03 maio 2006

Au bonheur des Dames nº 24

Cheiros de África
(variações para duas marimbas de Zavala)

Há dias em Matosinhos, numa caótica mesa redonda em que participei, o Alexandre Quintanilha, “coca-cola”de gema pois que nado e criado em Lourenço Marques, antes de ser Maputo, falou nos cheiros de África.
Ai o que o mafarrico foi dizer. Eu a ouvir aquela, senti-me subitamente transportado aos anos felizes da minha adolescência, quando por um bambúrrio da sorte, nos tocou, à família, ir para África, Moçambique mais propriamente dito.
Nos anos cinquenta, na primeira metade dos anos cinquenta, África era uma aventura. Ia-se de barco, num desses magníficos paquetes, enormes, que varavam o mar com uma lentidão majestosa. Claro que enjoei que nem uma pescada. Passei os primeiros dez dias de viagem, quase sempre no deck, único sítio onde não me sentia a morrer. Em entrando no corredor dos camarotes, a coisa começava a fiar fino. E nas proximidades do salão de jantar então nem se fala. E logo eu, na força dos meus treze anos, comilão como era... A Companhia Colonial de Navegação deve-me aí umas quinze refeições que na minha recordação eram mais que copiosas, óptimas com imensos “hors d’oeuvre” suculentos para não falar no resto. Claro que dormir no deck tinha compensações, como seja o avistar S Tomé pela manhãzinha, uma erupção de flores e verde no meio de um mar tranquilo semeado de pequenas canoas, um ar finíssimo que anunciava os grandes calores do dia mal a manhã avançasse. Ou a longa entrada no Lobito, a terra revelando-se a cada metro, primeiro uma mancha de casario á distancia depois o milagre de uma cidadezinha lindíssima, gente, carros, guindastes, um porto, ah...!
Mas não era da viagem, de resto passada sob o signo do enjoo durante toda a primeira metade dela, que eu queria falar. Nem mesmo de Lourenço Marques, de um Lourenço Marques simultaneamente colonial e moderno para quem vinha de um pais imberbe e atrasado, que ali chamavam metrópole, com mais condescendência do que inveja, uma cidade geométrica de grandes avenidas muito arborizadas, onde se conduzia á inglesa, onde toda a gente usava calções de caqui e meia alta pelo joelho e camisas de manga curta que se arregaçavam ainda mais. Onde, privilegiado, talvez, aliás de certeza, eu tinha como campo de jogos o Club Militar, a Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra, o Pavilhão e a sua praia cercada de rede e onde o Natal se passava fora de casa e com calor.
Mais tarde fomos para o Norte e foi altura de descobrir os imensos palmares que se estendiam de Quelimane até ao golfo de Moçambique, as prais coralinas, a Ilha de Moçambique, Muipíti, Nampula, a terra das chuvas cercada de morros de granito, o mato, a África antiga e verdadeira, as pequenas administrações e postos do mato, as picadas, os bichos, a distancia e a noite. A noite, a noite só de estrelas sem luz eléctrica ou outra, uma vaga fogueira por algumas horas e o silêncio ruidoso do mato.
Voltei à metrópole, claro. Para estudar. Voltei aos ambientes pequeninos, friorentos, atrasados de um Portugal onde nas praias os homens eram obrigados a usar uma coisa ridícula chamada peitilho, sob pena de multa passada pelo cabo do mar. Um Portugal tristonho e vigiado por polícias de todo o género incluindo uns patuscos fiscais que mal viam alguém rapar de um isqueiro se apressavam a exigir-lhe que mostrasse uma licença. Um Portugal onde ainda não tinham chegado os cigarros de filtro, o nylon nem o whisky para não falar na coca cola que o pequeno mas eficaz ditador de Santa Comba achava perigosa. Um Portugal onde as pessoas se tratavam por você quando não era por senhor ou senhora... Um Portugal macambúzio e engravatado, de fatos que tendo visto melhores dias se “viravam”, de tamancos, pobrete e pouco alegrete pese embora uma fama persistente que dava os portugueses por rionhos.
