03 outubro 2005

Diário político 2

As resistíveis ascensões dos lusos Arturinhos
para A.M.M.

Pede-me uma amiga que comente e em letra redonda, as últimas escandaleiras político financeiras que têm abalado o país.

Difícil tarefa é essa para quem vive na província, longe da Lisboa buliçosa onde tudo se sabe e se diz, a meia boca, nos cafés, nas repartições e nos botequins. Os provincianos - e o Porto é a mais provincial e provinciana das cidades portuguesas - sabem dos sucessos aquilo que jornais e TV lhes dizem ou querem dizer. Temos acesso a uma verdade em segunda mão, belo título de um livro de Joyce Cary aparecido nos escaparates vai para mais de vinte anos, num tempo tão longínquo que hoje se torna difícil fazer crónica desses dias tumultuosos (Pierre van Passen, haverá quem se lembre?)

E é mister recorrer à história adiada desses anos de chumbo, para tentar perceber o que se passa hoje em dia. É que, ó amabilíssima, os heróis-vilões da funçanata actualmente em cena no metafórico terreiro do paço fizeram-se homenzinhos e mulherezinhas nesse mimoso mundo de sombras chinesas e nevoeiros sebastiânicos que correspondeu ao fim de reinado do Dr. Salazar e ao episódio marcelista.

Eram os anos da peste mas também das patacas geradas pela guerra colonial e pelos primeiros vagidos de uma bolsa animada por aprendizes de feiticeiro cuja ascensão e queda não ensinaram nada aos vindouros. Barões de indústria e milionários estrangeiros acotovelavam-se em festas sumptuosas para gáudio e mortificação do basbaque lusitano que se vingava indo acampar para o Algarve recém descoberto pelo turismo de massas internacional que trouxe, de supetão, aos indígenas, o biquíni, o hot-dog e valentes doses de gonorreia.

Por outras palavras a áurea mediocritas do estado Novo desaparecia entre o fim pouco heróico da mocidade portuguesa e o início da voga dos cursillos de cristandade, contraponto sacrista e rançoso da ofensiva do opus dei que inquinava a sociedade espanhola e paria tecnocratas a la Ruiz Mateos com o mesmo despacho com que criava uma oposição interna ao franquismo.

Com mais sorte que habilidade o regime tinha, graças à guerra nas colónias, à crise endémica na universidade e à emigração em massa, encurralado a esquerda no no man's land dos exílios interior e exterior, guardando para si e seus apaniguados o acesso às profissões lucrativas, aos postos rendosos e às prebendas políticas.

Foi neste cenário frouxo e pouco exaltante que se educou toda uma geração que hoje chegou aos degraus do poder ou à mesa do orçamento. Descomprometidos com o bunker salazarista, alheios à fermentação revolucionária, os seus mais conhecidos elementos passaram, insípidos, inodoros e incolores pelos sucessos da época; a sua política era o estudo (primeiro) e o trabalho (depois). Opiniões só desportivas! Indignação só quanto à duvidosa qualidade das sandes da feira popular. Insensivelmente, porém, passavam do brandy nacional com água do castelo (vulgo whisky saloio) ao Vat 69 só com duas pedrinhas de gelo...

Se o 25 de Abril não os exaltou, o 28 de Setembro e o 11 de Março provocaram-lhes, primeiro, um frémito e uma torrencial diarreia, depois. Lá para o fim do Verão quente, adivinhados os vencedores, já se atreviam a sair à rua de emblema do PPD à lapela. A vaga restauracionista trouxe-os na babugem, até às margens do ministério, das EPs, da banca e do parlamento.

Não eram os mais brilhantes, muito menos os mais aguerridos, sequer os mais competentes. Mas tinham fome e sede não de justiça mas de poder, de carreira rápida, de casa própria, de carteira de acções, de padrinhos e de lugar cativo nas páginas a cores da crónica social. À falta de aristocratas para frequentar, amancebaram-se com o novo riquismo trepa-trepa, com as madamas da cultura prêt-a-porter e com os porteiros dos bares da moda. Com o crescer da maré laranja saíram definitivamente do paúl onde tinham nascido e, como jacintos de água, infestaram veias e artérias do corpo político-social-económico do estado.

