A opinião de um juiz no blawg Sílaba Tónica (sublinhados do citador)
Julgamento dos titulares de órgãos de soberania
Por essa blogosfera fora, podem ler-se vários comentários criticando a hipótese de, no futuro, os titulares de cargos políticos virem a ser julgados em primeira instância pelos Tribunais da Relação, em matéria criminal. Em contracorrente com esta posição mainstream, a minha primeira impressão sobre a ideia foi a de a achar interessante. Já hoje, diversos titulares de órgãos de soberania são julgados em primeira instância pelo Supremo Tribunal de Justiça ou pelos Tribunais da Relação - cfr. os arts. 11.º, n.os 2, al. a), e 3, al. a), e 12.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal. As mesmas razões podem ser invocadas, com as devidas distâncias, em relação a outros titulares de órgãos de soberania. Não vejo que o Estado de Direito fique comprometido se os demais representantes do povo forem julgados em primeira instância por um tribunal superior. Essa deferência legislativa pode ser entendida como prestigiante para os cidadãos abrangidos e, como tal, para o órgão de soberania que integram - e, como tal, novamente, para o Estado. É certo que alguns dos políticos a abranger pelo novo regime não são titulares dos órgãos de soberania do Estado, mas sim titulares de cargos autárquicos. Todavia, ainda assim, não me parece que haja qualquer problema de maior em que sejam os Tribunais da Relação a julgar em primeira instância um Presidente de Câmara, por exemplo. Afinal, estamos sempre a falar de tribunais judiciais. Já foi defendido que conhecidos "casos de promiscuidade entre magistrados de tribunais superiores e dirigentes políticos" desaconselham tal solução. Esta opinião, expressa num texto transcrito aqui, é ofensiva para os Srs. Desembargadores, não merecendo ser discutida. A verdade é esta: caso após caso, despacho após despacho, sentença após sentença, todas as decisões proferidas em primeira instância respeitantes a arguidos titulares de cargos políticos são, sistematicamente, alteradas, anuladas ou revogadas. Para além de tudo o mais que este permanente "desmentir" da primeira instância pelos Tribunais da Relação pode indiciar - como a falta de sensibilidade jurídica dos juízes de comarca para apreciarem estas questões (?) - , é ele extremamente prejudicial para a imagem da justiça. Prisões preventivas ordenadas e, depois, revogadas; prisões preventivas não determinadas e, depois, ordenadas; penas de prisão de alguns anos reduzidas; absolvições onde havia condenação: os casos sucedem-se, parecendo que, ao contrário do que sucede nos restantes processos, não há uma única confirmação "pura e simples" da decisão de primeira instância.O que se passa nestes casos, fruto da qualidade do arguido, é ampliado pelos mass media e generalizado como sendo o retrato fiel da justiça portuguesa. Se os tribunais superiores se pronunciassem em primeira instância, evitava-se o referido permanente "desmentir" dos tribunais da comarca. Por outro lado, há perigos graves à volta desta "proposta". Com efeito, desde a asfixia dos Tribunais da Relação - que levaria à impossibilidade de investigar e julgar os ilícitos alegadamente praticados por titulares de cargos políticos, por falta de meios - , até ao "controle" dos magistrados através da sua escolha política para ocuparem lugares nas Relações - a famigerada carreira plana - , muitos são os perigos que podem reduzir esta ideia governamental a uma forma de "irresponsabilização" prática dos titulares dos cargos políticos. O prestígio que traria aos titulares de cargos políticos - e ao Estado - e a melhoria que proporcionaria à imagem da justiça, justificam, assim, que não se despreza liminarmente esta ideia governamental. Há que avançar, mas com cuidado.
2 comentários:
A opinião de um juiz no blawg Sílaba Tónica
(sublinhados do citador)
Julgamento dos titulares de órgãos de soberania
Por essa blogosfera fora, podem ler-se vários comentários criticando a hipótese de, no futuro, os titulares de cargos políticos virem a ser julgados em primeira instância pelos Tribunais da Relação, em matéria criminal.
Em contracorrente com esta posição mainstream, a minha primeira impressão sobre a ideia foi a de a achar interessante.
Já hoje, diversos titulares de órgãos de soberania são julgados em primeira instância pelo Supremo Tribunal de Justiça ou pelos Tribunais da Relação - cfr. os arts. 11.º, n.os 2, al. a), e 3, al. a), e 12.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal. As mesmas razões podem ser invocadas, com as devidas distâncias, em relação a outros titulares de órgãos de soberania.
Não vejo que o Estado de Direito fique comprometido se os demais representantes do povo forem julgados em primeira instância por um tribunal superior. Essa deferência legislativa pode ser entendida como prestigiante para os cidadãos abrangidos e, como tal, para o órgão de soberania que integram - e, como tal, novamente, para o Estado.
É certo que alguns dos políticos a abranger pelo novo regime não são titulares dos órgãos de soberania do Estado, mas sim titulares de cargos autárquicos. Todavia, ainda assim, não me parece que haja qualquer problema de maior em que sejam os Tribunais da Relação a julgar em primeira instância um Presidente de Câmara, por exemplo. Afinal, estamos sempre a falar de tribunais judiciais.
Já foi defendido que conhecidos "casos de promiscuidade entre magistrados de tribunais superiores e dirigentes políticos" desaconselham tal solução. Esta opinião, expressa num texto transcrito aqui, é ofensiva para os Srs. Desembargadores, não merecendo ser discutida.
A verdade é esta: caso após caso, despacho após despacho, sentença após sentença, todas as decisões proferidas em primeira instância respeitantes a arguidos titulares de cargos políticos são, sistematicamente, alteradas, anuladas ou revogadas.
Para além de tudo o mais que este permanente "desmentir" da primeira instância pelos Tribunais da Relação pode indiciar - como a falta de sensibilidade jurídica dos juízes de comarca para apreciarem estas questões (?) - , é ele extremamente prejudicial para a imagem da justiça.
Prisões preventivas ordenadas e, depois, revogadas; prisões preventivas não determinadas e, depois, ordenadas; penas de prisão de alguns anos reduzidas; absolvições onde havia condenação: os casos sucedem-se, parecendo que, ao contrário do que sucede nos restantes processos, não há uma única confirmação "pura e simples" da decisão de primeira instância.O que se passa nestes casos, fruto da qualidade do arguido, é ampliado pelos mass media e generalizado como sendo o retrato fiel da justiça portuguesa.
Se os tribunais superiores se pronunciassem em primeira instância, evitava-se o referido permanente "desmentir" dos tribunais da comarca.
Por outro lado, há perigos graves à volta desta "proposta".
Com efeito, desde a asfixia dos Tribunais da Relação - que levaria à impossibilidade de investigar e julgar os ilícitos alegadamente praticados por titulares de cargos políticos, por falta de meios - , até ao "controle" dos magistrados através da sua escolha política para ocuparem lugares nas Relações - a famigerada carreira plana - , muitos são os perigos que podem reduzir esta ideia governamental a uma forma de "irresponsabilização" prática dos titulares dos cargos políticos.
O prestígio que traria aos titulares de cargos políticos - e ao Estado - e a melhoria que proporcionaria à imagem da justiça, justificam, assim, que não se despreza liminarmente esta ideia governamental.
Há que avançar, mas com cuidado.
Publicado por PRF no dia 2.3.06
O postal linkado no post teve desenvolvimentos aqui.
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