08 fevereiro 2006

Carta ao "Público"

Umbiguismo...

Umbiguismo - é o mínimo que se poderá dizer do editorial de hoje de Nuno Pacheco no "Público" e do ataque que faz às declarações do MNE português a propósito das reacções às caricaturas dinamarquesas. Freitas do Amaral esteve bem ao demarcar o Governo português e Portugal do conteúdo insultuoso e do propósito estigmatizante de todos os muçulmanos visado nas caricaturas. Fez o que o Governo de direita dinamarquês deveria ter feito inicialmente e não fez. Por incompetência, arrogância e por calculados interesses políticos internos - dependente, como é, do apoio da extrema-direita racista e xenófoba detrás do jornal que publicou as caricaturas. Incompetência e arrogância que levou o PM Andreas Rasmussen ao extremo de durante meses recusar receber os embaixadores de países muçulmanos - e logo ali podia ter acabado com o problema, distanciando-se dos propósitos ofensivos dos "cartoons" e também rejeitando, como é óbvio, qualquer ingerência ou sanção contra o jornal (o que eventualmente apenas caberia aos tribunais). Freitas do Amaral fez o que a Europa deveria ter feito mais cedo. Porque a primeira vez que a Europa (Solana e a Presidência) se referiu à questão foi no fim-de-semana passado e apenas para condenar a violência contra as embaixadas da Dinamarca (obviamente condenável). Mas nem uma referência ao conteúdo gravemente ofensivo das caricaturas. E à demarcação da Europa da tolerância, do respeito pelos direitos e liberdades fundamentais face à insensibilidade política e propósitos insultuosos e estigmatizantes das caricaturas.O que está em causa não é a liberdade de expressão. Esta não é, nem nunca foi a questão central - ninguém foi impedido de publicar o que quer que fosse. Mas a liberdade de imprensa deve ser exercida com responsabilidade e bom senso. E quem não se revê em publicações estigmatizantes e insultuosas deve demarcar-se. O que está em causa é o aproveitamento da liberdade de expressão por uma direita, xenófoba, defensora da Europa 'clube cristão', apostada em fomentar o ódio religioso. Uma Europa desmemoriada (ou, ominosamente, talvez não...) das caricaturas nazis que antecederam a perseguição dos judeus. Lembro a Nuno Pacheco as declarações do rabino-chefe da França que disse "partilhar a raiva dos muçulmanos em relação a esta publicação" e "compreender a hostilidade [em relação às caricaturas] no mundo árabe". O que estas caricaturas (e uma delas em particular) insinuam é que a maior parte dos muçulmanos são árabes e a maior parte dos árabes são potenciais bombistas-suicidas. Citando um artigo escrito por Bradley Burston no "Haaretz" (um dos mais respeitados diários israelitas) no passado dia 6 ('The new anti-semitism, cartoon division'),: "esta mensagem é obscena. É racista. Desrespeita as convicções fundamentais de um em cada seis seres humanos no planeta. Nesse sentido, o que estas caricaturas fazem é profanar o direito à liberdade de expressão, transformando-o no direito a promover o ódio."O que também está em causa é o aproveitamento deste incidente e dos sentimentos ofendidos de milhões de muçulmanos por parte de extremistas islâmicos, que querem a derrota da democracia, das liberdades e princípios e valores de direitos humanos. Quem não entende isto, não percebe que vivermos na era da globalização impõe especiais obrigações de tolerância e respeito pela sensibilidades dos outros. Penso-o eu, que sou ateia e que sempre defendi a universalidade dos direitos humanos e combati o relativismo cultural invocado para a contestar. Quando Nuno Pacheco considera as declarações do MNE "afectadas por uma cegueira que toca as raias do absurdo" e que "há quem dê mais importância a uns desenhos do que à vida humana", o jornalista está a ser demagógico, simplista, e acima de tudo, esquece-se das responsabilidades que advêm de se ser Ministro dos Negócios Estrangeiros de um país europeu. Na mesma linha, os PMs turco e espanhol, em carta publicada em conjunto no "International Herald Tribune" de 5 de Fevereiro, qualificaram as caricaturas de "profundamente ofensivas" e salientaram que "não existem direitos sem responsabilidades e respeito por sensibilidades diversas."Nuno Pacheco pergunta se "os povos muçulmanos pediram a Portugal qualquer coisa" e responde à pergunta, retórica, com um rotundo "não". Independentemente da reacção fora da Europa, independentemente e para além de embaixadas queimadas e muito antes sequer de reflectir sobre a reacção no mundo muçulmano às caricaturas, a Europa pode e deve condenar este tipo de manifestações de xenofobia, baseando-se pura e simplesmente na tolerância, no respeito pela diversidade e na experiência dolorosa de horrores passados. São esses os fundamentos da "raison d'être" da União Europeia.


