17 agosto 2005

QUESTÕES DE FÉ

Tenho andado numa “roda-viva” a tratar dos documentos exigidos para o casamento da minha filha. Ontem tive de ir ao Paço Episcopal. Quando cheguei à Secretaria, deram-me uma senha com o nº15 e mandaram-me esperar numa sala. Para chegar à dita, tive de passar por um corredor e o meu passo –“tóc…, tóc…,tóc…” --- sinalizava a importância do silêncio num paço episcopal. Entrei na sala, onde estavam dois vetustos senhores. Disse “boa tarde” – num tom adequado à circunstância. Percebi que não tinham ouvido e repeti o cumprimento. Então, levantaram o rosto e corresponderam. O vício de tudo problematizar levou-me a interrogar em voz alta: «Sou o número 15, mas só somos três».
Um dos velhinhos, pensando que a minha questão se relacionava com a sua razão de recorrer aos serviços episcopais, respondeu-me: «é para anular o matrimónio».Fiquei a pensar: «o que terá levado um indivíduo, com aquela idade, a recorrer ao Bispo para anular o matrimónio!?.... A infidelidade não serve de razão canónica. Só há a de improficuidade. Mas com aquela idade valeria a pena!?...».
Talvez a resposta estivesse nos insondáveis desígnios de Deus e eu como agnóstico renitente não poderia atingir o mistério. O melhor seria perguntar ao Conselheiro Lopes, homem de tanta fé que até acredita na senhora de Fátima (de Felgueiras) -- pensei com os meus botões.
Entretanto, chegou a minha vez: depois de pagar noventa e tal euros, uma voz num tom docemente abrasileirado (suponho duma Irmã) disse-me que tinha de entregar o processo na igreja onde terão lugar as cerimónias. Perguntei se àquela hora a secretaria ainda estaria aberta. Respondeu-me: «cada paróquia tem a sua realidade». Fiquei esclarecido: as questões de horários dizem respeito às realidades da fé. Pus-me a caminho. Chegado á dita paróquia a secretaria estava fechada. Voltei a aceitar que “as veredas do senhor são insondáveis” e de repente percebi que Pessoa já tinha encontrado uma fórmula que justificava o pedido de divórcio à luz do direito canónico do velhinho que encontrei na sala de espera: é que "tudo vale a pena, quando a alma não é pequena”. A partir desta luz, a Rua de Cedofeita fez brilhar para mim todas as mulheres bonitas que por ali passavam. Não sei se foi milagre, mas sei que, tal como em outros tempos, naquela Rua onde vivi há trinta e tal anos, os meus pensamentos eram como barcos que nos mastros erguiam velas que tornavam insondáveis as "veredas" de Cedofeita e sempre navegando num mar de felicidade.
Foi uma experiência de fé inolvidável. A fé ergue montanhas.
Bem, montanhas já não será o caso, mas que é preciso fé, é!
COMPADRE ESTEVES (que continua impossibilitado de botar os posts directamente)
17/8/05

6 comentários:

Primo de Amarante disse...

A crise é profunda, compadre Rui do Carmo. O mundo liofilizouse-se e nem o compadre José comenta o meu inolvidável testemunho de fé.

josé disse...

Está enganado, caro compadre!
E só não comentei mais cedo, porque me desdobro em diligências avulsas, algumas das quais, são escrever em intervalos de outras tarefas.

Tenho porém a dizer que o postal está soberbo! Na escrita, no estilo e no tema que sendo anódino, tem aquele ritmo de uma crónica de esquina de jornal que dispõe bem, antes de um belo almoço ou mesmo depois, em leitura refastelada a pedir companhia...e a pensar em "barcos que nos mastros erguiam velas que tornavam insondáveis as "veredas" de Cedofeita e sempre navegando num mar de felicidade."
Troque-se Cedofeita por outro sítio e fica perfeito.

A propósito: em Cedofeita andei há poucos dias à procura de casa para a minha pequena maior.
É triste dizê-lo, mas está tudo um pouco mais ou menos como há trinta anos! Pequenos apartamentos para alugar ( arrendar) a estudantes, sem grandes condições, à margem das universidades que daí lavam as preocupações e nunca se lembraram de criar um campus ou coisa que o valesse!
Portugal é assim: lento e pequenino.
Bom texto, compadre! Muito bom mesmo! Fico à espera do caro MCR...

Primo de Amarante disse...

Compadre: acabaram de ser construídas residências para estudantes em Campanhã. Dizem-me que são soberbas. A Reitoria é que, segundo se diz, as administra.

O seu texto, por o ter posto bem disposto, já justificou o meu.

Espero ficar na história com a sua atenção comentarista.

Kamikaze (L.P.) disse...

Caríssimo Compadre,com um tal testemunho até eu me converto...à sua fé!

Silvia Chueire disse...

Compadre,

Uma delícia, o texto.

Abraços,

Silvia

Primo de Amarante disse...

Não é um texto: é um tesemunho em poema corrido dedicado ao José, que tem andado mail disposto.