17 agosto 2005

Viver sempre perfeitamente feliz.

A nossa alma tem em si mesma esse poder de ficar indiferente perante as coisas indiferentes. Ficará indiferente se considerar cada uma delas analiticamente e em bloco, lembrando-se que nenhuma nos impõe opinião a seu respeito nem nos vem solicitar; os objectos estão aí imóveis e somos nós que formamos os nossos juízos sobre eles e os entalhamos, por dizê-lo assim, em nós mesmos; e está em nosso poder não os gravar e, se eles se insinuam nalgum cantinho da alma, apagá-los de repente.Depois os cuidados que te pungem não duram, bem depressa deixará de viver. E por que tens um penoso sentimento de serem assim as coisas? Se são conformes à natureza aceita-as alegremente e sejam-te propícias. Se vão ao arrepio da natureza, busca o que for conforme à tua natureza, e corre nessa direcção, fosse-te ela menos propícia; merece indulgência quem procura o seu próprio bem.


Marco Aurélio, in 'Pensamentos'
recolhido em -http://citador.weblog.com.pt/

1 comentário:

Primo de Amarante disse...

Pretendi fazer um post, inspirado nos pensamentos de Marco Aurélio. È um testemunho de alma. Se alguma generosa alma ahar interesse, fico-lhe grato que o coloque em post.
Passo a descrevê-lo, ocorrido ontem, dia da graça de 2005.
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Questões de fé

Tenho andado numa “roda-viva” a tratar dos documentos exigidos para o casamento da minha filha. Ontem tive de ir ao Paço Episcopal. Quando cheguei à Secretaria, deram-me uma senha com o nº15 e mandaram-me esperar numa sala. Para chegar à dita, tive de passar por um corredor e o meu passo –“tóc…, tóc…,tóc…” --- sinalizava a importância do silêncio num paço episcopal. Entrei na sala, onde estavam dois vetustos senhores. Disse “boa tarde” – num tom adequado à circunstância. Percebi que não tinham ouvido e repeti o cumprimento. Então, levantaram o rosto e corresponderam. O vício de tudo problematizar levou-me a interrogar em voz alta: «Sou o número 15, mas só somos três».
Um dos velhinhos, pensando que a minha questão se relacionava com a sua razão de recorrer aos serviços episcopais, respondeu-me: «é para anular o matrimónio».
Fiquei a pensar: «o que terá levado um indivíduo, com aquela idade, a recorrer ao Bispo para anular o matrimónio!?.... A infidelidade não serve de razão canónica. Só há a de improficuidade. Mas com aquela idade valeria a pena!?...».
Talvez a resposta estivesse nos insondáveis desígnios de Deus e eu como agnóstico renitente não poderia atingir o mistério. O melhor seria perguntar ao Conselheiro Lopes, homem de tanta fé que até acredita na senhora de Fátima (de Felgueiras) -- pensei com os meus botões.
Entretanto, chegou a minha vez: depois de pagar noventa e tal euros, uma voz num tom docemente abrasileirado (suponho duma Irmã) disse-me que tinha de entregar o processo na igreja onde terão lugar as cerimónias. Perguntei se àquela hora a secretaria ainda estaria aberta. Respondeu-me: «cada paróquia tem a sua realidade». Fiquei esclarecido: as questões de horários dizem respeito às realidades da fé. Pus-me a caminho. Chegado á dita paróquia a secretaria estava fechada. Voltei a aceitar que “as veredas do senhor são insondáveis” e de repente percebi que Pessoa já tinha encontrado uma fórmula que justificava o pedido de divórcio à luz do direito canónico do velhinho que encontrei na sala de espera: é que "tudo vale a pena, quando a alma não é pequena”. A partir desta luz, a Rua de Cedofeita fez brilhar para mim todas as mulheres bonitas que por ali passavam. Não sei se foi milagre, mas sei que, tal como em outros tempos, naquela Rua onde vivi há trinta e tal anos, os meus pensamentos eram como barcos que nos mastros erguiam velas que tornavam insondáveis as "veredas" de Cedofeita e sempre navegando num mar de felicidade.
Foi uma experiência de fé inolvidável. A fé ergue montanhas.
Bem, montanhas já não será o caso, mas que é preciso fé, é!