Não é de espantar que uma vez na universidade, os estudantes “ultramarinos” sobretudo os moçambicanos se organizassem para criar um sistema de viagens de férias que custava cerca de 15% do preço habitual das viagens de avião. O sistema baseava-se no facto dos aviões terem sempre uma dúzia de lugares vazios que portanto poderiam ser ocupados pela mocidade impecuniosa desde que esta se dispusesse a espera pacientemente no aeroporto pela sua vez. E lá íamos aos doze, quinze, vinte de cada vez em voos que duravam dois ou três dias e que nos primeiros anos de sessenta ainda sobrevoavam toda a África. Era uma aventura. Partia-se cerca das dez onze da noite, e por volta das sete da manhã chegava-se a Kano na Nigéria na orla do deserto, ou a Niamey no Níger, também na mesma zona, no Sahel para falar com alguma precisão. Mas antes, muito antes, já o dia ia claro e era um ver se te avias tudo mergulhado nas vigias, a sondar o solo perfeitamente visível, as manadas, os pequenos carreiros, as cubatas, os rios raros e breves, a gente pelos caminhos.
E de repente, o “super constelation” começa a perder altura e a preparar-se para aterrar. E víamos crescer a cidade, o aeroporto, carros, uma estrada, enfim, voltávamos a África. O avião uma vez parado abria finalmente as portas para aquela turbamulta de passageiros fartos da viagem, loucos por desentorpecer os pés, por uma bebida diferente no bar da zona de transito do aeroporto. Ao chegar à porta, vinha-nos ao nariz aquele cheiro intenso de África, um cheiro que mesmo numa zona perto do deserto vinha carregado de frutas, calor, terra molhada, um cheiro intenso e primitivo, um cheiro de novidade, primacial, um cheiro carregado de memórias antiquíssimas, um cheiro de tambores, de pó, de dança, de pirogas no alto mar, de mato seco a perder de vista, de embondeiros, de telhados de zinco, de caril.
Mas, voltando à mesa redonda, foi um desastre: o Alexandre Quintanilha a falar nos cheiros e este vosso criado a sentir as cataratas de Vitória a encher-lhe os olhos. Terei chorado a minha já longínqua juventude? Um primeiro amorico? Ah come é bello il primo amore ma il secondo é meglio ancor’. Lembranças de meu pai, caçador de caça grossa que até no mato trazia uma criança ao mundo com uma faca afiada, um pote de água quente e ordens rápidas à volta, bravo doutor branco que nunca viu cores à frente mas tão só doentes. Quem está primeiro?, dizia da porta do consultório para a sala de espera cheia. E uma vez sem exemplo, não havia colono por mais excelente ou mais antigo que passasse à frente da mulher negra e humilde ou da indiana forte e de sari. E o que é mais, não reclamavam, não iam embora, cumprimentavam-no afectuosamente, convidavam-no para festas, casamentos, caris monumentais, para padrinho de crianças que ele arrancara ao ventre das mães.
Doutor, doutor caçador, sempre no seu carocha, cigarro ao canto do lábio, metido tantas vezes só por picadas sombrias até um acampamento de caça onde o esperava, fiel, um pisteiro. Numa dessas vezes, já a guerra tornava os caminhos desertos, o carro saiu da estrada e afocinhou na lama. Algumas horas depois, um grupo de quatro homens apareceu vindo de nenhures; cercaram o carro, ergueram-no quase a pulso puseram-no na estrada. O Pai quis distribuir umas moedas. Que não era nada doutor branco, doutor caçador. Que não era nada. E perderam-se pelos caminhos. Quem ouviu a história achou que se tratava de uma patrulha de guerrilheiros. O meu pai acreditou até morrer que deveriam ser clientes antigos de uma das suas consultas vadias entre duas caçadas. Os leitores escolham que eu só conto o que sei.
E eu só sei daquele cheiro antigo e persistente, daquele cheiro prenhe de vida e de cor, daquele cheiro de África (também) minha.

