21 maio 2006

Delírios


Estava ali, um filme violento, caído no sofá, preocupado com os dias que aí vêm, estupidamente calmo, o olhar absorto, um ligeiro calafrio, o silêncio de que preciso nestes dias agitados e lembrei-me de ti. Do teu ar selvagem e indomado, do teu olhar firme que nem sempre é firme. E imaginei um ligeiro toque na porta, uma insistência, o meu sobressalto, Quem será a esta hora?, e outro toque, um pouco mais insistente. E o levantar-me de um salto e o correr para a porta e abrir sem saber quem era e a porta a ranger como sempre range. E tu. Ali. Sem uma palavra. Apenas o olhar de fera indomada. Por uma vez insegura. Por outra vez insegura, transgressora que quase pede desculpa, as mãos que se torcem, incapazes. E eu. A mão na porta. Os olhos que sinto que exorbitam. E tu. Sem uma palavra. E eu. Sem uma palavra. Ambos sabemos que uma palavra é um crime. Um gesto, crime maior.
Nunca te vi tão selvagem. O cabelo desgrenhado. Nunca te vi tão bonita. Tão desajeitadamente bonita. Nunca me vi tão parvo. Petrificado. A minha mão na porta, ainda. As tuas mãos sem rumo. Abro um pouco mais a porta. Um silêncio que volta a ranger. E tu entras. E eu olho-te, desta vez de frente, e tu seguras o olhar. Desta vez de frente. Olhas o computador aberto, os montes de jornais, a tv quase calada, entras no meu mundo quieto, aquele que não conheces nem supunhas. Não perguntas. Eu não pergunto. Eu sei que estás apenas de passagem. Tu sabes que a passagem é curta. Passámos à clandestinidade. Não por mim, que aqui ficava toda a vida neste abraço, por fim. No teu colo. Em ti. Toda a vida.

2 comentários:

C.M. disse...

Chega-se ao fim deste magnífico texto sem fôlego!

É isso o Amor: querer ficar toda a vida num abraço, num determinado colo. Em alguém. Toda a vida.

Melhor definição de Amor, nem a de Camões...

M.C.R. disse...

Bem dizia eu: ele anda por aí, ele ronda...Magnifico!