Mas foi com o post-dezanove de Julho que, em cohortes cerradas esta turba-multa esganiçada e impaciente se mostrou em toda a sua temível glória. "Caramba - terão regougado - vou fartar o bandulho!". Só que, ao contrário do imprudente Teodorico, não gastaram toda a mesada da Titi com as mundanas que lhe saltaram ao caminho e muito menos enviaram à velha papa-missas a lingerie das peripatéticas. Apossaram-se desses pequenos mimos de rendas e laçarotes, adaptaram-nos ao corpo desabituado com a ânsia e a ganância do náufrago!

Como o tempo de espera os tornara sôfregos e a amplitude da vitória impudentes, caíram sobre o país indefeso como uma praga de gafanhotos num vale tudo a que nem escapou o tirar olhos. Foi com as duas manápulas porque não tinham quatro! Pareciam escavadoras caterpillar apanhando indiferentemente mealheiros em forma de porquinho ou cofres-fortes de banco suíço. Um só grito: "A eles"! Uma só fé: "Toda a ganhunça é legítima"! Uma só esperança: encher a algibeira e o bornal antes que alguém grite aqui-del-rei! Uma só caridade: atirar à marabunta paisana e à peonagem da mesma cor o osso mal esburgado!

O jardim à beira mar plantado está transformado num zoo de oitenta mil quilómetros quadrados. Relembrando o meu velho amigo Joaquim Namorado que dividia a pátria anémica em três estados (Beócia, Capadócia e Parvónia) eis a minha contribuição para o novo esquema de regionalização: Traulitânia, Reserva de Perdigotos, Arganázia e Pinhal da Azambuja e proponho para pais fundadores os senhores José do Telhado e João Brandão.

Os casos que ora servem de pasto aos jornalistas não são, perdoe-me o Dr. Pulido Valente, casos políticos mas, e apenas, de polícia. É urgente mandar à residência destes cavalheiros de indústria (que nem sequer ostentam a equívoca elegância de Felix Kruhl ...) um cabo de esquadra munido de um par de algemas. E depressa! Antes que o país desamarre de terras de Espanha e singre mar fora, até ás praias da Sicília e junte, num medonho regabofe, as sanguessugas nacionais à mafia de Palermo e à camorra napolitana.

E é tudo. Tudo não, porque o que mais me aferroa é verificar que esta súcia, além de me ir ao bolso, me toma por parvo e se ri de mim.

PS em 1995 : avisam-se os estimados leitores que esta zagunchada corre mundo desde há vários anos, presumindo o autor que terá sido perpetrada pouco depois da zanga entre os drs Cavaco e Freitas do Amaral por via das despesas deste último enquanto candidato do PPD à presidência da república. O autor não se arma em profeta mas também não é, nem foi, vítima de miopia (física ou política!).

PPS (em 1998) : a riqueza súbita e a vontade dela não são consubstanciais ao exercício do poder mas há quem o pense e o pratique. Aqui fica o registo para que não seja o A. tomado por parvo ou, pior, por ceguinho.

Nota em 2005. Sai finalmente a público tal e qual se escreveu em 1992 ou 1993, sem sequer mudar a dedicatória como eventualmente se deveria. Quem achar que Brecht é aqui chamado, acertou.
d'Oliveira

14 comentários:

josé disse...

Estou, como se diz agora...estupefacto!

Outro M.C.R.?!

Este blog ainda vai tornar-se um imenso Portugal, como cantava o outro.

COngratulations, pois.

M.C.R. disse...

Apenas um d'Oliveira mas de todo o modo "thank you.
O único imenso Portugal de que me recordo ia do Minho a Timor nuns mapas patuscos que havia na escola risonha e franca de antigamente.
Espero que a sua estupefacção aumente quando ler "a engenharia de almas", texto dedicado a desmitificar alguns stalinismos correntes mas perigosos: este diário, rigorosamente verdadeiro e escrito há já nem sei quanto tempo, tem por lema "Nem Deus nem Amo": é vermelhusco mas debruado a preto. Retinto!

Primo de Amarante disse...

