21 julho 2005

Um desabafo entre Amigos


A cultura não é assunto de especialistas. A ninguém se exige que releia os clássicos, que assista a todos os espectáculos de teatro, que veja as exposições de Serralves, que saiba fruir Beethoven ou Bocelli, que goste de ouvir os Madredeus ou Camané, que seja apaixonado pelo cinema, que não perca um happening ou um concerto de rock e que esteja sempre presente em todos os colóquios ou conferências que procuram respostas para as grandes questões do nosso tempo. O que se pede a cada um de nós é que promova um entendimento da cultura como um serviço público tão vital como a luta contra a toxicodependência ou o insucesso escolar. E porque é vital, significa que a cultura é útil à vida: educa as nossas emoções, fortalece o nosso espírito e promove mudanças para um melhor modo de entender a vida, o mundo e os outros. A cultura gera solidariedades, porque se vincula ao mundo vivido. Encontramos nela uma dimensão estética e ética: ajudar o homem a ser feliz no interior de um conceito de felicidade que associe o bom-gosto ao bom-viver.
Uma "cultura inculta" de que falou Alain Bloom é uma cultura que não se integra num projecto humanista e, por isso, funciona como narcótico.
Alain Finkielkraut fala numa “derrota do pensamento”. O homem é cada vez menos sábio, no sentido clássico do termo. Navegamos à deriva, sem uma bússola e sem vínculos. Vivemos uma profunda crise de afirmação cultural. Faltam referências, porque se desprezou a função social da cultura, a sua capacidade de potencializar competências, educar a sensibilidade, impedir que cada indivíduo se feche no seu próprio egoísmo e que o vazio de esperança não culmine na depressão sem sonho ou na violência gratuita. Na nossa época, no nosso mundo, no nosso País, tudo parece acontecer na sombra, entre jogos de simulação e interesses.

Para onde caminharemos?!...

7 comentários:

josé disse...

MEu caro compadre:

Quando era mais jovem (!) lá por volta dos meus teens, coleccionava catálogos de editoras, à míngua de dinheiro para livros. Ainda os tenho.

Um deles, da Folio, trazia as maravilhas do mundo antigo em papel e formato de livro de bolso e a preço acessível. A Livre de Poche idem, aspas.
A Penguin books, ibidem.
Em Portugal, nessa altura, a Bertrand, a Ulisseia, a Europa-América, a Portugália, a Livros do Brasil, a Presença, até a Aster, tinham livros para toda a gente ler e cultivar-se nos clássicos.

Estes, são relativamente poucos, algumas centenas e numa certa altura tive a ambição de os ler todos: César, Eurípedes, Goethe, Machiavelli, Platão, Ovídeo, Shakespeare, Tucídedes, TOlstoi, para além dos demais Aristóteles, Balzac, a mitologia grega, a latina, Platão, Stendhal e todos os outros que me esqueço e que nem li, incluindo alguns que mencionei.

Dantes, na escola secundária, havia uma introdução a estas leituras clássicas. Hoje, não há. Se escrever aqui o nome de Cassandra, alguns sabem de quem se trata. Se escrever o nome de Clio, talvez. Se for por Ariadne, ainda vá lá.Nemesis, já duvido.
Mas quem é que já se deu ao trabalho e prazer de ler a mitologia grega, pelo menos com o intuito de ficar a saber que os deuses são às centenas e com histórias tão interessantes como as da Bíblia? ALiás, quem é que já leu as histórias da Bíblia, do Antigo Testamento?!
No Seminário, onde andei, era leitura quase proibida, por causa do interesse romanesco...
Tudo isto, para dizer o seguinte e para desdizer da minha pedantice:
Há que voltar ao estudo dos clássicos greco-latinos. Se for na língua original, melhor.
É uma utopia, não é, cara COmpadre?!
Mas também era um belo sonho...porque está lá tudo. TOdas as histórias do cinema e das telenovelas, já lá estão- escritas algumas há milhares de anos e desconhecidas dos jovens que precisavam de as saber!

Primo de Amarante disse...

