Quem me conhece bem, sabe que sempre tive uma relação difícil com a morte. Mesmo com a doença. Não se trata bem de mim, mas das pessoas que amo. Nos últimos tempos, morerram na minha família mais pessoas do que seria normal, até porque alguns morreram antes do tempo, se é que há um tempo para morrer.
Naquilo que alguns podem até não compreender - os que interessam compreendem -, evitei o mais que pude ir visitar aqueles que amava, já doentes. No meu egoísmo, sentia que não era capaz de os ver assim, tão longe da vitalidade a que estava habituado, vê-los diminuídos, sentir que eles sabiam que os via diminuídos. Chorei-os na morte e choro-os na ausência, mesmo quando, como há dias, fui capaz de rir, em família, lembrando as maluqueiras que vivemos quando todos tínhamos todos os sonhos do mundo.
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O meu pai, que há cerca de dois meses teve uma perigosa crise cardíaca, foi internado de urgência. Fui vistá-lo ao hospital o mais que pude e menos do que devia. Passos doridos pelos corredores do hospital, passos que às vezes vacilavam e, se não fosse a certeza de que ele se sentia melhor quando lá ia, talvez tivesse ido menos vezes do que as que fui.
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Levei-o a Coimbra num dia em que era suposto que fosse atendido pelo professor para saber quando era operado. Um dia perdido, porque o professor teve emergências, e voltamos embora, o meu filho também estava (fui mostrar-lhe a Universidade enquanto esperava), e senti que tudo estava a ser adiado. Sou um grande condutor, diz o meu pai, e é verdade, ele que há já muito tempo que não viajava comigo.
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O meu pai foi operado. Voltei a Coimbra, dias depois da operação, sozinho, num dia em que só eu podia ir. Foi no dia em que desceu dos cuidados intensivos para o piso 2. Entrei na enfermaria. Parei à porta. A televisão estava ligada e eu olhei para a cama onde estava o meu pai. Magro como eu nunca o vira. Inerte. Os olhos entreabertos e revirados (eu pensava que só eu dormia assim). Tive uma visão de morte. E de desnorte. Cambaleei até à cama. Escutei: o meu pai ressonava. Estava vivo. A dormir. Tentei acordá-lo devagarinho. Não acordou. Mas estava vivo. Fiquei ali sentado, quase até ao fim da visita, incapaz de o acordar e não teria acordado se não tivesse chegado a enfermeira para medir as tensões. Acordado, a enfermeira disse-lhe que tinha visitas. O meu pai olhou para mim e não me reconheceu. "Pai, sou eu, o Quim Manel...". Reviveu. Pareceu-me mais vivo.
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Se eu pudesse, morria antes de ver morrer aqueles que mais amo. Por egoísmo, para não ter de sofrer com a sua morte. Mas sei que, se morresse antes de alguns que verdadeiramente amo, talvez também eles não vivessem muito mais. Por isso, que a vida e a morte sigam o seu curso natural.
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Um grande abraço, Liliana.
16 setembro 2005
Um postal desajeitado para a Liliana
Postado por o sibilo da serpente
Marcadores: carteiro (Coutinho Ribeiro)
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7 comentários:
Caro carteiro:
A minha mãe foi operada ontem. Correu bem, felizmente. Quando li isto por aqui, senti um arrepio frio. Ainda sinto.
Um beijinho para a Liliana, de conforto na dor. Mãe e pai só temos um.
Caro carteiro
Felizmente os meus pais ainda gozam de razoável saúde.
Percebo e sinto perfeitamente aquilo que escreveu.
Apesar deste mundo louco, a esperança deverá sempre sobressair.
Obrigado por estes seu escrito.
A morte de quem gostamos é o maior absurdo que a vida nos dá. A exepriência deste absurdo representa o sofrimento no limite do sentido para a vida. É sempre melhor procurar os caminhos que passam ao lado da memória dessa eperiência.
Caro amigo, é impossível ficar indiferente a este escrito.
Um abraço
Carteiro,
Amigos são assim, seu post é uma prova disto , tem a solidariedade das amizades verdadeiras.
Abraço,
Silvia
Amigo carteiro,
obrigada pelo belíssimo escrito, naquele estilo intimista que sempre lhe apreciei e que tanto gostava de ler aqui no Incursões. Foi uma boa surpresa reencontrá-lo,e faço minhas as palavras do jcp.
José, um abraço e votos de rápidas melhoras da sua mãe.
As melhoras.
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