02 março 2006

A Máquina no Parlamento ( francês...)

cont. deste postal

Welcome my son, welcome to the machine.
What did you dream?
It's alright we told you what to dream.
Pink Floyd, 1975

Em 8 de Fevereiro de 2006, é ouvido na Comissão Parlamentar de Inquérito, da Assembleia Nacional francesa, o juiz Fabrice Burgaud, juiz de Instrução do caso (até 2002), no período das detenções e que a par do juiz das Liberdades e Detenção, Maurice Marliére, foi quem determinou essas detenções, tendo ambos contribuído para a prisão preventiva dos dezoito suspeitos.
O diário Libération em 9.2.2006, titulou na primeira página: "Un Juge a la peine" . Um juiz a penar! E no interior: " São 16h e 45m , o juiz, muito pálido, explica-se"!
Em directo, por opção própria, e na presença de alguns dos absolvidos, o juiz começava por dizer: " Não imaginam a minha emoção, neste instante. Em primeiro lugar porque me encontro na presença de pessoas que foram absolvidas pelos tribunais. Hoje, talvez mais do que qualquer outro, posso sentir o seu sofrimento, representar-me aquilo que viveram, a prisão, a separação dos entes queridos, os seus filhos; a sua honestidade que igualmente foi contestada. (…) e digo e torno a dizer que penso ter feito um trabalho honesto, sem partis pris de espécie alguma e perante os elementos do processo existentes em 2001 e 2002 e não em função dos elementos que apareceram no tribunal ( assises) em 2004 e 2005."
E passou a descrever com algum pormenor o método de investigação:
"Desde o início, o método empregue para o Inquérito foi o de estudar as acusações das crianças; depois, a seguir, a de vários adultos que reconheceram os factos e acusado outras pessoas. Tratava-se de verificar de cada vez que era possível os detalhes dados, como era o caso dos atestados médicos. Tratava-se também de evitar qualquer concertação entre os acusados. Foram colocados em prisões diferentes para que não pudessem acordar uma versão comum. Tentámos também que as crianças não pudessem comunicar com os adultos. Raramente temos elementos que possam ser irrefutáveis," defendeu-se o juiz, segundo o relato do Libé, disponível noutros locais, na rede."
E continuou:
"A senhora Delay reconheceu os factos, e pôs em causa muitas pessoas. Nunca tive fascínio por Madame Delay. Colocava-lhe questões, ela respondia-me. Nunca lhe fiz promessas, contrariamente ao que alguns dizem. Além disso, os psiquiatras examinaram-na e nada detectaram quanto a qualquer tendência particular para a efabulação. "

Aqui chegados, a este grande escândalo e a estas perplexidades públicas e assumidas, os franceses não perderam tempo e puseram-se a reflectir nos media e centros de poder político, nas consequências e principalmente nas causas de tal descalabro judiciário que atinge todos os escalões do aparelho da Justiça, se excepção, na medida em que é possível assacar em cada uma das pequenas instâncias intermédias de controlo, pequenos deslizes e grandes negligências que supostamente deveriam ter sido evitados, não o tendo sido.
É colocado em causa o papel, poderes e função do Juiz de Instrução, sendo aqueles julgados demasiado latos; é debatido publicamente, o desrespeito evidente pelo princípio da presunção de inocência; o recurso à prisão preventiva e também a importância concedida às peritagens psiquiátricas entendidas como demasiado valorizadas.
Mas, ao mesmo tempo, também é equacionada a solidão de um juiz de instrução que deve tomar decisões desse calibre sozinho e sem pedir opinião, mesmo que a lei lhe permitisse pedir ajuda a outros magistrados. E é aí que colocam a questão: saber porque razão o não fez.
É equacionado ainda o problema da juventude de juízes saídos da escola de magistratura demasiado novos para lidar com estes problemas. Os da circunscrição de Boulogne sur Mer são demasiado inexperientes, apesar da defesa de Burgaud pretender o contrário (teria já alguma experiência num ou noutro caso de abuso sexual).
Ficam ainda em causa os peritos psiquiátricos, psicólogos e assistentes sociais que ouviram as crianças, confirmando as imputações e a credibilidade do respectivo depoimento, mas também as associações de protecção de crianças, acusadas de pressionar o poder judicial, em manifestações públicas.
Ainda se criticaram as forças policiais por atentarem contra a presunção de inocência dos suspeitos e tomarem demasiadas liberdades quanto à falta de neutralidade no assunto.
Muitas críticas são dirigidas à importância dada à palavra das vítimas que sendo crianças foi tomada como palavra sagrada. No entanto, não ficou esquecido que, neste tipo de casos, as provas materiais são raras e a confissão dos culpados dificílima de obter, perante a gravidade penal dos factos, o que equaciona de modo equilibrado o problema fundamental destes casos: como acreditar e valorar o depoimento dos ofendidos, quando são crianças. Nestes casos, resta, como análise, a palavras das vítimas, uma vez que os factos, geralmente, não têm testemunhas e a prova decorre muitas vezes da convicção pessoal de quem ouve as vítimas. Daí o recurso a psicólogos, a psiquiatras e a outros peritos que ajudem a descobrir a verdade por detrás de possíveis mentiras.
Após a determinação da audição Parlamentar, no decurso do Inquérito, foi também abertamente questionado o poder político; pelo sindicato da magistratura que colocou a tónica onde deve ser colocada - no respeito integral pelo princípio da divisão de poderes e questionou abertamente se este caso não será a imagem mesmo da justiça em geral e de todos os dias... - e assim a discussão sobre o assunto continua; está na rua e na ordem do dia.
A revista Nouvel Observateur da semana passada dedica quatro páginas ao assunto, incluindo uma dupla página de infograma que explica, em termos simples e eficazes, o funcionamento da "máquina judiciária" francesa. Em nenhuma parte do artigo se verifica um qualquer enviesamento da notícia para sugerir, insinuar, implicar ou julgar este ou aquele interveniente como responsável único do fiasco.
Que diferença na leitura destes relatos e crónicas jornalísticas e o que se pode ler por cá!
Antes, o título do artigo refere-se a um efeito "boomerang", dando notícia da polémica que incendeia actualmente aqueles que "votam as leis e os que as aplicam". No artigo, evidencia-se a posição solitária do juiz de Instrução e dá-se conta do mal estar que circula mesmo entre membros da Comissão de Inquérito por causa da intromissão de poder político no poder judicial. A colisão é evidenciada e é dada voz aos intervenientes, com destaque para o "petit juge" Burgaud.
Mais uma vez é notória, numa revista de grande informação como é o Nouvel Obs., a elevação no debate e o conhecimento dos princípios, bases teóricas e fundamentos constitucionais que orientam as instituições! Mais uma diferença abissal entre o que se passa por lá e o que se vê por cá, escrito em revistas que circulam semanalmente e com garbo de se entenderem como herdeiras das grandes tradições jornalísticas caseiras.