(Carta enviada à direcção do "Público", em reacção ao editorial de hoje)
[Publicado por AG] 8.2.06

Obs: Transcrito, com a devida vénia, do "causa-nossa".

21 comentários:

C.M. disse...

Deixem-me ser "primário" por uns instantes:

Quando alguém VOLTAR a ofender algum aspecto da Religião Católica, algum símbolo da mesma, quando alguém fizer (DE NOVO) alguma caricatura de algum Sacerdote, incluindo o PAPA, proponho que todos nós, Católicos, saiamos à rua e façamos demonstrações como aquelas a que estamos a assistir no mundo islâmico.

Queimaremos bandeiras!

Lançaremos pedras! NÃO! PEDREGULHOS!

Destruiremos edifícios!

Gritaremos “ À MORTE! À MORTE! À MORTE!!!

DEIXAREMOS UM RASTO DE DESTRUIÇÃO NAS RUAS!


Quero ver se nos vão dar (TAMBÉM!) razão!


(AI! ACORDEI AGORA DESTE PESADELO!!!)

C.M. disse...

A agência de notícias do Pontifício Instituto das Missões Estrangeiras (PIME), a AsiaNews, apresenta hoje uma ampla reportagem sobre o clima persecutório na Turquia contra os cristãos, visível no assassinato do Pe. Andrea Santoro, que teve lugar no passado Domingo.
( Da Agência Ecclesia)
A AsiaNews começa por apresentar uma peça de um jornal turco, em que se trata do “avistamento de um padre”, como se se tratasse de um OVNI. Entre os comentários ao facto, um líder religioso muçulmano apelava a actuar contra os religiosos cristãos para “manter a unidade nacional”.
No mar Negro, portanto, ensina-se a odiar os padres, como destaca a AsiaNews, muito em função de uma história de confrontos com os Ortodoxos Gregos, com quem todos os cristãos são confundidos, em muitos casos.
Para a agência do PIME, “a Turquia laica deve proteger os fiéis de todas as religiões que se encontrem no seu território”. O artigo acusa a polícia de não ter dado a devida importâncias às ameaças de morte sofridas pelo Pe. Santoro e exige “o fim de toda a propaganda anti-cristã, difundida através dos media, para não fomentar outros assassinatos”.
.

C.M. disse...

ÁFRICA/BURUNDI - “A morte do Padre Koma é uma grave perda para a nossa diocese”, afirmam fontes da Igreja de Bujumbura, após o assassinato do jesuíta burundinês

(Agência Fides).

Primo de Amarante disse...

Caro Amigo Delfim: nenhum erro pode justificar outro erro. Nenhum mal pode ser corrigido com um mal semelhante. O que nos separa da lei de Taleão é o fim da simetria nas relações pessoais ou colectivas. A reparação do mal deve conter uma preocupação de reabilitação para o bem. E lançar pedras ou pedregulhos, partir vidros ou incendiar, desejar a morte ou amaldiçoar não são virtudes. Deve haver outro caminho, penso eu, como agnóstico fragilizado.

Sócrates dizia: «é melhor sofrer o mal do que praticá-lo»

Sei que, anteriormente, alguém, talvez com mais autoridade que o Filósofo, disse algo muito parecido. É ou não verdade, caro compadre?!...

Gomez disse...

Compadres:
A minha religião proibe-me comer peixinhos da horta à Quinta-Feira e contactar com o verbo de Ana Gomes.
Como penitência, vou ter de rezar a
novena de Pedro Mexia
Saudações cordiais.

C.M. disse...

É verdade, é verdade sim senhor, amigo Compadre.

Eu só quis demonstrar, assim rapidamente e pelo absurdo, toda esta loucura em que estamos mergulhados...e que, no fundo, não há aqui "inocentes"...melhor, "ingénuos"...
Um abraço

dlmendes

C.M. disse...

Sim sim Compadre Gomez, não podemos conjugar o verbo ana gomes...

(essa dos peixinhos da horta está bem achada...A propósito, vou saber se hoje,aqui na Mexicana têm uns peixinhos desses...)

C.M. disse...

Você, caro Anto, está muito enganado a meu respeito.

