21 maio 2006

Delírios (II)


Foi longa a noite, na sofrida ausência de ti. Um sono intermitente, o ouvido alerta à espera de um tímido toque na porta no meu delírio da tua chegada improvável. Apesar da chuva ténue e da noite vagamente fria, eu sentia uma calor estranho, suavam-me as mãos e eu empurrava a roupa da cama com os pés, e voltava a ter frio e procurava-a de novo, para me levantar outra vez, um sobressalto, e uma nova volta pela casa, e um frio intenso à varanda, e mais um cigarro. Liguei e desliguei a tv. E fumei mais um cigarro. E outro. E estranhamente sentia o teu cheiro, coisa inexplicável porque nunca aqui estiveste. Mas era o teu cheiro, tenho a certeza, o cheiro inconfundível de fera indomada.

Acordei cedo. Estranhamente cedo. Sabes?, eu só acordo cedo por dever, não sinto o prazer das manhãs doridas, porque as minhas manhãs são sempre doridas. Prefiro o bulício da cidade no fim do dia e prefiro o silêncio das noites, mesmo quando elas são de solidão, nos limites desta casa pequena que, porque é vazia, tantas vezes me parece enorme nos silêncios. É nas noites que se me apuram os sentidos. Que me encontro a cada desencontro. É nas noites que mentalmente elaboro, com um rigor quase demente, as coisas a que no dia seguinte dou forma no escritório, ainda que o rigor, aí, já não seja o mesmo, porque ritmo é brutal. Mas isso são coisas de mim que tu não sabes. E há tantas coisa de mim que tu não sabes...

E é por isso que, ainda mais, sinto a tua falta. Para te contar de mim o que tu não sabes. Gostava de te contar que a minha insónia não tem a ver com os tempos da boémia coimbrã. Nem com a minha violenta experiência como jornalista com a cabeça a prémio. Nem com as malfeitorias que me fizeram, os tiros de morteiro, que quase me trucidaram. Ou melhor: tem a ver com tudo isso. Mas não só. O problema é mesmo esta ansiedade maldita.

Olha. Não contes a ninguém, que é segredo. Mas ainda hoje não consigo dormir nas noites anteriores aos dias de julgamentos! Coloco em cima de mim uma enorme pressão. O medo de não conseguir fazer o melhor. Se um dia me vires num julgamento, não vais notar o distúrbio. Verás, apenas, um olhar desmesurado. A vivacidade que sobra da agitação que aprendi a controlar. As emoções à flor da pele. E, se continuares a olhar-me depois do julgamento acabado, acharás estranha a minha prostração, o infinito cansaço, o peso concentrado de todas noites de insónia. A incontornável necessidade de dormir meia hora antes de seguir viagem.

Há tantas coisas de mim que tu não sabes. E assim fico, outra vez, o ouvido atento, à espera do teu toque suave na porta. Noite após noite.

4 comentários:

C.M. disse...

Ouvidos atentos temos nós, fiéis leitores destes textos que o nosso Carteiro nos entrega já a noite vai avançada…sempre ao fim da noite aqui caem, no nosso colo, as suas impressões da vida dorida, da vida corrida…e onde nos revemos…

É caso para citar Ortega y Gasset, na “Rebelião das Massas”:

"A nossa vida, como repertório de possibilidades, é magnífica, exuberante (…). transbordou todos os caminhos (…). É mais vida que todas as vidas, e por isso mesmo mais problemática. Não pode orientar-se no pretérito. Tem de inventar o seu próprio destino."

O contexto é outro, mas nós damos-lhe a volta…

M.C.R. disse...

Gand'a carteiro!

Silvia Chueire disse...

Ah, o amor...

Beijos,
Silvia

Kamikaze (L.P.) disse...

Se o nosso carteiro entrega cartas destas quando esta bloqueado...

Parabens pela magnifica escrita, amigo!