Meus caros, no CENTRÃO todos são iguais e diferentes. Depende só do ponto de vista em que nos encontramos. E esse tipo de critica meramente ideológica vai passando ao lado das verdadeiras questões. Estas são as das reformas fundamentais: dos partidos (fundamentalmente)e do sistema económico, social e político.
Ideias para as reformas são urgentes. Como reformar os partidos para os harmonizar com as expectativas que criam; como reformar a justiça para dignificar o papel dos tribunais, como reformar o sistema económico, por forma a que os que mais sofrem não aumentem em número e a soferer cada vez mais, como reformar a educação para que a escola não seja um depósito de adidos e os alunos diferentes (com problemas de integração)não sejam tratados como se fossem todos iguais, como reformar o sistema fiscal, etc., etc. Alguém terá de fazer estas reformas: o futuro exige-as e estamos no limite "biológico": o corpo social está doente e, como não morre, a reacção pode ser violenta. Precisamos de tratar este corpo por forma a não criar rupturas. O segredo dum bom governo foi sempre o mesmo: em vez de aumentar a felicidade de alguns (sejam magistrados ou não), fazerdiminuir o sofrimento de todos.É a exigência do princípio da equidade. O resto é só floreado. O País está cheio de jogos "florais".

josé disse...

Meu caro compadre:

Quem tem o dever de administrar a coisa pública que em Portugal até ainda há bem poucos anos, era quse tudo o que tinha valor?

O PS;PSD;CDS;PCP e outros partidos.

Desses partidos, o que é que saiu como programas, ideias, projectos, para as tais reformas que se foram impondo?!

Saiu o que temos diante de todos nós: o descalabro financeiro nas contas públicas; a ausência de ideiais no imaginário colectivo; uma educação cada vez pior, embora cada vez mais encharcada de dinheiro que não se sabe bem para onde vai; uma justiça que funciona mal por causas evidentes e ao mesmo tempo ocultas; umas forças armadas que não têm rumo certo; uma saúde pública que não é saudável nem económica nem socialmente.

Que dizer então?!!

V. pode fazer coro comigo, se assim bem o entender ( a não ser que haja sofisma naquilo que disse):

Como governantes e legisladores temos escolhido pessoas incompetentes!

Há volta a dar-lhe?!

Deste modo, de eleições em eleições, não vejo.
Resta-nos esperar a sorte de apanharmos alguém que perceba um pouco mais. Que tenha um olho aberto numa terra de cegos...

Primo de Amarante disse...

«Temos escolhido»?!...
cada um fala por si, meu caro Amigo: Eu já há muito tempo que não escolhi o centrão.

O sofisma é um argumento desonesto que constitui um atentado à inteligência do nosso interlocutor. Eu sempre o repudiei e, por isso, nunca, de forma consciente,o usei. Se alguma vez fiz uma generalização abusiva ou conclui o que não estava nas premissas foi por ignorãncia e não por má fé. Respeito muita a inteligência dos outros!

josé disse...

Caro compadre:

Ainda bem que esta interactividade permite o esclarecimento rápido de equívocos.

Quando referi sofisma, escrevi:
("a não ser que haja sofisma naquilo que disse").
Queria dizer aquilo que EU escrevi...e que tinha cabado de dizer.

Um sofisma pode muito bem não ser evidente e muito menos querido no argumento. Mas às vezes, lá se infiltra.
Por isso é que ressalvei...a possibilidade de EU ter incorrido no vício de raciocínio.

Primo de Amarante disse...

Nem sei onde poderá haver sofisma. O sofisma é uma armadilha intencional desenvolvida pelo pensamento de conveniência.

Penso que temos em comum o desalinhamento que caracteriza os livres pensadores. Posso gabar-me à sua custa!?...

Primo de Amarante disse...

No blog "Causa Nossa":

"Ver o presidente do STJ a intervir em directo num debate na televisão - isso já é pouco comum. Vê-lo polemizar com o Governo sobre o estatuto económico-profissional dos juízes - isso é pelo menos descabido. O presidente de um supremo tribunal deveria ser um exeomplo de discrição e distanciamento em relação às coisas mundanas. Pelos vistos, há quem não pense assim...
[Publicado por vital moreira] 4.10.05

Fiquei desapontado com tal intervenção. Pareceu-me estar num País africano. Ao ler, agora, o texto de V.M. tive a recompensa por sentir que o meu desapontamento não era anormal.

Acontecem tantas coisas esquisitas que, por vezes, até pomos em causa a nossa própria sanidade mental.

