13 março 2006

A reforma da Magistratura

“A justiça necessita de um sistema eficiente e eficaz de governança [ que] não é, nem pode ser, o actual Conselho Superior da Magistratura.”

«O novo Presidente da República, quando questionado sobre a reforma que lhe parecia mais importante e prioritária para Portugal e que exigia um maior grau de entendimento entre ele e o Governo, respondeu a justiça. Surpreendentemente, no debate presidencial, candidatos e fazedores de opinião, não apresentaram uma única ideia para a Justiça. Sejamos claros: enquanto a discussão económica é enquadrada em modelos de desenvolvimento, medidas concretas de política orçamental ou opções financeiras de investimento, na justiça tudo não passa das habituais pias intenções e bla-bla-bla. Não há modelo de reforma, não há medidas ou reformas concretas (quanto muito pontuais como o conjunto de medidas avulsas produzidas pelo Governo mantendo, pois, a tradição do remendo desconexo que não terá resultados), não há opções, nada...
Isso significa que o mais preocupante da reforma da justiça não é nem o seu estado actual, absolutamente calamitoso, nem a falta de estratégia governamental. O mais grave é que a elite dirigente ainda não sabe o que realmente fazer com a justiça...
Infelizmente, a última reforma estrutural e abrangente da justiça portuguesa data dos anos 30, do início do Estado Novo. Então, assistimos a profundas alterações na organização e administração do sistema, certamente por razões mais políticas que económicas e não alheias ao facto de na Primeira
República não ter havido um esforço reformista nas mais diversas áreas da justiça. O período posterior a 1974 caracterizou-se por um adiamento sucessivo dessas reformas por todos os quadrantes políticos. As alterações económicas e sociais só agravaram a incapacidade reformista dos dirigentes políticos do Ministério da Justiça do pós-25 de Abril.
Na minha perspectiva, a reforma da magistratura judicial é importantíssima. Desde logo, a estrutura de governança da justiça, em particular como se deveria estruturar o órgão de cúpula do sistema. Um segundo aspecto refere-se aos incentivos e avaliação dos magistrados. Como qualquer organização, a justiça necessita de um sistema eficiente e eficaz de governança. Esse órgão de governança não é, nem pode ser, o actual Conselho Superior da Magistratura, que deveria ser extinto logo que possível. Um novo órgão de governança deve ser criado, único para todas as magistraturas (actualmente temos três), e deveria ser responsável unicamente perante a Assembleia da República, que escolheria na totalidade a sua composição. Os mandatos dos membros do órgão de governança devem decorrer por um período limitado no tempo, sem recondução ou reeleição. Visto que este deve ser um órgão de administração e gestão, penso ser importante não limitar a sua composição a jurisconsultos ou juristas.
Já a promoção aos tribunais superiores dos magistrados judiciais, deveria passar a ser da competência exclusiva da Assembleia da República, num sistema de exame oral público semelhante ao sistema norte-americano para os tribunais federais. Evidentemente que uma parte fundamental do sucesso de um novo órgão de governança dependerá de uma reestruturação das magistraturas, no processo de recrutamento e formação contínua. Por isso, fará sentido que o órgão de governança e a Assembleia da República tenham um papel activo na promoção aos tribunais superiores de juristas de alto prestígio, em detrimento de uma ideia funcional de magistratura de carreira.
A implementação de medidas de produtividade que possam ser utilizadas na avaliação do sistema, em primeiro lugar, e eventualmente mais tarde na construção de indicadores individuais, deve avançar logo que possível. Em relação ao regime remuneratório, parece-me vantajosa a utilização de medidas de workload como sucede em Espanha (Lei 15/2003). Mas dados os efeitos potencialmente perversos da utilização defeituosa dessas medidas, talvez seja prudente apenas como um complemento residual e experimental do sistema remuneratório. A dignificação profissional da magistratura passa por desenvolver mecanismos que permitam à sociedade em geral identificar o papel primordial do poder judicial. Esses mecanismos estão, em certo sentido, muito prejudicados pela funcionalização das magistraturas (na minha opinião a base do actual corporativismo). Um sistema de justiça com mais influência externa e aberto à sociedade favorece naturalmente uma maior influência dos magistrados e enaltece a sua reputação. Um sistema de nomeação para os tribunais superiores com exame oral público na Assembleia da República só aumentará o prestígio dos candidatos nomeados e contribuirá para o esclarecimento da sociedade em geral em relação ao papel desses magistrados. Será um passo decisivo contra a funcionalização das magistraturas que, imposta na reforma dos anos 30, convém remover quanto antes.»
Nuno Garoupa, Economista, professor da Faculdade de Economia da Universidade Nova
DIA D (Público) OPINIÃO 13MA2006

5 comentários:

C.M. disse...

Esta garoupa anda, pertinazmente, a deitar a cabeça fora de água...

