18 março 2006

ULCUS TANGERE (tocar na ferida)


Fala-nos o nosso Nicodemus do “estado calamitoso a que chegou a nossa administração pública, resultado de décadas de clientelismo e de laxismo”

Refere também o facto desta Administração “ser tentacular e gastadora”.

Pois bem, na verdade ela tem servido os “clientes” dos diversos partidos políticos, que fazem parte desta grande feira que é o “bloco central dos interesses”: ora agora eu, ora agora tu!

A Administração Pública tem prestado “bons serviços” precisamente a todos aqueles que agora dizem mal dela. Mas que sempre se serviram da Administração e que continuam a usá-la para os seus interesses pessoais e egoístas.

Aqueles que “ingressam” nela não para servir a população portuguesa, mas sim para se servirem a eles próprios.

Foram estes que alimentaram o “monstro”de que tanto se “queixam” hipocritamente.

Mas os privilégios não são para aqueles que trabalham na Administração Pública com o sentido do dever e de missão, mal pagos e agora vilipendiados. Não! Os privilégios, os carros de função, os cartões de crédito, as viagens por esse mundo fora, são daqueles burocratas que fazem da “politiquice” um modo de vida, um veículo para os seus interesses particularíssimos.

Não um meio de melhorar a sociedade com a sua actuação, as suas ideias, as suas utopias.

E o veículo ideal de que essa gente se serviu foi precisamente a criação de Institutos Públicos.

Criou-se a convicção de que estes iriam agilizar o funcionamento do Estado. Foi antes uma caixa de pândora que se abriu quando, afinal, uma Direcção Geral de um Ministério faz o mesmo por um preço "simbólico". Mas assim não se poderia oferecer benesses à clientela política…

Já escrevi aqui que é muito debatida a questão do Estado ser demasiado extenso e de a nossa sociedade civil estar atrofiada. É necessário termos menos Estado e melhor Estado e uma sociedade civil mais forte, diz-se.

É claro que o Estado, para os defensores desta visão, deveria “entregar” certos sectores à sociedade civil, como a prestação de cuidados de saúde e a educação e cuidar da Justiça, que não é privatizável (pensamos nós…) e é uma prerrogativa da soberania.

Todos sabemos, é um facto indesmentível, que o Estado (leia-se os homens que hoje se servem da máquina administrativa para os seus fins menos lícitos…) desperdiça muito, quer na prestação de cuidados de saúde, quer na prestação da educação. Assim sendo, seria talvez desejável que o Estado entregasse à sociedade civil esta responsabilidade, que lhe assiste como direito, já que é uma responsabilidade primeira da sociedade civil e da família. Nada impede que aquela desempenhe esse papel. Todavia, cremos que o Estado nunca deverá alhear-se dos seus deveres nesta matéria, atentas as prestações “mínimas” que deverá assegurar nestes domínios, mesmo que a título subsidiário.

Também já sublinhei aqui e algures que é necessária uma maior autonomia da Administração Pública face às forças partidárias porque tem havido uma excessiva apropriação partidária do aparelho do Estado.

É desta actual indefinição do papel do Estado que surge um horizonte muito sombrio, pois não existe ordem social sustentável sem que existam leis e instituições em que a sociedade se reveja.

Tudo passa pelo papel que pretendemos que o Estado desempenhe na sociedade.

O Estado hoje encontra-se muito enfraquecido. Como pode ele ser eficiente no estado de inanição em que se encontra?

Apesar deste continuar a ter um papel essencial nas sociedades de hoje, a globalização torna os Estados-nações fracos face às empresas multinacionais; e os blocos de Estado sobrepõem-se aos Estados nacionais.

A ideologia neoliberal (e isto não é um “chavão”) assenta na ideia de "menos Estado, melhor Estado". O que se pretende, porém, não é tanto a redução do papel do Estado, mas antes a sua reconfiguração. Interesses privados querem apropriar-se do Estado, o que é particularmente evidente em Portugal. Hoje, em nome da competitividade, assiste-se a mudanças que distanciam o Estado dos cidadãos, pondo em causa a sua função social.

Este é o ponto fulcral da luta do neoliberalismo: a conquista, por dentro, do Estado, o “abocanhar” dos serviços que, numa segunda fase, venderá ao Estado “ a preços de mercado” obviamente!

Creio firmemente nisto que afirmo. Aliás, a minha visão da actuação do Estado, da sua missão no seio da sociedade, é subsidiária da visão administrativista que bebi em Marcello Caetano.

Se fui ultrapassado pela ideologia dominante, paciência. Não mudarei a minha visão acerca do papel que o Estado deve desempenhar na sociedade.

E tal nada tem a ver com o conceito de liberdade ou democracia. Ou melhor, até tem, bem vistas as coisas: um Estado fraco, ineficiente, não pode funcionar bem, repercutindo sobre a sociedade as suas patologias a qual, uma vez doente, poderá colocar em causa um sistema que, afinal, a parasita!

Assim, acredito profundamente que somente um Estado forte poderá ser o porto de abrigo ao qual nós, cidadãos de pleno direito, poderemos chegar com tranquilidade, quando necessitarmos de alguma prestação no âmbito da Saúde, da Educação, da Justiça, da Segurança Social. No fundo, um veículo promotor de uma sociedade que funcione mais harmoniosamente, para que no seio dela não haja desequilíbrios sociais e económicos gritantes.

Nada poderemos esperar da mão invisível que regulará, por artes mágicas, o agora virtuoso deus-mercado!

O bater em retirada do Estado de muitas áreas em que devia ser ele a actuar, representa um retrocesso social, e afasta o nosso País de um paradigma que começava a viver nos anos 70 para, enfim, finalmente se aproximar da mítica Europa do “welfare state".

Puro engano! Aí chegados, esperançosos, dizem-nos que a Europa está a acabar; que o paradigma agora é americano…

A criação de novas estruturas com maior dimensão, a redução ou mesmo a extinção de serviços de carácter regional, são medidas que apenas irão contribuir para a crescente desertificação do País, e proporcionar prestações de pior qualidade, com a extinção de serviços de proximidade à população, como na área da Segurança Social. E nem sequer tal medida será mais eficiente; pelo contrário, aquelas estruturas, pela sua dimensão, não terão a sensibilidade necessária para atender a problemas de quem está longe e no interior do País.

Tudo se perfila para que Portugal se consubstancie apenas numa estreita faixa, ao longo do Atlântico. Para o interior, tudo estará morto a curto prazo. A bem do défice.

Portugal já foi uma grande Nação. Hoje, agonizamos.

3 comentários:

M.C.R. disse...

Caro Nicodemos
quando quiser venha até cá conversar sobre a AP. Posso contar-lhe coisas que lhe porão os cabelos em pé. Contá-las aqui? Era o que faltava. Choviam-me processos em cima. Os funcionários públicos tem servido para tudo. A administração pública tem sido invadida enviezadamente por todos os arrivistas que os políticos entendem premiar. Entram em todos os escalões, sobretudo nos mais altos. Depois de feita a rodagem vão presidir aos Institutos Públicos, às EPs e a uma série de lugares bem pagos (eu não estou a falar dessa Entidade Reguladora onde se abicham 5000/6000 euros mês...
Depois quando se pretende saber quem rebenta com a função pública nunca ninguém aponta esta gentuça. E olhe que não são poucos. Antes pelo contrário...
O texto de DLM é excelente. Só peca peloa prudência.

M.C.R. disse...

Carteiro, atento!

C.M. disse...

Seria bonito, uma roda de amigos...nos dias de hoje, há que cultivá-los...