09 março 2006

O tempo esse grande simplificador 2

O João e o Zé

A culpa é toda vossa meus caros paroquianos. Puxam-me pela língua, desafiam-me, vá lá mais uma crónica, que diabo, ó homem publique as memórias, enfim uma série de argumentos que entram como faca em manteiga quente.
É que já devem ter reparado que eu sou um conversador, gosto disto de estar aqui a esta mesa virtual, uma cervejola (virtual também, que ainda é cedo) na mão e meia dúzia amigos a cruzar conversas, um par de sonhos, enfim, a cortar o caminho à solidão.
Vai daí neste dia em que o Jorge volta a ser Jorge e “passa à peluda” como se dizia na tropa, lembrei-me de dois amigos que já lá estão mas que merecem ser lembrados. Com alegria se possível que para lágrimas já bastam as que chorei na morte deles. E junto-os por várias razões: foram meus contemporâneos em Coimbra, colegas de curso inclusive, ainda que eu me tenha atrasado por más (muitas) e boas (escassas) razões. Andamos nas mesmas guerras (ou quase) e finalmente separámo-nos não tanto pela política (que eu não dou para esses arrufos) mas pelos mistérios da vida.
Falo-vos, pois, do João Amaral e do Zé Barros Moura. Ainda por cima foram cunhados. De facto o João esteve casado com a Laura, irmã do Zé, que também já por cá não anda, ceifada como os outros por um cancro fdp como todos os cancros que matam pessoas na flor da idade.
Ora bem, vamos a isto. O João foi caloiro no mesmo ano que eu. Já sei que algum eventual leitor mais coimbrinha irá rosnar “aquele mcr é mesmo ortorrômbico. Então ele não sabe que no nosso ano nunca houve caloiros essa classe dois pontos abaixo de cão e um duvidosíssimo acima de polícia?”. Calemos já esse intrometido, dizendo-lhe que no nosso ano houve caloiros sim senhor e tão bons e desenrascados que exigiram que tal facto passasse à posteridade. Ora toma lá, que já almoçaste. E mais: o Batarda, caloiro da mesma fornada e pintor imenso, já está marcado para fazer um retrato de grupo como o Columbano fez aos tipos do grupo do “Leão d’Ouro”. Portanto eu e o João fomos caloiros. Com o Alfredo Estrela Esteves, com o Luís Neves, com o Carlos Férrer, o Adriano Correia de Oliveira, o “Ziska” e mai-los uns quantos (olhem o Braga da Cruz que ministeriou e o Manel Porto cujo avô era primo do meu) enfim um repolhudo grupo de rapazes cheios de sonhos como ocorre a gente nos dezoito anos.
Acho que começamos imediatamente a ser amigos. Não era difícil, aliás. O João era alegre, bem disposto, gozava uma recentíssima liberdade, longe que estava da casa paterna. Eu, sobrevivente de vários colégios, também não lhe ficava atrás. Respirávamos um ar carregado de uma Coimbra alinda não desfeada pelo aliança empresarial municipal e a Academia era governada pela esquerda (Carlos Candal) depois de onze ininterruptos anos de uma direita monárquico-clerical. Fomos a todas, como se dizia. Politizavamo-nos com uma estonteante velocidade graças a tempestuosas Assembleias Magnas onde gargarejavam heróicos e retóricos, o Manuel Alegre, o Zé Carlos de Vasconcelos, o José Luis Nunes ou o Zé Silva Marques. Claro que no fim do ano o chumbo estava à nossa espera. O João fez pois um ano de voluntário que o pai dele, que eu viria a substituir como Presidente da Caixa Têxtil, não era para graças. Mal sabe o pobre senhor que numa sortida ao Porto, já não sei porque motivo, que tendo apanhado a 4ª das seis bebedeiras da minha vida (a bebedeira que me fez desistir da vodka...) lhe vomitei meia casa. O João, muito dono de casa e sabedor dos humores irascíveis da “patria potestas” limpou tudo. Até o pó de que a empregada se esquecera numa cozinha onde nem sequer entrei.
Os ano foram passando ou nem isso. De todo o modo num deles, um grupo de poetas aprendizes entendeu começar a publicar a série “Poemas Livres”. O nosso pequeno grupo, pouco dado a essas habilidades entendeu homenageá-los com uma versalhada estilo escrita automática. A palavra mais profunda de tal incursão no sagrado terreno da poesia foi dada pelo João “evacou-me”. Não me perguntem o que significa porque nem ele sabia nem eu sei. Evacou-me ! e pronto. Recordo que a adoptámos como uma espécie de refrão. De memória apenas recordo a primeira parte de um poema colectivo que começava assim”palavras cruzadas vestidas de amarelo pensando que era sexta feira”. O Dr Orlando de Carvalho achou isto muito prometedor e pagou pelo original autografo vinte e cinco tostões.
Depois o João apaixonou-se pela Laura Barros Moura, caloirinha fresca recém chegada de Felgueiras. E é tempo de entrar em cena o Zé Barros Moura. Ar aplicado e fumaças de católico de esquerda. Muito aplicadinho, mesmo. Fala pausada. Bastou-lhe um ano para se meter no Partido. Quando alguém desta geração fala em partido com P grande, claro que é comunista. Também não havia mais nenhum valha a verdade. Nunca soube se foi o Zé que meteu o João ou vice-versa. A verdade é que a partir de certa altura eram eles os dois mais evidentes quadros do pc estudantil. Eu tenho por certo que o Zé respeitava o João e pedia o conselho deste. Mas o João era calmo, recatado e pouco dado a assembleias. O Zé, pelo contrário, era certinho na discursata. Não era um orador entusiasmante mas tinha uma qualidade: era seguro, argumentava bem mesmo se parecesse (e por vezes era) chato. Entre outras funções semi-legais semi-clandestinas, coincidimos (com o inefável Anto) numa misteriosa secção da Associação Académica chamada “Comissão de Estudos Associativos”. Esta CEA fornecia apoio técnico-político à Direcção Geral da Associação. De facto, uma lei celerada impusera à AAC o sistema de representação proporcional na própria direcção. O mesmo era dizer que apesar de maioritária a esquerda não tinha mais do 4 ou 5 elementos numa direcção de sete pessoas. A CEA tinha por missão assessorar a direcção e preparar os estudos e documentos necessários para ultrapassar com eficácia e rapidez o boicote dos dirigentes de direita nela presentes. Foi aqui que nasceu o famoso epíteto de Barros Moura: IBM. Claro que foi o malandrim do Anto o seu inventor (atenção Delfim, isto é História). Anto pôs nomes a todos os da CEA mas só recordo dois: o “abastadoBaganha (José Enes de seus primeiros nomes, e advogado por aí) e “inteligente” Barros Moura. Portanto tudo o que depois se disse sobre o apodo IBM, dando-o como eficaz e organizado , como um computador, é pura balela. IBM era tão só uma brincadeira amável do Anto. Ele quando quer também graceja...
Vamos então ao que importa, que isto já está mais comprido e mais chato que a espada de Afonso Henriques.
Foi na “Coimbra de lavados ares” que estes dois limpos cidadãos, mortos demasiado depressa, começaram a sua carreira política. No PCP. Puros e duros até 74. Depois, as línguas começaram a soltar-se e as dúvidas a socavar os alicerces. O Zé, ás tantas não aguentou mais, bateu a porta, devolveu o cargo de deputado europeu e ala que se faz tarde rumou ao PS. O João preferiu a guerra interna. Com coragem. Com determinação. Morreu antes de ganhar? Se calhar ganhou, depois de morto.
Ficava aqui bem um par de fotografias que para aí tenho. Sorry, girls & boys, não sei pôr as ditas cujas no blogue. E por favor não me ensinem. Eu já sei mais do que devo. E devo mais, muito mais do que me devem. A estes dois, por exemplo: uma sã amizade, muitos anos de camaradagem (não no pc a que nunca prestei menagem) e uma imensa, comovida saudade.