Não tenho tempo, agora, a meio da tarde, de explanar algumas considerações acerca deste texto do economista garoupa. Contudo, remeto para algumas que teci, rapidamente, num comentário ao postal da nossa Kami - Espanha - avaliação dos magistrados.

Agora, apenas isto: deve ser para rir, (se não fosse grave, ríamos mesmo...), a ideia desta garoupa da promoção aos tribunais superiores dos magistrados judiciais depender da competência exclusiva da Assembleia da República, com os Magistrados a serem examinados pelos deputados...!!!

Então se a maioria dos deputados não tem perfil nem para o cargo que exercem!!! Uns ignorantes a maioria deles! Que só servem para levantar a mão em votações...Quanto mais avaliarem um Órgão de Soberania!!! Sabem porventura das matérias?

Isto é o caminho rápido para a liquidação de uma das “ conquistas de abril”: a independência das Magistraturas!!

E a instrumentalização das mesmas! Só será promovido quem for da “cor” que estiver, no momento, no poder!

Um dia destes, ainda veremos sociólogos e economistas no lugar de Juízes e Procuradores...vai ser Alice no País das Maravilhas...a tentarem folhear os códigos...ai que riso!!! sem nada perceberem de dogmática e da aplicação do Direito ao caso concreto! ihihihi..

Seria caso para dizer:Volta, Salazar, que estás “perdoado”...

Mas é claro que terão de ser os próprios Magistrados a pronunciarem-se sobres estas matérias. Mas se eles não o fazem...têm a guerra perdida...

C.M. disse...

Aqui os breves comentários que teci ao postal da nossa Kami:

O cidadão português tem direito a uma justiça mais célere mas sem perda de qualidade. Sem que os Magistrados, quer sejam da Magistratura Judicial, quer sejam do Ministério Público, tenham sobre si uma ameaçadora espada de Dâmocles, que lhes retire um certo conforto material (ele não é muito - já tenho aqui dito e creio que demonstrado - que qualquer comerciante de meia tigela ganha muito muito mais que um simples Magistrado) e paz espiritual tão necessários para bem decidir, sem pensar (excessivamente) em termos de “produção” a bem da qualidade; sem terem de se preocupar se, em virtude de determinados “rácios” de produtividade irão receber um menor rendimento mensal…

Esta visão economicista do Direito que tem vindo a impor-se é fruto desta época que nada respeita: nem as pessoas nem as Instituições.

E depois dizem que sou conservador! Mas digam-me: no Estado Novo, não havia esta crise da Justiça; eu não estou a debruçar-me aqui sobre, por exemplo, os tribunais plenários e esse aspecto mais perturbante, fruto da época. Estou apenas a referir-me à respeitabilidade da qual os Tribunais eram detentores e dos seus respectivos operadores: Funcionários, Magistrados e Advogados.

Hoje, ninguém é respeitado. Arrastados pela lama, os Magistrados são hoje acossados pelo poder político vá-se lá saber porquê!

(eu até creio bem saber as respectivas razões, mas também não as vou aqui colocar...nem aqui nem em lado nenhum; olhem, meus amigos aqui do blog, isto seria a tal conversa a ter à lareira, com a porta de casa bem fechada...).


Não queria alongar-me muito, pois esta noite de Sábado já vai longa, pois que cheguei a casa, vindo do Teatro da Trindade, onde vi a peça “ Azul a Cores”.

Mas apenas direi, por ora, que esses senhores professores universitários, que passam a vida a dizer mal da Magistratura, sofrem todos de um complexo “magistrático”: gostariam de ter sido Juízes ou Procuradores da República e, como o não conseguiram, zurzem no seu dia-a-dia contra os mesmos.

Zurzem agora, pois que o Estado (este, ao qual nós chegámos) até lhes agradece o “jeito”.

Esta não é uma afirmação “gratuita” ( também não as faço!) pois que conheço bem alguns desses senhores.

Por acaso, esta “garoupa” aqui oportunamente citada, até a desconhecia…deve ser das “económicas”…é que estes senhores dos “dinheiros” julgam que sabem Direito, e que este pode reger-se por parâmetros economicistas!

Ainda voltarei a este tema, com mais vagar, para desancar, de vez, todas estas “garoupas”.

Estou farto desta visão economicista do Direito, aliás desta visão aplicada a toda a sociedade!!

Que saudades, Marcello Caetano!!! ( pronto, obrigam-me a dizer destas coisas!…)

Agradeço à Kami o postal, pois esta é uma matéria muita séria e grave; está-se a tentar “domesticar” o poder judicial por ínvios caminhos…

Então foi para isto que se fez o 25 de Abril?

josé disse...

Caro cabral-mendes:

Talvez as propostas de um economista que se atreveu a escrever no Público sobre um assunto que não é da sua área despecífica, tenham algum senso.