Se julga que atiro pedras, está muito muito enganado...

Apenas escrevi aquela "brincadeira" em "resposta" aos aliás sempre excelentes postais do meu amigo Compadre para realçar todo este ambiente surrealista e esquizofrénico em que vivemos...

Aliás, comecei por dizer: "Deixem-me ser primário por uns instantes". E terminei: " Ai Acordei agora deste pesadelo"

Pois é, a pressa com que se lêem as coisas...

Se você se desse ao cuidado de ler um comentário que coloquei aqui no postal do compadre esteves intitulado “caricaturas imprudentes” ficaria a saber o que penso em geral desta matéria. Mas não. Você não se deu ao trabalho. Também não é obrigado a tal. Mas então, você vai logo dar atenção a umas meras linhas que classifico de “irónicas”? Mas que incongruência...

Pois é: também verifico que lhe falta sentido de humor, apesar de tudo.

Termino, dizendo que não necessito de lições de democracia, sobretudo daqueles aliás que adivinho estarem bem instalados na vida e falam sobranceiramente...daqueles que adivinho capazes de morder uma mão estendida...et coetera... Mas não se dê ao trabalho de responder. Vou encerrar aqui a questão. Definitivamente

Passe bem.

Primo de Amarante disse...

Estou a ler um livro que me tem apaixonado. "O Mal no pensamento moderno" de Susan Neiman. Duas questões do livro fizeram-me parar para reflectir: uma, foi quando Susan Neiman exemplificou com factos da história que sempre que os valores eram tidos como absolutos, a tortura, a morte públicas eram largamente aceites; outra, foi quando referiu que Afonso X, rei de Castela, o primeiro rei a ordenar que os actos públicos fossem em espanhol e a promover traduções nessa língua, não conseguiu potencializar culturalmente essas iniciativas, porque os intelectuais do reino (digamos assim) não gostavam dele e menosprezavam tudo o que ele decidisse.

No nosso tempo, a ética aplicada, já tem em conta os contextos e chama a atenção para a responsabilidade das consequências das nossas convicções, mas ainda se pensa que os valores são independentes da sua aplicação. E, no campo da lógica, sabemos desde Aristóteles que uma coisa são os argumentos e outra coisa o gostarmos ou não de quem os utiliza. Aristóteles foi o primeiro a considerar argumentos reprováveis, por exemplo, os argumentos ad hominem.

No entanto, a matriz do nosso pensamento ainda não conseguiu libertar-se das envolvências emocionais. Não lemos o que escreve pessoas de quem não gostamos e achamos que a nossa cultura é superior às outras.

Falta-nos ousar criticamente pensar com a razão, como diria Kant e globalizarmos esse pensar. Não temos capacidade para nos pormos em questão e achamos que a nossa paróquia deve ser o centro do mundo, mas há mais mundo para além da nossa aldeia.

Primo de Amarante disse...

Caro amigo Delfim: estamos em "just time". Reparo no que escreveu ao mesmo tempo que eu escrevi. O Anto, tal como o meu amigo, não precisa de quem o defenda. Mas, conheço há muitos anos o Anto e o meu amigo está a entendê-lo mal. Nós os três temos coisas em comum mais importantes do que as que parecem dividir-nos. Não vale a pena alimentar conflitos de interpretação. Olhe que o Anto é um "tipo" (passe a expressão) de muita categoria humana e intelectual.

Primo de Amarante disse...

E só mais uma coizinha: eu aprendo com toda a gente, mesmo com quem não gosto. O que faço é crivar o que dá para aprender. E estou sempre a aprender

Primo de Amarante disse...

lembrei-me, ainda, de uma outra coizinha: o Anto, contrariamente á minha pessoa, vai ficar na história, não só como poeta, mas sobretudo pelo trabalho que desenvolveu em Moçambique. pergunte a um dos tipos que seja ou tenha passado pelo governo de Moçambique. e cá, não é ministro, porque não quer. se estivesse no PS já o era há muito!

Entretanto, é um "tipo" simples, sempre defendeu causas e é amigo do seu amigo. E já há muitos poucos desta "raça"! Aora é tudo mais "do aproveita... e toca a andar..."

C.M. disse...

Eu também, meu amigo Compadre, aprendo sempre, até aprendo a ter ilusões e depois elas esboroarem-se…

Eu escrevo aqui há muitos meses, dá-me prazer conversar, nomeadamente consigo, com o MCR, com o Ribeiro Coutinho, com a Sílvia.
E cada um de nós tem modos diferentes de ver o Mundo!