O jornal Libération de 9 de Fevereiro, edição seguinte ao dia da audição do juiz, escreve em editorial assinado por Patrick Sabatier:
"A impossível solidão do juiz". "Ouvir as explicações em modo de autojustificação, de Burgaud, permitiu convencer aqueles que ainda o não estavam de que a solidão do juiz de instrução é um verdadeiro perigo público, em particular num contexto de falta de meios e de leis que corroem a presunção de inocência e os direitos de defesa." "Poderemos pensar que ele (o juiz) fez o seu trabalho honestamente, como ele mesmo disse e que aplicou a lei que assim previa, uma vez que ninguém lhe disse para fazer de outro modo. Mas o poder absoluto corrompe, ou cega, de modo absoluto. O do juiz de instrução, de propor a prisão ou libertação dos acusados, deve ser enquadrado, controlado, pois que ainda o não foi."

A revista L´Express de 19.1.2006, entrevistou o juiz Burgaud.
Além do mais, com interesse para ler, declarou:
O que sente hoje, face às acusações de que a imprensa se faz eco?
"Tenho o sentimento de uma profunda injustiça. Estou na posição de acusado, quando penso ter cumprido a minha missão honestamente, lealmente e em conformidade com a lei.
Nada tenho a esconder e foi por essa razão que pedi para que a minha audição parlamentar fosse pública: a fim de que o debate se fizesse com a maior das transparências. Gostaria ainda que o desenrolar do processo ocorresse na maior serenidade
."

A revista Marianne, já em Fevereiro 2006, após a audição parlamentar, em editorial assinado por Patrick Girard, titulava "Será preciso julgar os juízes?" E adiantava que "Eles também têm direito à presunção de inocência. E é curioso ver jornais que dantes rejubilavam com a justiça popular, aquando do caso Bruay-en- Artois e levavam às nuvens o "petit juge Pascal", comportarem-se hoje como se fossem mestres para dar lições. Desde Fouquier-Tinville que é sabido ser preciso desconfiar dos acusadores."

O jornal Le Monde, sobre o assunto, na sua edição internacional de 18.2.2006, escrevia em editorial que "apesar das críticas dirigidas à Comissão de Inquérito, em despeito das reservas que suscitou pela publicidade dos debates e o seu aspecto reality show, a audição do juiz Burgaud revelou-se essencial. Demonstrou a urgência de uma reforma profunda duma instituição obcecada pela procura da confissão. Imenso chantier: o legislador, pela sua parte, deve abrir uma via para uma reforma indispensável, interiorizando o fim do sistema de juiz de instrução à francesa."

Enfim, basta percorrer algumas páginas do Google, mencionando as palavras certas para se ficar com uma ideia precisa do valor da opinião gaulesa sobre este assunto.
Qualquer semelhança com a realidade portuguesa é apenas uma mera coindidência que nem o será tanto assim porque pura e simplesmente não há termos de comparação.

(Continua)

2 comentários:

victor rosa de freitas disse...

Juiz Burgaud...Ora, ora. Em Portugal, sou vítima de inspectores, "testemunhas" e órgãos colegiais como o Conselho Superior do Ministério Público já lá vão onze anos (por "factos" de há 13 a 18 anos atrás). Sou difamado, injuriado e caluniado por órgãos de "justiça". E, sendo vítima das calúnias, ainda sou penalizado porque a calúnia suja o meu nome e não me deixa trabalhar...LEIAM O MEU BLOG E DEIXEM-SE TE "TEORIAS" DEPOIS DOS FACTOS CONSUMADOS (é só clicar em cima do meu nome).

Informática do Direito disse...

Obrigado pela quantidade de elementos de análise que fornece.
Magistrados, polícias, jornalistas, funcionários judiciais, advogados, peritos, todos terão que estudar em profundidade este caso, se quiserem evitar o cometimento dos mesmos erros.