Eu sei, Mafalda, que a culpa foi toda minha. Não soube ler os sinais, não os quis ler, de tão precisado que andava de alimentar o ego com todos aqueles desvarios, enganos que eu sabia que eram enganos, mas que me faziam bem, como se eu precisasse de viver a vida toda numa noite da semana que era aquela em que eu podia dizer ao mundo que estava vivo. Era também aquela noite em que tu saías, com o teu olhar de águia, e me vias, e, sem nunca termos trocado palavras, censuravas com o olhar - esse olhar negro e fundo - a facilidade com que eu alimentava os tais amores vadios de que ontem falava, aqui, num sítio onde nunca me lerás, porque não sabes que eu ando por aqui.
Fiz contigo aquilo que fiz tantas vezes com a minha vida, coloquei-te no pousio, certo de que, cansado de horas tolas e de egos desanimados, eu caminharia para ti e tu para mim, as mãos cheias de promessas, de todas as promessas do mundo, e eu diria que as horas do diabo tinham morrido e tu dirias que o importante é que ambos estavamos vivos e eu pediria desculpa das vezes em que tu me olhaste, com esse olhar de censura, e eu diria que a culpa não era minha, que a culpa era do desvario e do maldito ego magoado e da necessidade de cumprir objectivos que os que me rodeavam exigiam, porque achavam piada e, vá lá, reconhece que tudo aquilo tinha piada.
Já não sei quem se cansou primeiro, se foste tu se fui eu, talvez os dois. Eu deixei de andar pelos mesmos sítios, os sítios que me perdiam. Quando comecei a voltar, tu já lá não estavas com as tuas amigas e os teus amigos e com o teu olhar de censura e os olhos escuros que diziam poemas e que tu sublinhavas com um risco que os faziam luminosos. Fui uma vez, e outras e outras e percebi que há coisas que não se fazem e que era a hora do meu pousio para voltar e começar tudo de novo, como se as coisas fossem assim, um recuo e um avanço até à vitória final.
Ontem à noite, quando te vi, poucos metros depois da minha mesa, com o teu passo largo que só as mulheres altas têm e essa presença imensa que enche o mundo, quis correr para ti e olhar-te de uma vez nos olhos de que fugia envergonhado da tua censura. Tu viste-me, que eu sei que viste e vi a tua hesitação ligeira e outra vez o teu passo firme e eu perguntei-me quem era o tipo que estava contigo e vim para casa e não tinha Tv nem internet e percebi que não se é jovem para sempre e que o tempo passa, fugaz, e que arde como fósforos e, afinal, quem era o gajo que estava contigo?
09 março 2006
Eu sei, Mafalda
Postado por o sibilo da serpente
Marcadores: carteiro (Coutinho Ribeiro)
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12 comentários:
Vou reflectir melhor neste texto - que o merece. Direi, neste momento, e tão só que até eu fiquei angustiado, deste amor perdido, aqui relatado...
"Ele", na verdade, há horas...
Belo texto , carteiro. Belo texto...
Silvia
Carteiro, o que gostava de lhe dizer é que quem sente assim merecia mais sorte.
Ah meu carteiro duma cana!!! é isso mesmo. Isso.Ontem. Único (estou a citar um título do Oom, se é que a memória me não falha). E queria V. baldar-se daqui? Ó homem de Deus, juizo! E deixe-me que lhe diga de recoveiro para carteiro: "amande-se Carteiro, não a deixe passar assim sem mais nem menos, como se isto fosse um jogo. O pior que lhe pode suceder é o ego ferido mas V. também me saiu cá um cabeça à roda...
Mafalda, se andas por aí, concede-lhe duas palavras (só duas) e avalia bem o mau passo em que te vais perder. Este carteiro entrega cartas marcadas.
Um abraço
Subscrevo tudo e acrescento aqui o que ja por varias vezes disse ao amigo carteiro: vexa devia ir mais "a jogo"... ou, em linguagem mais moderna, ter uma atitude mais proactiva :):):)
O nosso carteiro fez-me lembrar o meu gosto pela poesia trovadoresca e, em especial, deste Autor, do qual recolhi este poema.
Como ele anda de cabeça “perdida”, certamente por uma boa causa, apropriado se torna, creio bem, na sequência do postal em apreço, colocar aqui esta poesia trovadoresca...
(creio que MCR concordará comigo...)
Cantigas de amor
(de Paio Soares de Taveirós )
" Não conheço no mundo ninguém igual a mim,
enquanto me acontecer o que me acontece,
pois eu morro por vós – ai !
minha senhora alva e rosada,
quereis que vos lembre
que já vos vi na intimidade ( sem o manto )!
Mau dia aquele,
pois vi que não sois feia !
E, minha senhora, desde aquele dia, ai !
venho sofrendo de um grande mal,
enquanto vós, filha de dom Paio
Muniz, julgais forçoso
que vos cubra com a guarvaia,
justo eu, minha senhora,
que nunca recebi de vós
a coisa mais insignificante"
E antes que tenham maus pensamentos, sempre direi que a dita guarvaia é tão só...um manto luxuoso, vermelho ( não sei bem porquê...), usado pela nobreza...uhmmm...para cobrir as donzelas...
DLM você é um belíssimo comentador. Da linha do José outro cabeçudo que demorou tempo a alistar-se.
quando digo comentador não estou a apoucar o postador (raio de palavrão) mas tão só a dizer isso mesmo: um comentário que pede outro e outro e mais outro ainda... E generoso!
MCR, não vou dizer que Vexa é complacente... mas vou dizer que é bondade sua...
Alguma coisa boa teve este texto: hoje, um colega dos tempos de Coimbra, que acabou por não colocar o nome, mas que eu, pelas indicações devo saber quem é, enviou-me um mail. Não o tenho aqui para o reproduzir, que ele certamente autorizaria, uma vez que tentou colocar um comentário ao postal. O que me dizia? Entusiasmado pelas minhas palavras, decidiu hoje mesmo reatar o contacto com uma ex-namorada! Boa sorte, rapaz... E vê se para a próxima escreves o nome direito.
(quanto ao mais: quem sente assim acaba sempre por se tramar. É fácil explorar os sentimentos...)
Mas, calma! Esta cabeça no ar vai concentrar-se... Hum!
Bem, caro carteiro, o seu texto já está a dar frutos...
Muito bonito!
Obrigado, Sofia.
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