Tempo de cerejas
Estamos sentados à mesa da cozinha. Pela janela entram os últimos raios de um verdadeiro dia de primavera, os restos de um sol glorioso. Hoje, ao passar pelo jardim, senti pela primeira vez neste ano que tinha chegado o joli mois de mai. Só em francês isto me soa. Isto: o mês, a primavera que vai adiantada e as primeiras cerejas de mistura com os primeiros dias perfumados.E vêm-me à memória sons de outras épocas não sei se mais felizes mas seguramente mais inocentes
Quand nous chanterons le temps des cerises...
Ah que tempos esses: Yves Montand, tão novo (como nós...) e a sombra do velho communard, Jean Baptiste Clément, autor feliz duma canção que ia atravessar os tempos, os dele e os nossos, como uma promessa, como uma bandeira vermelha, como um archote.
E Coimbra, e os nossos amigos, os amigos dos nossos amigos, e essa voz, de noite a sair dum gira-discos, rouca já de tão gasta a agulha, e a quente solidariedade que nos reunia ali, para cantar em tempos tão difíceis...
Cantávamos outras cerejas talvez:
Quem te pôs na orelha
Essas cerejas pastor?
São de cor vermelha
Vai pintá-las d’outra cor!
Essas cerejas pastor?
São de cor vermelha
Vai pintá-las d’outra cor!
António Mendes de Abreu, primeiro morto entre tantos que já contamos, tu que sabias todas as cantigas; Bartolomeu de Abreu Pereira o “sarraceno” minhoto transplantado para a praia de Buarcos, companheiro querido dos assaltos à ginjeira junto da casa da rua de S Pedro.
-Vamos às cerejas?
- Não são cerejas, são ginjas.
- São vermelhas á mesma.
- E boas - dizia o meu irmão, mais novo que nós um ano, tanto, uma criança!
- Olha os melros – desta feita era o tio Marcos com bonomia ao ver-nos empoleirados na ginjeira atafulhados de ginjas, o suco a escorrer pela gola da camisa, ai estes meninos!
Mais il est bien court
Le temps des cerises
A Crazy Grazy ao meu lado, à luz vermelha do por do sol que nos visita pela janela da cozinha come cerejas com uma determinação que anuncia o fim breve de uma inteira caixa. Caixa grande, entenda-se. Caixa que se veja, exige ela. À cautela como umas quantas. Se deixo para amanhã esta oportunidade, das cerejas nem a caixa vazia.Le temps des cerises
- Melros, tio Marcos? Venha cá, agora, e veja o que são melros!
A Crazy nem sabe o que estou a pensar enquanto continua metódica e friamente a dar-lhe forte e feio nas cerejas.
- Precisavam de mais uns dias - digo eu.
- Assim é que são boas. –responde. E zás! Mais uma mão de cerejas, para uma taça com água.
E Florença, há tantos anos, um mês de Maio, claro. E eu para a vendedora: -Comme se chiama questo?, - Ciliégia, sei straniero? Que estrangeiro que quê? Em Florença, somos todos florentinos, vendedora! Todos. Por isso vimos! Porque Dante, o palazzo della signoria, os jardins do outro lado do rio, tudo isso mais os quadros dos uffizi e a humilde pensão (hoje hotel de charme!!!) onde dormimos, "amantes sem dinheiro", são enquanto aqui estivermos tão nossos quanto teus. E lá fomos com uma mão de cerejas, com um quartilho de vinho direitos ao bairro de S Frediano onde habitávamos desde o primeiro romance de Pratolini. Alguém dirá: Pratolini quem é? E a isso, quem como nós, por um momento não for estrangeiro em Florença em mil novecentos e setenta e picos, responderá que Pratolini é, pelo menos nos nossos sonhos, e nas nossas leituras num pais de nevoeiro e chumbo, um escritor maior que o mundo.
E é isso que neste momento desejo para a Crazy Grazy. Que quando chegarmos a Florença ela se sinta, por um momento que seja, tão florentina como a vendedora de cerejas do largo da estação, a vendedora que lhe há-de vender uma medida de cerejas, apenas o necessário para passar o rio a caminho de S Frediano, dos jardins da minha longínqua juventude
j’aimerais toujours le temps des cerises.
