderá o poder de aplicar a justiça em nome do povo. É por isso que foi de uma tristeza imensa o caso célebre do juiz que na bicha para o multibanco se apresentou como juiz e com direitos especiais sobre os outros cidadãos, por causa disso.
No outro extremo, o caso do cachecol maroto que se prendeu no pescoço de um conselheiro, ficou arquivado por nada ter acontecido- não era o juiz que lá estava, mas o amigo para as ocasiões e estas, como se sabe...
Enfim, parece-me que este arrazoado não deriva de uma qualquer ficção e de um qualquer conceito ultrapassado sobre matérias jurídico-constitucionais, mas ainda assim, temo que venha aí uma carga de água crítica. Seja como for, como está calor até saberá bem.
Quanto ao papelo dos sindicatos das magistraturas, subscrevo também o Paul, com um ajuste: a mensagem, justa, não passou bem nos media!
A razão, está simplesmente na falta de jeito para a comunicação. Aquilo de que acusam o PGR tem neste caso pleno cabimento para toda a magistratura. Encerram-se nas torres ebúrneas e julgam que lá do Olimpo refulge a luz da verdade e da justiça! Ingénuos e estultos simultaneamente. É esse o problema.
E quem o quiser ver melhor pode consultar o douto e pompórico comunicado da Associação Sindical dos magistrados judiciais que está afixado nas portas de entrada de todos os tribunais deste país!
"tribunais" e não "Tribunais". Há uma diferença que parece não ser perceptível para todos...
Os magistrados que dão aulas em universidades, não recebem nada? Nem os que estão ligados ao futebol? Nem uns bilhetes para entrar nos jogos, nem uma viagens com os clubes? Etc? O sol pode-se apagar com uma peneira?!...
Caro compadre:
A quadratura deste círculo de giz, torna-se muito difícil de gizar!
Um magistrado judicial ( ou do Mp, para o caso), deveria atinar-se ao seu munus e resguardar-se de convívios espúrios com actividades que conflituem virtualmente com a função de aplicar o direito e fazer justiça pelas mãos da lei.
O equilíbrio, no entanto, é tão periclitante que basta uma pequena distração e dá-se o salto no abismo da incompatibilidade.
Não é razoável pensar que mantém esse equilíbrio um magistrado judicial, que querendo continuar a sê-lo, passe a governante e depois a deputado e depois retome a carreira como se nada se tivesse passado e a sua independência e objectividade não tenham sido afectadas, pelo exercício de outras profissões e funções.
Não é possível a um magistrado entrar no campo da bola de cachecol ao pescoço e gritar pelo seu clube, no camarote dos convidados e por causa das funções dirigentes na associação dos clubes e manter simultaneamante a distância e a objectividade, sempre que há notícias de fuga ao fisco em massa desses clubes; de manigãncias várias com os árbitros;de festão atribiliária de dinheiros avultados e depois de aceitar prebendas, descontos, viagens, prendas, atenções de desvelos dos dirigentes desses mesmos clubes.Isto será tudo ficção, como pergunto o compadre esteves?!
O problema, coloca-se por isso, na atitude dos conselhos superiores; na consciência pessoal e profissional de cada um e até no mais elementar senso comum que parece faltar, nestes casos flagrantes.
Vale tudo? Nada vale?! Os valores que contam, já náo contam?
A questão para mim é simples: qual a medida que utilizamos para avaliar procedimentos?!... Fica ao critério pessoal, às boas intenções, à formação civica e intelectual de cada um ou devemos ter critérios universalizáveis do que deve ou não ser feito, do que é ou não privilegiador?!...
O resto é retórica, no sentido socrático. Sabem que Sócrates detestava a retórica do seu tempo!
Reparo que Vital Moreira transcreve parte do texto de Jorge Miranda no seu blog. Naturalmente, a aceitação do artigo entre personalidades como V.M. deve ter algum significado!
Caro compadre:
A consciência é a última fronteira. Que fazer quando o carreirismo, a ambição, a falta de carácter, o cinismo e o ar do tempo a destrói e desfaz em cacos, colando-a a interesses que tornam o magistrado dependente?
Legislar, para impor regras e normas que deveriam ser consensuais?
Deve legislar-se para proibir que um magistrado seja associado e dirigente de um clube de caçadores onde se reunem habitualmente predadores e caça grossa?!
Não é possível.
Por isso mesmo, tenho escrito que defendo a declaração de interesses.
Todos os magistrados deveriam declarar a que clube pertencem e principalmente se pertencem a alguma loja maçónica ou ao opus dei.
Se isso não tem importância, pois também não a terá a simples declaração de interesses.
E estou plenamente convencido que isso a muitos nada traria de ignominioso e, antes pelo contrário,honraria o clubista.
O segredo, porém, aqui não pode ser a alma do negócio-porque não há negócio.
Caro José: falta-me motivação para acrescentar algo mais sobre este assunto. Repito só que é importante dignificar a justiça e a prová-lo estão todas os estudos da opinião pública sobre o assunto.
Não compare os magistrados que estão nos orgãos que tutelam o futebol com os que estão num clube de caçadores. Já reparou que há um triângulo com conexões estranhas: as casas de alterne, o futebol profissional e os autarcas.
Caro compadre:
Ocorreu-me citar o exemplo do clube de caçadores, sem qualquer parti pris e deveria acrescentar "honni soit qui mal y pense".
Porém, até servirá de exemplo.
As agremiações de sócios criam amizades e cumplicidades. As amizades criam dependências e tudo está em saber que elos se laçam e que vínculos se atam.
Os magistrados não são monges nem são sujeitos a votos de castidade ou de abstenção de convivência em sociedade.
A lei permite a um magistrado que se filie num partido político, mas proibe-lhe o acto público de apoio ou militância política. Pura hipocrisia.
Porque é que um magistrado não deve fazer parte de um partido político?! Por razões tão óbvias que me escuso a enumerar.
Então essas razões não se aplicarão com igual força a toda a actividade que reunem pessoas numa agremiação?
Que diferença existirá entre fazer parte de uma comissão de disciplina na Liga de Futebol e entrar num selecto clube de caçadores ou golfe ou seja o que for, fazendo parte dos corpos dirigentes, onde se reunem e discutem assuntos de interesse restrito mas com grande importância pública?
Um magistrado não deve ser um anacoreta, mas poderá ser um expoente do jet set?
Qual o reduto mínimo, a reserva essencial de cidadania concedida ao magistrado?
Tudo e mais alguma coisa, ou o mínimo dos mínimos?
Quem decide? Quem sabe? Que valores se cultivam actualmente no estatuto dos magistrados?!
São estas as questões.
Vou fazer um post sobre a consciência. É uma homenagem que lhe quero prestar, amigo José.
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