De livreiros, de persistência, de amores antigos
Eu não queria, leitoras gentis, fazer desta série, um conjunto de historietas dispersas, sem rei nem roque, aos saltos pelas idades que vou ou fui vivendo. Mas que querem? O homem põe (ou será a galinha?) mas Deus dispõe. Estava eu a pensar relatar os meus primeiros “Vernes” e eis que a força das coisas (“la force des choses”, prima feminista, la force des choses...) me obriga a voar mais de cinquenta anos e chegar até hoje fins de Abril e à Rª Mártires da Liberdade, no Porto. Melhor: à Livraria Académica, rainha das livrarias alfarrabistas, prazer de bibliófilos viciosos, alegria de leitores mais pobres que aqui encontram sempre algo a que meter o dente por dez reis de mel coado.
Já alguém, por estas bandas bloguistas (muito provavelmente o José Carlos Pereira ou o Coutinho Ribeiro, meus amigos), escreveu sobre esta casa. E digo casa com plena consciência pois a “Académica” ficava a meio caminho entre o colégio Almeida Garrett (onde meu pai e eu penámos como internos) e a livraria Leitura, outra rainha, mas de livros novos e estrangeiros. Um peregrino leitor ia assim de cem em cem, ou duzentos em duzentos metros, de livraria em livraria até atingir carregado de compras o “Ceuta”, o “Avis” ou o Piolho. Dependia das rotas e dos amigos ou das namoradas que nos esperavam.
Que de livros terei comprado por estas bandas! Mas passemos adiante. Hoje venho falar-vos de um desses pequenos milagres a que nós incréus também temos direito. O sol quando nasce é (eventualmente) para todos. E aqui está.
Nos idos de sessenta, aportei á Coimbra de “lavados ares” para tirar um inútil curso de Direito e um mais interessante curso de vida. Prestamente comecei a frequentar gente sinistra, da sinistra, do reviralho, como então se chamava esta pequena tribo que ia sobrevivendo sob a mão pesada de Salazar. Leitores vorazes quase todos. E, noblesse oblige, leitores de tudo o que era proibido, mormente alguma literatura marxista, muita poesia, uns romances (entre eles sempre, “Os subterrâneos da liberdade” valente estucha perpetrada pelo Jorge Amado com quem apanhei uma das poucas borracheiras da minha vida, na saudosa republica dos “1000-y-onarius” sic) e um livro curiosíssimo chamado “Estes tempos tumultuosos”, (biografia de uma geração desesperada) de Pierre van Passen.
Li-o, emprestado possivelmente pelo João Quintela ou pelo José Luís Nunes, já não recordo. Seria dos meus dezoito anos, do ambiente vivido naqueles anos de brasa, do exotismo das paisagens, das situações, sei lá, o livro impressionou-me. E de tal modo que nunca me esqueci e dei a uma das minhas séries de croniquetas um título em homenagem a essa leitura juvenil.
Ora, hoje, resolvi demandar a Académica para tentar encontrar dois volumes da “Rumos do Mundo” que me faltam. Algum amigo do alheio, passou por eles, e achou-os a mais na minha estante. Conformado, por tantas razzias, efectuadas à minha biblioteca, e sabendo que livro desaparecido não volta por seu pé, lá fui ver se o Nuno Canavez tinha os livrinhos. Este Nuno é todo uma personagem: cinquenta anos de livreiro, uma voz tonitruante, trasmontano até dizer basta, sabe mais de livros do que uma inteira faculdade de letras. Graças a ele, a biblioteca de Mirandela tem um fundo de quatro ou cinco mil livros sobre Trás-Os-Montes, um conjunto precioso, de incalculável valor, que ele foi reunindo, pagando e oferecendo á terra que o viu nascer. Conversador nato e incorrigível, disfarça sob um vocabulário rico e vicentino uma gentileza fidalga e antiga.
Hoje, depois de ver frustrado o projecto de compra, nem o Nuno tinha os dois volumes que me faltavam!, e depois de me rir largos minutos com uma das suas histórias, perguntei-lhe por este livro, ou melhor por qualquer coisa com um nome semelhante, sem menção de autor, sem nada.
Acreditem ou não, o diabo do homem nem pestanejou. - Será o van Passen? -Isso!, bradei já com uma fezada que faria inveja a meia dúzia de peregrinos de Fátima. Num minuto, e estou a medir as minhas palavras, tinha o livro na mão, com um desconto de cinco euros sobre o preço marcado e levando de prenda os “dessins politiques” do Siné na colecção “libertés” da J. J. Pauvert. Como já o tinha foi a prima Maria Manuel que adora os anos sessenta que presume conhecer (mania inocente a dela...) como se ter entre seis e quinze naqueles anos fosse suficiente...