Vós que haveis de surgir
das cheias
em que nos afundámos...

...pensai em nós
com indulgência.

Vai esta para a Guida Lucas, minha amiga e viúva do Zé

3 comentários:

C.M. disse...

Torna-se cada vez mais difícil (difícil que não penoso) comentar estes excelentes textos de MCR.

Que dizer dos mesmos? Tarefa impossível, mais a mais quando nos falta “engenho e arte”

Encontra-se aqui retratada toda uma vivência de amor, de amizade, de cumplicidade na vida de pessoas que tinham uma certa visão do mundo, e que viveram segundo a mesma.

Acho fascinante essa tirada da direita monárquico-clerical ( gostava que o nosso MCR retratasse, num postal autónomo, estes “rapazes”: quem eram ao tempo, o que faziam, o respectivo ideário ( só lhe arranjo “trabalhos”, MCR...)

Outra “tirada” é essa do católico de esquerda: às tantas, querem ver que sou um desses? Bem, eu já ouvi que ele há Monárquicos de esquerda!... E esta? Lá está o aforismo de Agostinho da Silva: não sou ortodoxo... sou do paradoxo!

Como tive um dia muito complicado, soube-me tão bem ler este texto, em final de tarde...numa pequena pausa...

o sibilo da serpente disse...

Há já bastantes anos - não tantos quantos os que mcr aqui nos traz - eu dizia numa sessão qualquer que a minha geração coimbrã iria perceber, anos depois, que não tinha deixado qualquer marca importante na sua passagem pela academia. E não deixou. Sairam de lá alguns secretários de Estado mais ou menos obscuros e José Sócrates, que, sendo mais velho três anitos, me garantem que esteve lá na mesma altura. Não me lembro dele.
Teria preferido passar por Coimbra nesse tempo, mcr.

o sibilo da serpente disse...

Ah, de qualquer modo vi hoje no ´Público que o Vítor Calvete (meu colega de curso) e o JP Cardososa da Costa, mais jovem, são, respectivamente assessores dos assuntos parlamentares e jurídico do Presidente Cavaco. Felicidades para ambos, até porque o segundo é nosso leitor.