Quando li o artigo, hoje de manhã, pareceu-me bem, na generalidade e pelo menos é uma base interessante de discussão.

Quem a faz, aliás?!

Vê alguém a falar nisto assim deste modo? Vê aqueles que deveriam glosar estes temas preocupados com o assunto?

O que vê e o que temos visto, são posições isoladas e acrisoladas de uma defesa de certo satus quo que já não é defensável.

Talvez que o artigo de Nuno Garoupa seja a lufada de ar fresco que se precisa para relançar a discussão.
Não seria melhor irmos aos princípios? Aos gregos e aos franceses e procurar compreender a estrutura do poder judicial e a sua importância na democracia ocidental?


É que a alternativa são os artigos de Miguel SOusa Tavares; os comentários a latere do Pacheco Pereira e as diatribes do Marinho e Pinto, para não falar no novo Lenny...( foi ele quem se pôs na pele).

C.M. disse...

Como diz um aforismo popular: um olho no burro, outro no cigano...
Dou agora conta do seu comentário, Caríssimo José, neste final de tarde.

Façamos então uma pequena pausa: Caríssimo José, tem razão na argumentação (genericamente falando) aqui exposta: o “atavismo” de certos Magistrados também me aflige enquanto cidadão. Note-se, não tenho procuração dos mesmos mas defendo aqui o que eles deveriam defender, nos blogs, na imprensa escrita, na televisão, na rádio, do alto do Cristo-Rei se necessário fosse...Que o princípio da independência das Magistraturas deve manter-se (até por um imperativo constitucional). Para que o poder político não se imiscua nas decisões judiciais. Para que não possa determinar o arquivamento deste ou a prossecução daquele processo...

Acho estranho que tudo aquilo que muitos senhores reprovavam ao regime do Estado Novo, queiram agora impôr: na II República, (e para falar daquilo que conheço) existiam as Auditorias Jurídicas, não existiam verdadeiros Tribunais Administrativos como hoje. O poder de julgar as matérias administrativistas não era livre. A serem aceites as teses dos economistas, como esse do Público, e outros políticos da nossa praça, o poder judicial irá, a breve prazo, deixar de ser independente. É uma opção. Basta mudar a Constituição, que, coitada, já é um manto de retalhos...

Mas então, não nos venham dizer que no Estado Novo a Justiça estava enfeudada ao Regime. Se o querem fazer de novo!!!

Então, desde quando é que se pode permitir, no rigor dos princípios, que um Órgão de Soberania esteja sujeito a pressões e “exame” de outro Órgão? No quadro constitucional vigente, tal não é admissível. A não ser que mudem radicalmente a Constituição. Ora, afinal, como vão longe os “ideais” de abril...

Hoje em dia, muda-se a lei apenas com intuitos políticos a serem obtidos no “imediato“, intuitos obscuros” (bem...eles até são bastante transparentes, se pensarmos um pouco...).

E que dizer dessa proposta de se ganhar “à peça”? Mas então pode produzir-se decisões e peças processuais como numa fábrica de “enchidos”? Também na área dos pareceres, nas Auditorias Jurídicas, nos Contenciosos dos Ministérios, também já se anda a pensar nisso...é de loucos! Quem é da área do Direito, sabe que tal não é compatível com um desempenho de qualidade.

Conheço muitos Magistrados e também sei que nenhum anda “à boa vida”. Pelo contrário: são uns escravos! Trabalham sempre aos fins-de-semana, nas férias...sem receberem mais por isso. Mas a litigiosidade em Portugal atingiu números tão obscenos que ninguém consegue ter decisões a tempo e horas. Mas a culpa é do estado a que chegou...o nosso Estado!

Lembro-me que no tempo do Ministro António Costa, que tutelou a Justiça, para não ir mais atrás, a classe até estava bem vista. Havia compreensão e entendimento mútuos. Não sei como actualmente estamos perante este descalabro ( ou por outra, sei sei...mas...).

E dá-me pena que eles, coitados, não se sabem defender...parecem os cordeiros, prontos para o sacrifício, e nem “tugem nem mugem”: apenas os garoupas destes dias de chumbo é que podem dizer tudo o que querem, mesmo asneiras. Os ventos estão de feição.

Bem, tenho ainda muito trabalho pela frente...

Um Abraço, José, e obrigado pelo seu comentário.

antonio romao disse...

E que tal criar uma leizinha que permita,à semelhança do que já ocorreu com a gestão hospitalar em idos tempos em que o Sr.Dr.Cavaco e Silva era o Primeiro Ministro de Portugal,nomear comerciantes,p.ex.,para exercer cargos na judicatura.E já agora na Procuradoria.Se é para procurar nada melhor que alguém que o saiba fazer,talvez sob proposta da AIP ou entidade similar.Então com um cursito em coimbra no nóvel tribunal experimental era canja