12 maio 2006

diário político 21

Carrilho:que sensaboria!

para Rui Feijó, afectuosamente

Meu querido Amigo



Faço parte daquele já reduzido grupo que julga que nem tudo o que vem à rede é peixe. O mesmo é dizer que nem todos os assuntos convém a este nosso comércio epistolar.

Há acontecimentos, situações e pessoas que, pura e simplesmente, não se discutem porque dessa prática não só nada de útil acresce a qualquer de nós e, mais provavelmente, ao mundo mas também porque, relembrando os clássicos, de minimis non curat praetor.

Está nesse capítulo a estranhíssima figura do Dr. Manuel Maria Carrilho que exerce, nos tristes tempos que correm, de Ministro da Cultura. Porém V., com essa suave mas férrea determinação que a amizade e a idade perdoam, atenaza-me, provoca, enfim chama-me a terreiro como se eu tivesse obrigação de opinar sobre tão desastrada criatura.

Devo-Lhe demasiados favores para me manter por mais tempo calado e, de qualquer modo, o escândalo é ensurdecedor.

Ora pratiquemos, ainda que para tal seja mister manter o nariz fortemente apertado.

Eu, do referido cavalheiro, nada sabia ou, o que é o mesmo, recordo-me porque me avivaram a memória, de um rapazola com acne e buço que passeava nas luminosas tardes de Verão da Figueira, uns vagos livros debaixo do sovaco. Era o tempo em que nós outros, estouvados, abandonávamos a cultura pela sombra das raparigas em flor. Jesus que tempos... e que (castos, castíssimos, ahimé) costumes.

Nos intervalos politicáva-se contra o regime salazaresco, continuando, mesmo em férias, a mais nobre actividade coimbrã do tempo: combinavam-se listas para a “associação académica”, actividades político-culturais, pequenas conspiratas e maldizíamos da pide.

Depois foram os anos de chumbo e lume, os sessentas, as correrias diante da polícia, as prisões, o exílio para alguns, a tropa para outros e o medo e a esperança compartilhados. De tudo sabe V. que para além de nos ter precedido na “oposicrática”, no “reviralho”, na comissão de socorro aos presos políticos, tinha duas filhas debaixo do vulcão. E que companheiras foram. E que exemplos, limpos exemplos, de coragem foram...

Lembrar-se-á que, na madrugada do 25 A, arregimentados pelo José Afonso, corremos cidade e arredores, conspiradores pela primeira vez vitoriosos, numa missão que acabou por ser inócua dada a cadaverosa queda do regime, tão podre que estava. Nesses dias febris comentámos que em breve veríamos assomar ao exíguo cortejo de opositores uma multidão ululante protestando antiquíssima aversão ao deposto regime e muitas e gloriosas façanhas.

A sua filha Teresa e a minha então mulher Maria João sonhavam com o tempo dos condores enquanto nós, mais velhos e mais cínicos, arrenegávamos sobre a inevitável vitória dos urubus.

Os anos sucederam-se aos anos, V. quis-me a seu lado na aventura exaltante da instalação da Secretaria de Estado da Cultura nesta cidade e, quando as aflições financeiras da nossa pobre delegação nos permitiam um momento livre, retomávamos a conversa sobre a navegação caótica da res publica nacional. Assim conhecemos e comparámos diversos responsáveis políticos pela “cultura”, gastámos energia e papel sem conta para os convencer a ceder uma côdea que fosse do magro orçamento que lhes era atribuído para prosseguir modestíssimos objectivos aqui no Norte, ouvimos promessas a rodos e pudemos verificar que nunca, mas nunca, se cumpriram. Até dinheiro desembolsámos para honrar compromissos (V. mais ingénuo e menos pobre do que eu, foi credor, nesses anos de vergonha de somas importantes que adiantou ao Estado para que salários de trabalhadores modestos fossem pagos sem demasiado atraso...).

Todavia quem torto nasce, torto continua, pelo que lá fomos dando o voto ao PS, arriscando desde o primeiro dia o apoio a Soares (ainda recordo aquele dia em que só V., Sua Mulher e este seu criado esperavam o casal Soares para uma sessão da pré campanha...) e finalmente desembocámos logicamente nos “Estados Gerais”, mais propriamente no “conselho coordenador de cultura”.

Eu não me recordo (pelo menos nas primeiras sessões) de ver o Dr. Carrilho participar dos trabalhos. Também não admira que ainda era cedo para se saber se aquilo teria algum êxito. Aliás percebo perfeitamente que as pessoas usem destas cautelas: o mundo está pejado de ingénuos e é bem sabido que tais espécimes só servem para “compagnons de route”, para “inocentes úteis” ou, como me dizia uma militante furiosa e esquerdíssima antes do 25 A, como “massas” (“Então foi alguém preso”, perguntava-lhe eu, no meu papel de advogado de presos políticos. E ela: “Ninguém. Só massas”) .