Mas une-nos, creio bem, ideais de Fraternidade de Amor e de Esperança! (pese embora o meu pessimismo...).

Talvez o Anto nunca tenha lido nenhuma linha minha e “encalhou” agora com estas… (eu digo isto mas, na verdade, não acredito…).

Fiquei irritado porquanto o comentário do Anto foi puramente anónimo, uma “boca foleira”, uma indirecta que apenas teria sentido se fosse um tipo qualquer que de repente aqui chegasse ao blog e desatasse a dizer asneiras…

Ora, creio que já deu para perceber (a pessoas que tenham boa vontade) a posição que cada um aqui tem, da vida em geral…

Usei de um certo humor cáustico para retratar a questão em causa, ponto final.

Na parte final porventura fui duro, Fui coerente. O que mais detesto é gente que fala de cátedra, que morde os outros, em sentido figurado ou real…

Um abraço!

( você é que é um verdadeiro humanista!)

Primo de Amarante disse...

Há muita gente que fala de cátedra ou "morde os outros", mas de certeza não é quem falei.
As ilusões são para se esboroarem e é isso que as torna iluões.

No "entretanto" é enchemos a alma. Fui sempre de muitas paixões,mas isso foi o melhor da minha vida.

C.M. disse...

Esta história de estar a dar aqui uns pareceres e ter o "olho" no "Incursões" tem que se lhe diga...

Caro Amigo,

permita-me corrigi-lo: não diga "isso foi o melhor da minha vida"; diga antes "isso É o melhor da minha vida" OK? (não dá para sublinhar o "É"...)

Primo de Amarante disse...

Talvez tenha razão. João de Deus tinha um poema bonito sobre a vida.Mas só me lembro de "a vida é ai que mal soa..."

Na minha longividade (estou nos sessenta), fixar-se no passado é esquecer que a vida é breve-- e isso serve de alento!

josé disse...

Caro compadre:
Era este, de João de Deus?!
Aqui fica:

A vida é o dia de hoje,
A vida é ai que mal soa,
A vida é sombra que foge,
A vida é nuvem que voa;

A vida é sonho tão leve
Que se desfaz como a neve
E como o fumo se esvai:
A vida dura um momento,
Mais leve que o pensamento,
A vida leva-a o vento,
A vida é folha que cai!

A vida é flor na corrente,
A vida é sopro suave,
A vida é estrela cadente,
Voa mais leve que a ave:

Nuvem que o vento nos ares,
Onda que o vento nos mares,
Uma após outra lançou,
A vida - pena caída
Da asa da ave ferida
De vale em vale impelida
A vida o vento levou!

Não tenho participado muito porque ando ocupado e normalmente subscrevo o essencial do discurso do delfim, "cum grano salis"...

josé disse...

E dos sessenta aos noventa, pelo menos, ainda tem mais uma vida...

Parece-nos rápido, mas se atentarmos que trinta anos foi praticamente em 25 de Abril, afinal não é assim tão pouco.

Ainda dá para escrever o livro e plantar árvores. E se não der para o filho, por inconveniência, dará para entregar generosidade que é o que não lhe falta, a si, caro compadre!

josé disse...

E livros já aí cantam, como eu bem sei.

E úteis, como sei também.

Há muitos que possam dizer o mesmo? Eu não posso...

Primo de Amarante disse...

José, Já tinha saudades suas. Temos de ir a uma lampreiada.

Com uns camaradas (alguns muito reccionários) com quem vivi no mesmo lar, já está marcada uma lampreiada em Oliveira de Frades. É numa tasca junto à ponte. O homem cozinha a lampreia e nós levamos vinho (sempre do mehlor) e pão. Quer melhor?!...

Primo de Amarante disse...

Depois de jantar, no canal 5, ouvi a entrevista com Freitas do Amaral. Referiu uma questão que desconhecia: o seu comunicado foi concertado com todos os ministros da Europa e com a Casa Branca. Procura-se pôr àgua na fervura e evitar uma espécie de guerra entre civilizações. Eu diria, entre sentidos da existência -- as crenças constituem o elemento mais forte do significado da vida. Mesmo um ateu precisa de uma crença (como, p. ex., uma ideologia para dar um sentido á sua existência. Só o neoliberalismo individualis e hedonista é que pode não entender isto, porque vê tudo a curta distância e de forma pragmática.

Freitas do Amaral repetiu o que aqui já foi dito, nomeadamente por Ana Gomes, contra a publicação das caricaturas.