26 abril 2006

Au Bonheur des Dames 23

Porque dambulam os homens em vez de ficar quietos?

Permitam-me que comece por uma anedota vivida e sobrevivida, como verão de seguida. Nos idos de 62, durante uma famosa crise académica, fui, com mais quase trezentos estudantes, preso depois de ocupar a sede da Associação Académica de Coimbra. Esta pequena multidão foi levada para o quartel da guarda republicana e, à falta de melhor, metida no refeitório, que seria a única sala onde caberíamos. Quando percebi que estávamos ali para ser feita uma triagem entre maus, muito maus e péssimos, temi pelo meu futuro imediato e fui passear para o fundo da sala. De pouco me valeu tal deambulação porque a breve trecho ouvi o meu nome e como me fui aproximando lentamente, repetiram-no duas vezes e em tom crescentemente ameaçador. Depois com mais cerca de cinquenta escolhidos partimos para gozo de férias à custa do Estado numa prisão à beira mar.
Para não perder o fio à meada, eis aqui uma primeira tentativa de resposta ao tema que aqui nos junta. Deambulei, ainda que pouco, e com menor êxito para evitar o momento da verdade: malhar com os ossos em Caxias. Adiar o inevitável, para ser mais preciso.
Desculpem se começo com uma historieta. É apenas um truque para ajudar a passar o resto da minha intervenção que corre o risco de ser sensaborona.
Um moderador deve ser moderado no que vem dizer: refugio-me pois em três ou quatro recordações de leituras que apesar de antigas me tem acompanhado sempre.
E poderia começar pela história do patriarca que vindo de Ur foi errando pelos imensos espaços do médio oriente semeando pão e filhos. Alguns desses, à voz de Moisés despediram-se do faraó e partiram em busca da terra onde correria o leite e o mel. Quarenta anos terão andado perdidos entre dunas que se sucediam às dunas, alimentados pelo maná que um Deus longínquo lhes enviava ou, como creio, por um outro alimento menos espiritual mas mais conforme com a tese que queria desenvolver: vagueavam por um deserto cuja travessia não pediria mais que um ou dois meses, movidos pela procura da aventura.
É essa mesma procura que animará Jasão e os seus, o voo de Ícaro, Teseu, a caminho de Atenas ou mais tarde perdido no labirinto. Estes homens sempre em movimento, afrontando mil perigos, usando a astúcia dos comuns mortais dão aos deuses uma bela lição. É que não têm a seu favor a imortalidade destes, essa imortalidade que os convida ao ócio e os torna o pior dos exemplos para os mortais.
E a pergunta reaparece: porque deambulam estes homens? Porque se submetem a todos os perigos, arriscam mil vezes a vida, eles que são apenas mortais?
Tentemos a resposta fugindo do mundo grego, muito nosso e muito próximo: deambulemos, nós também, até Uruk, a cidade das 900 torres onde reina Gilgamesh. Como é sabido, Gilgamesh tornar-se-á amigo dum gigante selvagem, Enkidu a quem manhosamente enviou uma cortesã para o seduzir. Duram sete ininterruptos dias e sete noites as núpcias da bela e do monstro que se converterá em homem e amigo de Gilgamesh. Os dois combaterão monstros, vencê-los-ão mas o perfume fatal da vitória fá-los desafiar a grande deusa Ishtar que finalmente conseguirá abater Enkidu. Depois de chorar o amigo morto, Gilgamesh partirá para o deserto, onde errará desesperado pela ideia duma morte que cedo ou tarde o atingirá. Para a deter encetará uma longa e aventurosa viajem, semeada de perigos extraordinários, ao fim da qual obterá a planta mágica da imortalidade. Quando já regressa triunfante resolve lavar-se numa fonte. Uma serpente, atraída pelo aroma da planta come-a e Gilgamesh não tem mais remédio do que regressar à sua Uruk sabendo-se definitivamente privado da imortalidade.
Eu não sei se esta digressão por um mundo antigo e luminoso, onde os heróis ainda eram possíveis nos dá qualquer pista. Por mim, leitor compulsivo, que sempre viajou acompanhado de livros, que visitou terras onde jamais se perdeu de tantos livros lidos sobre elas, tenho que a viagem é sempre uma tentativa de fuga da condição humana de antemão perdida. Os homens como os autores embarcam numa história que eles próprios escrevem para tentarem assegurar a sua quota-parte de imortalidade. Mesmo que saibam, e sabem, claro, que não a conseguirão. E no entanto, persistem. Como diz o poeta:
caminhante não há caminho;
o caminho faz-se ao andar.

E é essa a sua vitória.


as minhas pacientíssimas leitoras devem admirar-se da pouquidão deste texto, logo eu que, como diz amavelmente o José sou de longas redações. Acontece que como por aí se dirá era apenas o moderador da mesa pelo que entendi escrever uma coisa que não ultrapassasse os 5 minutos, dado que eram concedidos dez aos intervenientes. Aviei pois, a mata cavalos a história de Gilgamesh que é um dos mitos mais extraordinários do médio oriente. E com grande pena o fiz mas apenas queria deixar claras duas ideias: uma a de que os homens devem desafiar constantemente a sorte isto é o designio dos deuses. A segunda será que, mesmo sabendo-se vencidos pela morte, lutam pela imortalidade. Como já contei noutro post a mesa foi alegremente anárquica e por isso a discussão também se pautou pelos mesmos princípios. E as lições que eu pretendia tirar ficaram no tinteiro. De qualquer modo repetiria a aventura.
À leitora que teve a amabilidade de me falar peço que me contacte para marceloribeiro@netcabo.pt com urgência para fins de máxima seriedade, juro.

4 comentários:

C.M. disse...

Acho mal este "aparthaid" sexista que ressalta do texto e que nos exclui, a nós, machos ibéricos aqui dominantes nesta nossa coutada...( onde é que eu já li isto? ahaha)

( estou cá um blagueur!... - gaba-te cesto!)

M.C.R. disse...

citei só machos no texto. Bem também falei de Ishtar.
acho que uma conversa de pé de orelha com as leitoras compensa mal a primeira parte...

C.M. disse...

Não ligue, caro MCR, que isto foram só ciumes...bem e vou-me deitar que estou estourado!

Silvia Chueire disse...

Talvez tenha mesmo razão MCR e o homem deambule para buscar a imortalidade,para desafiar sua mortalidade.
Porque são homens e mulheres deambularão também porque padecem de uma curiosidade e um eterno perguntar que demanda sair do lugar conhecido.Tantas razões.
Foi uma beleza a sua colocação.

Abraço-lhe por ela,

Silvia