04 junho 2006

Estes dias que passam 28

O homem diante do tanque

Foi em directo, ou quase que o vimos. De pé, magro e nem sequer demasiado alto, com qualquer coisa numa mão, uma pasta, um embrulho pobre, um casaco dobrado. E em frente dele o tanque. Um tanque igual a tantos outros, os tanques são, de facto, todos iguais. Iguais e inúteis, a menos que numa facciosa lista de utilidades, figure a de matar, a de esmagar, a de destruir. Gente há, e nesse grupo, ocupo um modesto lugar, que afirma que a única utilidade dos tanques é a possibilidade de serem destruídos. Ou de serem domesticados.
E esse milagre ocorreu aí, em Tien An Men, há dezassete anos. Um homem de calças escuras e camisa branca, como em Espanha diante de um touro. Sem capa nem espada. Sem traje de luces, nem cuadrilla. Sem público.
Esperou o tanque a pé firme. E o tanque desviou-se. Voltou à frente do tanque e de novo o citou. E o tanque desviou-se. E terceira e quarta vez.
E o tanque sempre a desviar-se.
E o homem de pé, direito como um vime. Com umas calças escuras que não pareciam novas, e uma camisa branca.
Ele e a sua coragem. Ele e seu exemplo. Ele e a sua mensagem a um público que não ouvia, que não gritou olé nem o podia fazer sair em ombros pela Puerta del Príncipe.
Depois, tranquilamente, saiu da objectiva das cameras de televisão e mergulhou no anonimato. Onde está?
Dezassete anos, já. Quantos morreram?
Celebremos a memória de esse homem de calça preta e camisa branca. Não o esqueçamos. Tão-pouco poderemos esquecer os homens que o tanque transportava, que o comandavam. Atrás daquele sujo aspecto de aço e guerra havia homens incapazes de matar. Celebremos a sua coragem. Porque se o homem de calças negras e camisa branca se perdeu no meio da noite e do sangue, o número do tanque aparece bem claro e nítido. E atrás de um número há-de haver uma tripulação. Que se recusou a matar. Que ousou desobedecer.
E uma vez mais, como em Espanha, celebremos o toureiro e o touro.

Feito por mcr que detesta touradas mas estima a coragem. às 8 horas da noite de 3 de Junho de 2006

5 comentários:

C.M. disse...

HÁ SEMPRE ALGUÉM QUE DIZ: NÃO!!

M.C.R. disse...

É bem verdade mas a imagem deste chinês enfrentando o tanque é das coisas mais poderosas que vi. E dezassete anos depois ao pensar nisso, lembrei-me subitamente da tripulação do tanque. E da solidariedade. E da honra. E do risco que eles assumiram. E do facto de ninguém - que eu saiba - ter homenageado esses homens que seguramente puderam ser identificados e mais seguramente ainda foram punidos por traição.
É claro que eu sou apenas eu, e este blogue uma garrafa deitada a um duvidoso mar onde não serão muitos os marinheiros... mas antes isto do que permanecer calado.

Silvia Chueire disse...

Quebeleza de texto, MCR. Uma homenagem merecida. Ao homem e à atitude.

Abraços,

Silvia

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Um abraço para si, MCR, e para os corajosos chineses que evocou.

o sibilo da serpente disse...

Há momentos - alguns muito mais simples do que este - que nos ficam para sempre na retina. O que invoca, é, de facto, uma grande imagem.