Kamikaze (L.P.) disse...

É isso mesmo, compadre...

M.C.R. disse...

Vejo com regularidade alguma tv estrangeira mormente francesa, italiana e espanhola. não vi que me lembre os respectivos presidentes dos supremos. Mas também raramente vejo ministros. ao contrário de cá que estão sempre presentes para dizer as vulgaridades que todos vamos ouvindo. São tele-adictos.
Leio com alguma perplexa atenção o Vital. gostaria apenas de saber se ele já goza da pensãozinha de ex deputado e de ex juiz... Cá por coisas... Perceberam ou querem que faça um desenho?

M.C.R. disse...

Vejo com regularidade alguma tv estrangeira mormente francesa, italiana e espanhola. não vi que me lembre os respectivos presidentes dos supremos. Mas também raramente vejo ministros. ao contrário de cá que estão sempre presentes para dizer as vulgaridades que todos vamos ouvindo. São tele-adictos.
Leio com alguma perplexa atenção o Vital. gostaria apenas de saber se ele já goza da pensãozinha de ex deputado e de ex juiz... Cá por coisas... Perceberam ou querem que faça um desenho?

M.C.R. disse...

Ó Hospede inesperado (como diria o meu querido Heinrich Boll) é isso mesmo: um jornal de parede! Ou melhor: um dazibao daqueles que os guardas vermelhos do finado Mao Zedong afixavam por toda a Pekin. O diário juro-o é mais verdadeiro do que a inépcia do sr. ministro da justiça (e não é dizer pouco, mesmo que eu não pratique nenhuma dessas artes florentinas). Sobre o ser verdadeiro, isto é, escrito nesses anos oitenta e seguintes, a sua terrível actualidade (gaba-te cesto!!!) advem do facto de este país á beira melancolia ter não só parado mas regredido no que toca a (maus) costumes políticos, éticos e morais.
Isso, essa pantanosa situação forneceu-me a oportunidade para desencalhar uma série enorme de textos que guardava num ficheiro do computador sobre o pomposo nome "o lápis azul". Tal nome vinha do facto de uma vez, ao querer publicar um livro (uma pessoa não escapa a estes pequenos desvarios), o putativo editor logo os retirou pretextado a alta inconveniencia deles!
Chegam virgens ao blogue incursões e estão prontos a ser consumidos. O que é preciso é agitar a malta, dizia a cantiga e digo eu a todos vocês meus leitores, com indizivel gratidão. um gajo esfarrapa-se para escrever e gosta que o leiam. E quando se trata de leitores deste gabarito...
Vosso ex corde
d'Oliveira

L.P. disse...

Ao comentador sugiro a leitura do post de hoje no jovem blawg IDEALISTA - foi o único que encontrei, em blawgs, sobre o debate. Talvez os demais prefiram não bater mais no ceguinho que, afinal, até vê mais de olhos fechados que certos magistrados de olhos abertos.
É óbvio que o ministro teve ontem a sua melhor performance neste tipo de debates... deu baile aos magistrados e teve um discurso convincente na justificação das medidas tomadas. Quanto ao Bastonário dos Advogados, sempre diplomático e pepsodente à esquerda e à direita, lá conseguiu manter a sua estratégia de não desagradar nem a gregos nem a troianos. Por seu turno, Fernando Jorge marcou pontos mas não desarrincou do imediatismo.
Como se isto não bastasse, tivemos ainda de aguentar as patética performances de uma alegada 4ª figura do Estado e de um dirigente sindical experiente, Cluny de sua graça, que teve entradas de leão da Metro e saidas de sendeiro, depois de, nos entretantos, meter as mãos pelos pés e vice-versa.
Há-de compreender o comentador que, depois de todas estas provações, apeteça mais olhar para o lado do que escrever um post sério sobre o assunto... A "safa" era aparecer por aí um colaboradaor da estirpe dos mordazes Anaximandros, ou mcrs, ou d'oliveiras ou outros que, tal como eles, têm a capacidade de, cantando e rindo, dizer do piorio... mas valerá apena, para além da catarse?

L.P. disse...

aqui vai o link para o IDEALISTA:
http://idealistainveterado.blogspot.com/2005/10/justia-em-debate-era-suposto-mas-o.html