16 comentários:

C.M. disse...

“avistar S Tomé pela manhãzinha, uma erupção de flores e verde no meio de um mar tranquilo semeado de pequenas canoas, um ar finíssimo que anunciava os grandes calores do dia mal a manhã avançasse”

Meus amigos: se isto não é Poesia, onde estará ela?

Estonteado é o termo. Estou tão estonteado que não pude trabalhar como “il faut” nesta manhã. Vou ter de acelerar nesta tarde, para compensar a manhã, perdida que foi nestas evocações da memória, minha e do MCR.

Ao ler estas linhas, parece-me que estamos no princípio de tudo, na inocência primordial do mundo…

Foi, sem dúvida, outra era que só o MCR pôde viver e só ele saberá as paisagens que lhe povoam a memória. Mas como o nosso Marcelo é uma pessoa muito intimista, calorosa, humanista (tal ressalta notoriamente dos seus escritos) consegue transportar para o papel todos esses seus sentimentos, os quais lhe valeriam a prisão num qualquer “gulag”, num universo em que só o colectivo conta e onde não há espaço para a fraternidade.

Relata-nos ele: “um Lourenço Marques simultaneamente colonial e moderno para quem vinha de um pais imberbe e atrasado, que ali chamavam metrópole, com mais condescendência do que inveja, uma cidade geométrica de grandes avenidas muito arborizadas, onde se conduzia á inglesa, onde toda a gente usava calções de caqui e meia alta pelo joelho e camisas de manga curta que se arregaçavam ainda mais”.

Afinal, o “meu” MCR vem ao meu encontro: Lourenço Marques, como outras cidades de Moçambique ou Angola, tinham uma planificação invejável, uma beleza indescritível, um ar próspero. Falo daquilo que me têm relatado pessoas que lá viveram décadas. Que constataram, no presente, a destruição de tudo o que Portugal ali construiu. É uma dor imensa para todos nós, pois para construir uma sociedade, com outro rumo, não é necessário destruir o que ela contém de melhor. É sempre mais difícil partir do zero. O mesmo sucedeu aqui em Portugal Continental…

Ainda MCR: “Ao chegar à porta, vinha-nos ao nariz aquele cheiro intenso de África, um cheiro que mesmo numa zona perto do deserto vinha carregado de frutas, calor, terra molhada, um cheiro intenso e primitivo, um cheiro de novidade, primacial, um cheiro carregado de memórias antiquíssimas, um cheiro de tambores, de pó, de dança, de pirogas no alto mar, de mato seco a perder de vista, de embondeiros, de telhados de zinco, de caril.”

Até eu sinto a nostalgia daquilo que não me foi dado viver!

Paradoxalmente, como eu o compreendo, querido Marcelo!

Estou muito comovido com o seu texto. Parece-me que estive a ler a Karen Blixen numa versão muito muito melhor!

(Em tempo: atentando na nota final de MCR, diria que (a nossa) África poderia ser de todos e para todos! Para tanto bastaria que existissem homens que, ultrapassando ideologias estéreis, fossem antes homens de boa vontade.)

Um grande abraço ao Marcelo, tão próximos que estamos, mesmo sem nos conhecermos!

josé disse...

Arre, que se excedeu! Este texto é um script para vários filmes. É um texto literório em modo musical, andante... ma non troppo.
Corto Maltese: eat your heart out! Hugo Pratt: descansa em bom lugar!
Apareça um desenhador que nos mostre a aparição de S. Tomé! Um outro que nos rastreie a vista do Níger! Mais um para contornar as aflorações dos morros de granito!

Este texto é um roteiro e uma verdadeira viagem pelo mundo que nem conheço. Tal como o Delfim, até sinto nostalgia do que nunca vi!
Ainda por cima, agarrado a uma infância, com imagens de África sua que é também nossa pela descrição impressiva.

Obrigado pelo texto de sonho.

guy disse...

Belíssimo. Sebe do que fala. Conheço esse mundo, e essa nostalgia também..

Gomez disse...

Raios e coriscos, M.C.R.! Como há-de um coca-cola trabalhar pela noite dentro, depois desta evocação?

O meu olhar disse...

Belíssimo poema às suas memórias MCR. E que memórias!
Obrigada.

o sibilo da serpente disse...

A única coisa que sou capaz de invejar são as memórias dos outros. Como esta, de MCR. Pela razão simples de que eu não tenho boas memórias -já nem sequer boa memória. Um belo texto, meu caro amigo (que só agora pude ler com atenção).

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Caro MCR, deu-nos mais um texto belíssimo. Retive as aventuras e os cheiros, mas encantou-me a lembrança (e a justiça) de seu pai:

"Quem está primeiro?, dizia da porta do consultório para a sala de espera cheia. E uma vez sem exemplo, não havia colono por mais excelente ou mais antigo que passasse à frente da mulher negra e humilde ou da indiana forte e de sari."

C.M. disse...

Isso é que é a fraternidade! Hoje...

O Pai do MCR ficou tão bem retratado...Será que ainda existem homens assim? São homens de lenda!...Pertencentes a um mundo que já não existe. De um mundo, que apesar de muita maldade e vileza, também tinha muita bondade honradez e justiça.