A história que vos trouxe, é, convenhamos, fracota, mas só quem não andou anos à procura de um livro é que a desdenhará inteiramente. Não é a primeira vez que depois de anos de procura, um livro me aparece. Há uns anos, alertado por um pedido da mesma prima procurei em vão “É assim que se faz a história” do Eduardo Guerra Carneiro, ausente em parte incerta depois de anos de leal e paciente presença na estante, sector “amigos poetas”. Corri ceca e meca por outro exemplar. Nem o Eduardo me conseguiu valer. Quando já me resignava eis que uma livreirinha gentil da Cotovia, mais hábil do que eu e mais andarilha mo encontrou sei lá onde. E teve o trabalho de me telefonar, de o guardar enquanto não fui por ele. Tudo por um livro pedido por um desconhecido ao telefone. Como nestas coisas convém haver pelo menos uma trindade, aqui vai a terceira história. Um tio meu, Marcos Viana, homem que sabia de literatura muito mais do que nós suspeitávamos, falou-me uma vez de um romance que o tocara muito. “O único romance surrealista” dizia ele. “Passage de l’homme” de Marius Grout, prémio Goncourt de 43. Munido desta recomendação eis-me, dez anos mais tarde, numa pequena livraria de segunda mão em Paris. Um Grout intocado durante vinte ou trinta anos riu-se para mim. Viemos juntos para a pátria madrasta. Queria mostrá-lo ao meu tio, para ele, o voltar a ler. Um amigo caviloso pediu-mo por dois dias e até hoje. Mais dez anos de procura, França de novo. Outra livraria, outro exemplar, novo regresso triunfal. E novo desaparecimento desta vez absolutamente misterioso. Entretanto o tio Marcos morreu. Por teimosia, e um pouco em sua memória, fui procurando o terceiro exemplar. Mas foi só com a internet e com a livraria chapitre.com. que obtive o meu actual exemplar. Em finais de 2000. Esta busca durou quase quarenta anos. Agora com o google descobri quase vinte mil referências ao Grout. Nasci demasiadamente cedo.
Nota que não tem nada a ver: o meu prezado Delfim fica avisado que a livraria Académica tem a “História de Portugal” do Matoso em belíssimo estado por mais ou menos 150 euros. Não chega a vinte por volume.
Também (tendo tudo) não tem nada a ver: da nossa leitora Manuela Espírito Santo anda por aí um livrinho recentíssimo: Por um quinto poder em defesa do novo cidadão (arca das letras ed.). Ora aqui está um texto lúcido que tem muito a ver com o que neste blog, volta e meia, vamos falando: a nova censura e os meios de a combater. Boa malha, Manuela! Venham mais!
6 comentários:
Caro M.C.R:
Estes livros dizem-lhe alguma coisa?
“Céu Aberto”, de Virgínia de Castro e Almeida; Campanha Alegre de Eça de Queiroz; A Morgadinha dos Canaviais e Os fidalgos da Casa Mourisca, de Júlio Dinis( a crítica a estas duas obras merecia um postal por inteiro); A Encruzilhadas de Deus, de José Régio; Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes; S. João subiu ao Trono, de Carlos Amaro; Soluções Positivas de Política Portuguesa, de Teófilo Braga; Calendário Privado, de Fernanda Botelho e , claro, Portugal Contemporâneo, de Oliveira Martins.
Caríssimo José: O segundo é uma bíblia para mim; os 3 e 4 são, a meu ver, duas espantosas descrições do Portugal fontista, bem mais documentais do que todos os outros escribas juntos. Régio Soeiro e O. Martins são leituras de toda a vida. Desconheço a Virginia e o Amaro e dou-me pouco com Teofilo (alias esse texto nem o li) a quem Antero chamou uma vez esgoto moral. A Fernanda Botelho é outro caso: li-a vai para mais de trinta anos e ando a pensar relê-la em tendo ocasião. Tenho dela uma ideia insegura de escritora sensível e inteligente.
O problema é a gulodice: se V visse a pilha mastodontica de livros para ler que aqui tenho...
O "Portugal Contemporâneo" de Oliveira Martins é uma obra indispensável...mas hoje, no circo, perdão, no círculo da política, quem a conhece?
Devo dizer, José, que sou um apaixonado por Júlio Dinis, e precisamente as obras que mais me tocaram e fizeram sonhar foi a Morgadinha e os Fidalgos...
Olhe, gostaria, quando tiver um pouco de tempo, talvez para as férias ( que vão ser poucas) de fazer esse postalinho...sem quaisquer pretensões intelectuais ou literárias obviamente...dar-me-ia um grande gosto...a ver vamos...
Marcelo amigo: Vexa faz cada descoberta!
Acha que vale a pena a obra? Rectius: a obra vale por si, mas...bem, se o meu amigo diz que está em boas condições...qual será o ano da edição? Estado Novo, meu amigo, Estado Novo...
A Académica reserva a um lisboeta?
Estou como o Marcelo: é uma comoção quando, numa livraria, tocamos um livro velho de anos e anos, para ali esquecido, mas intocado! Estava à nossa espera!
Meu caro DLM a obra está em "estado novo" dos mesmos novos e não remendada como o "outro". Diz quem sabe, o famoso historiador JCP, e eu apoio, que o Matoso fez a melhor história de Portugal dos últimos setenta ou oitenta anos. O homem foi padre ou frade, beneditino julgo, mas isso nihil obstat à qualidade. A edição que vi pareceu-me ser a da Editorial Estampa. De qualquer modo é a HP mais vendida dos últimas duas décadas!
Marcelo: acredito.
Vou fazer as minhas diligências...temos de acreditar também nos historiadores, não é verdade?
E obrigado pela dica.
Se eu precisar, contacto consigo...
É isso que me anima a estar sempre por aqui ( entre outras coisas, claro). Os textos, a liberdade de dizer o que se pensa, mesmo que tenha um tom intimista. É bom, muito bom ver como você, MCR, faz a conexão entre a reminiscência e o presente, sem solução de continuidade.Gostei deste texto.
É bom saber do amor de vocês pelos livros, coisa que venho sabendo desde o início, mas que dá gosto saber novamente e novamente.
Um dia vocês deviam vir ao Brasil conhecer os nossos alfarrabistas. :)
Abraços,
Silvia
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