Eu sou agnóstico, mas gosto muito de ler a biblia, sobre tudo o "genesis". Uma vez estava ao meu lado o Eugéno de Andrade. Vi-o ler o liro do genesis e a tomar notas. Compreendi, então, que a sua poesia era de oficina. Trabalhava os clássicos para fazer poesia. A sabedoria da vida também lá se encontra e sobretudo nas metáforas. São elas que constituem a grande fonte de inspiração. Elas são abertas a novos sentidos da vida, da relação com os outros e do mundo.
Um abraço

Primo de Amarante disse...

O caminho do futuro depende de nós, hoje; isto é, de sabermos avaliar as consequências previsíveis da nossa acção para evitar erros que tenham consequências perversas.A não-maleficência (primum non nocere!)num mundo aberto (impresivível)é um principio prudencial que nos obriga a maximizar o que é bom e a minimizar o que é mau. E este principio (transversal a todos os tempos)é um princípio da sabedoria antiga que se harmoniza com a concepção holistica grega do "bem-viver": cada um promovendo o bem faz um "intercâmbio" social que a todos aproveita.
No meu entender não há fatalismo histórico, mas a possibilidade de continuar um património moral, orientando a nossa acção pela preocupação de minimizar o sofrimento, promovendo o bem-estar. Por esta ideia (ou valor)sacrificaram a sua vida os melhores da nossa espécie e, por isso, na nossa civilização já se tornou inaceitável, por exemplo, a escravatura. Naturalmente, há uma dialéctica neste processo, mas é sempre o homem que é o motor das diferentes sinteses que fazem avançar o progresso da humanidade. Precisamos de provocar um rumo para o futuro e fugir deste vazio.
e falar, argumentar, já é uma forma de agir.

Mocho Atento disse...

Sobre o Genesis e os restantes livros iniciais da Bíblia - Tora ou Pentateuc - acabei de ler um interessante livro da Universidade Católica Editora, "Pentateuco - Caminho de Vida Agraciada" do Prof. António Couto. É muito interessante descobrir a génese dos textos e a sua interpretação (sobretudo quando referenciados os textos na sua língua original). Recomendo!

Primo de Amarante disse...

Mais importante que ler é levar à prática o sentido da solidariedade, da fraternidade e da liberdade que provém dessa leitura.

M.C.R. disse...

Tive mais sorte que o José porque além de estar a pau com a escrita dos catálogos pude comprar os livros, muitos deles, quase todos, porventura, nas pequenas livrarias de saldos em Paris. Ainda as há talvez com menos classicos mas ainda vai dando para quem quer ler. eu em novo, novíssimo, frequentava muito bibliotecas onde li desde o Salgari ou o Edgar Rice Burroughs até aos clássicos que comecei pelas edições do Adolfo Simões Muller. entre nós, havia edições belíssimas e baratíssimas de clássicos portugueses publicadas pela Seara Nova, ed Inquérito Sá da Costa e tantas outras. foi por aí que descobri o Abade António da Costa, alguma poesia dos cancioneiros ou o primeiro Cavaleiro de Oliveira. sou de resto fã de tudo o que é livro de bolso e mesmo hoje ainda se pode ir à coleccção "Bouquins" da Laffont (a Pleyade dos pobres) e um par de outras.
O problema não é pois o da falta de fontes mas antes o da falta de estímulo. hoje ter algima cultura geral é puramente bizantino. Um tipo que saiba o que a Nemesis é pelo menos um enfatuado, quando não um chato, olha-se para ele com uma certa condescendência (desculpe lá José mas é assim que me olham mesmo alguns amigos meus que pura e simplesmente acham que basta um sólido conhecimento daquilo que têm como profissão. O resto não lhes interessa e já é bem bom se não nos gozam...
Todavia o problema posto pelo compadre vai mais fundo e mais longe: o compadre lamenta a ausência da necessidade subjectiva de uma "cultura interventiva". Eu já me contentava com uma vaga leitura que permitisse às pessoas perceberem um pouco de história para a partir dela analisarem o presente que nos cai em cima. Por isso advogo, como o josé sabe (e pratica...) a leitura das pequenas revistas de história que podem levantar entusiasmos, suscitar interesse e dar pistas. Deppois vai-se aos calhamaços se for caso disso.
bom, estou a ser requerido para tarefas menos especulativas mas prometo voltar,.Bom domingo (felizmente chove!)

M.C.R. disse...

Desculpem as gralhas e os períodos a começar por letra pequena.