11 abril 2006

A procissão

Caro DC-M:
Gosto de ver procissões, fui repórter em Fátima com João Paulo II (tão novinho, eu, 21 anos?), sofri com a Benção aos Doentes, senti Deus ali tão perto. Escrevi sobre carteiristas que fanavam as carteiras dos peregrinos. Escrevi sobre as prostitutas que "atacavam" à volta do Santuário, vi títulos que fiz serem alterados porque o jornal não se podia dar ao luxo de os transcrever. Escrevi sobre a descrença dos que vendem em Fátima coisas foleiras que são a prova de que se é crente. Estive em discotecas que proliferavam no perímetro de Fátima onde a coisa era dura e estive para levar nas trombas. Conduzi com a carta apreendida com o repórter fotográfico - Ricardo Pereira Jr. - ao lado dos caminhantes. Vi o céu escurecer e voltar ao sol quando João Paulo II foi embora. Antes tinha visto o atentado ao Papa. Vi! Andei pelos telhados do hotel com outro puto repórter, como eu, a atirar baldes de água, pelas clarabóias, sobre os dormentes gurus do jornalismo, que - proto-assassinos molhados - nos queriam matar, apesar de estarmos em Fátima. Vi peregrinos pobres, deitados sob as azinheiras a dormir no chão, depois de um jantar pobre. E vi peregrinos ricos, nos hotéis de luxo, carros potentes à porta, tão peregrinos quantos os pobres, porque a vida é mesmo assim e ninguém é mais feliz ou menos porque as coisas são assim. E vi o primeiro peditório Xerox, de pedintes que distribuiam fotocópias com a sua história e recolhiam fotocópias com a moeda. Estive com a Irmã Lúcia. Toquei o Papa, dias depois, em Coimbra, e ainda me dói o braço daquela apertão, na Via Latina, do Cardeal Marcinkos (é assim que se escreve?), quando a Academia de Coimbra dormiu, ali, para receber o Papa.
Fiz isso tudo.
Fiz um furor enorme nos lares de Coimbra quando as minhas amigas mostravam as minhas reportagens (escolhidas a dedo) às irmãs, um passe de mágica para ter porta aberta...
Fiz isso tudo.
Mas há uma coisa que não podem pedir-me. Eu não sou capaz de ir na procissão. Muito menos debaixo do pálio (é assim que se escreve?). Por isso, nunca poderia ser presidente da Câmara, neste país laico.

3 comentários:

C.M. disse...

Agora, um espaço para o meu amigo Coutinho Ribeiro:

Até tive um choque quando, hoje de manhã, abri o Incursões e vi o seu postal, com essa foto bem bonita...(ainda bem que não há ninguém a querer deitar-se ao rio, seja o Tejo ou o Douro...).


Pensei de imediato: tenho de escrever para o Coutinho Ribeiro! Mas só agora é que tenho mais disponibilidade. É que o seu texto tocou-me tanto que não queria deixar aqui uma breve linha, tipo sim sim não não.

Meu amigo: então não é capaz de ir numa procissão! Essa agora! Então o que tem feito, ou pelo menos o que fez na sua vida de jornalista? Essa história de apertar a mão a João Paulo II vale por milhares de procissões! Olhe, eu não tive essa graça! E fico muito impressionado com a sua vivência!

Relativamente ao texto, nunca li nenhum que descrevesse tão bem a atmosfera de Fátima, na sua simples verdade, dos homens e mulheres que ali vão, ricos ou pobres.

Este seu texto é de uma grande preciosidade. Olhe, vou mostrá-lo a uns padres meus amigos!

Um abraço muito comovido

Delfim

o sibilo da serpente disse...

Grato pelas suas palavras, Delfim. As minhas duas estadas em Fátima, como repórter, marcaram-me muito. As estadas como peregrino também.
Sim. Tenho algumas coisas para contar da vida. Talvez ainda não seja o tempo.

Mocho Atento disse...

Carteiro,

O Prtesidente da Câmara não deve ir debaixo do pálio.

Nas procissões em cuja organização participei, o Presidente da Câmara, autoridades e convidados vão atrás do povo, apenas separados do restante povo pelo cordão de segurança.