Ponhamos que o Dr. Carrilho entendeu deixar às massas o trabalho de partir pedra dos primeiros tempos do conselho coordenador de cultura. Quando o Verão começou a adivinhar-se e a possibilidade de o PS vencer nas urnas, ei-lo que sai da clausura universitária e se mete no dernier metro dos trabalhos políticos. Mas, mesmo nessa altura, não me lembro de o ver nos plenários dos conselhos coordenadores: modéstia sem dúvida...Também o não vi na sessão solene dos EG mas isso dever-se-á ao facto de estando eu no palco (medonha sensação...) não conseguir descortinar quem se sentava na escuridão da plateia.

O Verão escorreu, ensombrado pela morte do Zé Valente, e as eleições trouxeram o PS de novo ao poder. Fui festejar a vitória para Paris, convicto que o futuro ministro da cultura seria o Dr. António Reis. Fora aliás assim, nessa qualidade, que o Eng. Guterres o apresentara num qualquer comício eleitoral e fora nessa putativa qualidade que ele, Reis, estivera ao leme do conselho na feitura do programa.

Em Paris, mais propriamente numa esplanadinha de St André des Arts, tratava eu da saúde a uma honrada ração de moules mariniére, quando avistei um jornalista do Expresso ajoujado de catálogos. Prestamente lhe ofereci lugar e almoço com a condição de me contar o que se passava na pátria longínqua. Fiquei a saber que se moviam influências fortes para que Reis não fosse coroado não só porque estava gasto mas também porque andava desaparecido e -last but not the least- tinha abandona esposa legítima por aluna mais nova e tenra!

O meu informante contava-me isto sem paixão e sem excesso embora deixasse entrever que o desaparecimento de Reis era relativo porquanto havia pelo menos uma direcção no Norte e um número de telefone para as urgências. Reis, mais tarde, confirmar-me-ia que assim tinha acontecido: acabadas as eleições fora de férias com a citada namorada mas precavido deixara rasto para o que desse e viesse. Estava, como os médicos, de chamada...

Alguém entretanto entendeu não encontrar Reis e, como diz o ditado le roi est mort vive le roi: faltando o efectivo chamaram um suplente. Calhou ser o Dr. Carrilho ainda que, também aqui, houvesse quem pensasse que deveria ser o Dr. Rui Vieira Nery a subir ao pódio. Dizem que contra o Dr. Nery se levantaram outros argumentos, uma qualquer capitis diminutio que só lhe permitiria ser Secretário de Estado.

É assim que se faz a história, como diria o Eduardo Guerra Carneiro.

O Dr. Nery, entretanto, convidou-me a representar (gratuitamente) o Estado na Administração do Coliseu e, propôs-me vir a fazer parte da futura direcção da Orquestra Nacional do Porto. Aceitei mas, nas escassas vezes que estive na Ajuda, comecei a aperceber-me das más relações entre ele e o ministro. As minhas desconfianças confirmaram-se num dia em que o secretário de Estado me asseverou que tudo o que os jornais diziam sobre aquela tempestuosa relação era falso. Por outro lado fui dando por mim a sentir-me pouco à vontade de cada vez que havia notícia de declarações do Dr. Carrilho. O estilo não me agradava, a empáfia muito menos e, mesmo quando tinha razão, o diabo da criatura, conseguia tornar-se arrogante.

Aproveitei o primeiro ensejo, bem pequeno na verdade, para comunicar ao Dr. Nery a minha desistência da futura “sinecura” orquestral e, na mesma passada, sair do Coliseu. Em boa hora retomei a minha (nunca perdida) liberdade. O Dr. Carrilho a propósito de um conflito menor no PS entendeu vergastar o Manuel Alegre, chamando-lhe qualquer coisa como fóssil. Lá mandei uma carta ao Alegre, a quem como bom soixant-huitard devo uma pipa de esperança pela Praça da Canção ( de que fui co-editor).

As tonitruâncias do senhor ministro continuaram num crescendo tão impetuoso quão grande fora o seu silêncio nos tempos em que o Alegre desafiava o regime. É que de Carrilho nos anos de chumbo ninguém tem notícia. Provavelmente acharia que não valia a pena arriscar o pescoço na oposicrática além do que ser político nesses temps feios poderia comprometer a carreira académica. E que seria da filosofia portuguesa se Carrilho tivesse que dar umas pobres lições no liceu em vez de dispensar as pérolas da sua sabedoria na universidade?