Esta vai, como não podia deixar de ser, primeiro para a C.G., comedora de cerejas e depois para as/os consortes dos incursionistas que nos aturam humores, amores e outras manias.
Há no texto uma citação do meu querido amigo Eugénio de Andrade
No Porto, dia de St.ª Ciríaca, virgem
4 comentários:
Ah! Firenze! Que vos faça bem, porque Firenze é maior que Veneza. É maior que o mundo todo da arte, porque a maior parte dela está lá toda.
A nossa cultura ocidental repousa por lá, em catálogos vivos, tal como em Roma.
Bella Italia! Que vontade de partir!
E este verso que aí ficou precisa dos outros para completar o poema cantado.
"Só assim será poema; só assim será canção; só assim te vale a pena, passá-lo, de mão em mão".
Estas memórias do tempo de Prec em que se glorificava o comunismo que para bem de todos nunca chegou, para mim, assumiram o romantismo do tempo passado.
Não pela mensagem política imediata que sempre achei errada e por isso a combati, mas pelo idealismo do bem querer que não tem cor apegada a bandeiras.
Assim, a ouvir Fausto cantar o "Ó pastor que choras", uma das suas primeiras gravações, até me encanta o poema( de José Gomes Ferreira) que sugere outras metáforas que nada me dizem.
Tenho o single original, uma das primeiras gravações do cantor e que começa assim:
Ó pastor que choras
Teu rebanho onde está?
Deita as mágoas fora
Carneiros é o que mais há.
Uns de fino porte
Outros vis por desprazer
Mas carneiros todos´
COm fama de obedecer.
Quem te pôs na orelha
essas cerejas pastor
São da cor vermelha
Vai pintá-las de outra cor
Juro que escrevi de cor.
Devo dizer que adoro cerejas!!!
Mas esta coisa das cerejas tem os seus “perigos”...Ora, aproveitando a onda de poesia…vejamos este poema de Edgar Carneiro, inserido precisamente no livro "CEREJAS: POEMAS DE AMOR DE AUTORES PORTUGUESES CONTEMPORÂNEOS (edição da Câmara Municipal do Fundão):
Das cerejas
Eu lembro que eram doces.
E eram rubis de brinco
Nas orelhas
E serviam de troca
Boca a boca
No entretém guloso
Dos namoros.
............
Ora bem, só um exclarecimento: o pastor que choras vem já do MUD Juvenil, anos cinquenta, musicado, claro, por Lopes Graça. Cantava-se na Coimbra /e em Lisboa ou Porto) a plenos pulmões durante os sessentas.
É curioso ccomo uma certa emblemática da esquerda académica se perpetuou tanto inclusivamente em quem não se reclama dessa matriz ideologica. Não conheço (com pesar) a versão do Fausto que deve ser excelente. aliás por questões somente geracionais, o Fausto é o cantor que menos conheço. E novamente o digo: com pesar.
Meu caríssimo José:(Excelente e agradável memória! Parabens!) todo este texto é bem anterior aos tempos que recorda do PREC. Prec esse que, coitado, dá para tudo. Confesso que passei por ele e ele por mim sem grandes receios nem tolas alegrias. Para quem vivia fora de Lisboa e já tinha mais de 30 anos o papão do comunismo era só isso, um papão. Nunca me passou pela cabeça que ele conseguisse ganhar em Portugal. E pelo que agora vou lendo (as línguas desatam-se) nem sequer o PC acreditava na revolução popular. E de facto em 25 de novembro nem se mexeram. Nem ninguém mexeu com eles, sinal talvez de uam secreta aliança. Secreta e, à luz dos principios, espúria. Foi assim? Não foi? A gente, se viver, saberá.
Quanto ao nosso bispo in partibus muito folgo em o saber tão cerejeiro. E fique-se com esta: esse Edgar Carneiro que cita é pai do meu falecido e querido amigo Eduardo Guerra Carneiro, poeta exemplar. Obrigado por o trazer à baila.
Ora muito bem...A Poesia é um dos maiores tesouros que Portugal tem...
Enviar um comentário