Silvia Chueire disse...

Um texto tão bom! A qualidade e a emoção a andarem juntas.
Obrigada, MCR. Muito.

Abraços,
Silvia

M.C.R. disse...

Bem!... estou um bocado atrapalhado, podem crer. Um bocado é favor: Muito !!! Atrapalhado e agradecido. Muito, também.
Tanto mais que este texto foi saindo assim, de contrabando, uma recordação, uma história do meu pai, uma saudade, Matosinhos noutro dia, uma lágrima... Aliás um pouco dele três, quatro linhas andariam na introdução de um pequeno ensaio feito há quase 40 anos e que vou tentar encontrar (a introdução, não o ensaio...) para ver se a ponho num postal.
Aos coca colas e assimilados que fizeram o alto favor de se solidarizar com esta breve evocação uma palavra: KANIMAMBO!
Aos companheiros desta viagem, um abraço e outro kanimambo que quer dizer (em ronga) "obrigado", muito obrigado.
Estou embuchado: nem sei o que dizer.

josé disse...

Caro MCR:

Não fique atrapalhado. Aqui, neste blog já se discute o seu texto e houve um filisteu que quaso o apodou de reaccionário...

Não se fique. A culpa foi minha, mas não posso defendê-lo nessa liça...

M.C.R. disse...

Meu caro José,
fui ler o tal blog e o que li é, pelo menos e piedosamente, uma bela confusão. Pelos vistos houve quem me desmentisse o uso de peitilhos, regulamentado por decreto lei até 59 ou 60; quem nunca tivesse visto um fiscal de isqueiros - e eu que me fartei de ser multado!; quem achasse colonialista não sei bem o quê. Devem misturar conceitos pois de colonialismo ali, raspas... de nada. Aliás em texto anterior (cartas a Ribeiro Sanches e num comentário a um comentário a esse texto) eu dizia que nunca tivemos mais do que colónias e mesmo essas só o foram umas dezenas de anos, desde os anos 80/90 do séc. XIX até á eclosão da guerra) Ou seja desmentia a tese dos 400 ou 500 anos de ocupação efectiva dos territórios, E dizia mais umas coisas mas isso nem vale a pena citar.
Depois parece que alguém me crisma de Luis Rainho se não estou em erro. Até prova em contrário chamo-me Marcelo Ribeiro e chega.
O que me dá gozo nisto tudo, meu Caro, é a ironia de eu ter estado preso acusado de ser "simpatizante activo" dos movimentos de libertação e "agir em conformidade" e mais uma dúzia de coisas do mesmo teor... Em suma os actuais anti-colonialistas (sê-lo-iam naquelle tempo?) não gostaram de uma evocação normal e simples da minha primeira juventude. É com eles, não comigo. Mas colonialista é demais. E crismarem-me, pior. Escrevo o que escrevo e não roubo escritos de ninguém. Não mos tirem, por favor!
Não consegui pôr lá um comentário sem dúvida por imperícia minha. E se calhar foi melhor assim.
Colonialmente seu
mcr

C.M. disse...

Caro MCR, a latidos desses, a caravana passa indiferente...são os tais que se autointitulam de (muito) progressistas e, vai-se a ver, não têm réstea de humanidade no coração. Mas dizem-se muito solidários, lá isso dizem... são uns hipócritas, é o que são...e uns invejosos...Que isto é um País de invejosos, lá isso é...já o Guterres o dizia...e há por aí muita gente mentalmente perturbada...

C.M. disse...

Ah! também termino: cordialmente e colonialmente seu...
c-m

C.M. disse...

Acabei de ler alguns artigos do blog Aspirina, o link indicado pelo nosso José, e aquilo é, no mínimo, repelente: textos muito semelhantes ao do Diário Ateísta, povoado por "malta" da área do PS que ainda tem saudades da I República: ignorantes, insultuosos, psudo-progressistas que passam a vida a desrespeitar os cidadãos que não pensam como eles. A liberdade não existe para ofender o próximo naquilo que ele tem de mais sagrado!

O texto do Marcelo é demasiado rico, humanista, poético, para ser "plantado" em tal lixeira!

Não o merecem!

victor rosa de freitas disse...

Trata-se de um sublime texto sobre a "Mãe África" que, se toca o coração dos "invejosos" da metrópole que nunca a experimentaram no terreno, é um hino à pureza dos "colonos" que lá nasceram e viveram.

Parabéns!