Os jornais, ávidos de carniça e de sangue, parangonavam Carrilho que, deslumbrado, se foi desmultiplicando em chalaças contra quem via a tiro de pederneira: foi Marcello, foi Pacheco Pereira, foi Graça Moura.

Todavia, algo de curioso sucedia com os alvos. Uma vez tocados pela zagunchada carrilhal, logo o caminho se lhes aplanava, choviam elogios, prémios literários, enfim uma cornucópia de coisas boas. A mim, que sou um desconhecido, um Zé Ninguém, convinha sobremaneira apanhar uma castanhada forte de Carrilho: talvez, por um escasso momento. me aparecessem parceiros para o bridge (vai por aí uma penúria negra deles) ou me calhasse o totoloto, ou a crítica desatasse a dizer bem daquele pobre livrinho que V. tão gentilmente apresentou vai para um ano.

Temo-me porém que, nesta ânsia de sucesso, me suceda o mesmo que a Camillo quando pretendia bengalear um atrevido: quando constou que se preparava para ensinar modos à criatura logo lhe atalharam o caminho dois ou três conspícuos cavalheiros que iam pelo mesmo e reclamavam prioridade no sacudir o pó da aventesma.

Já deve haver por aí uma dúzia de pessoas a preparar-se para ser alvo do fundibulário pelo que eu, longe e só, aqui no Porto já só terei vez para o século XXI.

O que se passou com o Dr. Artur Santos Silva é apenas um passo mais da rota desgarrada de Carrilho. Faltava-lhe um banqueiro, se possível do Norte, de famílias antigas e de pergaminhos mais ou menos oposicráticos. Mas aqui a coisa foi mais elaborada que a banca tem mais peso. Houve que atirar-lhe ao caminho com a canzoada do costume, com o insulto por terceiros, confundir Santos Silva com um Porto provinciano e parolo. Sobretudo houve o cuidado de deixar partir Gomes para o Governo onde obviamente estará mais peado (ele há solidariedades ministeriais...) e entalar Guterres que anda inebriado pelas internacionais e pelas cimeiras.

Não se pode negar a Carrilho esperteza no escolher o momento e ousadia quanto ao uso dos subsídio-dependentes. O tempo urge e todos têm medo de perder o comboio de 2001. E o comboio do poder. E aqueloutro de uma certa vilanagem pateta aos olhos de quem Carrilho é uma espécie de Beau Brumell, ainda que traduzido em viseense (de Viseu).

Não é a um mês da presidência europeia que se muda de ministro tanto mais que a este, já aquele cadáver viúvo de Mitterrand chamado Jack Lang tachou de melhor ministro da cultura da Europa. Se isso fosse verdade seria chegado o momento de um se naturalizar liberiano ou ugandês. Ou melhor: pedir passaporte para a Bechuanalândia e ir para lá comerciar em panos já que a escravatura, que terá feito a glória de Rimbaud, está definitivamente fora de moda.

Como eu!

Como V.!

Tenha muito boa tarde, cure essa gripe e, se espirrar à simples menção de Carrilho tome um purgante: essas coisas só tem um lugar por onde sair e convém que saiam. Depois é só carregar no autoclismo.

Seu, sempre


25 de Novembro, dia de Stª Catarina e aniversário da Tomada da Bastilha em Coimbra



Este texto de 2000 não se destinava à leitura geral mas a insistência do Dr Carrilho em fazer passar os outros, todos os outros, por tontos, revela que a criatura não se emenda.

1 comentário:

C.M. disse...

É este texto revelador de como se faz política neste Portugal da III República. São os interesses muito particulares que ditam a mesma.

O nosso MCR bem que escalpeliza tais vícios, através da “pequena” história que ele tão bem conhece…aliás, e noutra perspectiva, história essa bem deliciosa…

Impressionou-me imenso essa passagem da dita “militante furiosa e esquerdíssima antes do 25 A”, que revela o verdadeiro pensamento desses falsos utópicos, que consideram, afinal, os homens como mera ferramenta para os seus desígnios.

Gente dessa, não é demais afirmá-lo, foi precisamente aquela que construiu os “gulags”, todos os gulags”…: (“Então foi alguém preso”, perguntava-lhe eu, no meu papel de advogado de presos políticos. E ela: “Ninguém. Só massas”). Impressionante! E revelador! Cada vez mais vou ficando no meu reduto…irredutível!

Obrigado, Marcelo, pelos seus (reveladores) textos!

Eles são um testemunho muito importante para a compreensão de certos “fenómenos” da nossa sociedade…