29 julho 2006

Conto de uma mulher


Por várias vezes tentou escrever o texto, outro texto, palavras outras. Por muitas vezes saiu da frente do computador e foi sentar-se na poltrona da sala, buscando a forma, o conteúdo do texto que precisava escrever.Algo leve, passageiro. Sabia de uma espécie de ansiedade que a invadia, como se tivesse um compromisso com a escrita. Um compromisso interno, externo, já não conseguia definir bem. Sabia que as fontes para escrever o poema, a prosa, são muitas. Todas ao alcance da mão, da mente. Ao alcance do olhar.
No entanto, apesar disso, apagou todas as vezes o que ia rascunhando.

Não é isso, não é isso, murmurava consigo mesma. Nada sobre o oceano ou a tarde linda lá fora. Nem sobre os flamboyants colorindo o caminho de um vermelho peculiar. Sempre e tudo lugares comuns.E sentava-se novamente em frente à tela branca. As mãos dele por entre a sua blusa e a pele, descendo-lhe pelo corpo, lentamente. Tocando-lhe os seios. A boca na sua nuca. O frisson. Sacudia a cabeça para afastar a memória. E recomeçava a escrever: era uma tarde vazia, a rua...

As palavras dele ao seu ouvido: amo-te, nunca saberás quanto. As palavras dele entrando-lhe pelo peito, gravadas nela. És minha, entendes? Só minha, sabes disso. E segurava-lhe os braços, a carne, abraçava-a com força. O tom trêmulo da voz dele correspondendo ao estremecer dela, à sensação de alguma coisa líquida descendo-lhe pelo corpo, de frio na espinha. O desejo invasivo e uma ternura que nunca sentira. A boca oferecida ao beijo enquanto pendia a cabeça para trás. As palavras dele. És meu amor definitivo, sabes? Nunca mais te deixarei ir. Amo-te, amo-te, amo-te. Para sempre. E ela acreditava. Acreditava e sabia.


Levantou-se e foi à cozinha beber um suco, um café, uma qualquer coisa. Precisava escrever e não queria escrever memórias. Memórias de um tempo há muito passado. Memórias pregadas em si, impressas na sua história. Precisava ver-se livre da memória da paixão, do amor. Ao menos desta intensidade. Precisava reorganizar-se. Era uma mulher que amava a vida, uma mulher apaixonada, e queria de volta a disponibilidade afetiva que um dia tivera. Não queria esquecer a história, o privilégio de a ter vivido, mas apagá-la um tanto. Descer sobre ela véus, fumaça. Nada parecia atenuar essas lembranças nítidas.

Passou pela cozinha e ligou a televisão. A lembrança dele não a deixava. O abraço por trás enquanto faziam qualquer tarefa na cozinha. As mãos nos seus quadris, nas coxas levantando o vestido. Meu amor, amo-te. Nunca esperara por isto. Os corpos fundidos. O desejo dele, fúria e suavidade. As palavras dele. Nunca pensei que amaria novamente, nem que pudesse amar assim. Nunca amei como te amo. Nunca pensei que amaria as tuas palavras. Encantas-me. Fascinas-me. Quero-te minha. Quero-te, sem limites. E ela o amava, sem limites .Os dois conversando depois do amor, a intimidade repartida à meia luz. As pernas, os corpos, plenamente acomodados um no outro, encaixados como peças de um puzzle. Descansados. Sem incômodos. Risos e atenção, carinho. Os livros, os poemas lidos, a música compartida.

Desisto! Escreveu na tela. Desisto. Respirou fundo, rendida.

O ar ou a dor a entrar-lhe no peito.Vencida a resistência, sentou-se na cadeira a chorar um choro manso. A mulher que não esperava mais. Que voara vôos inesperados. Que o amara porque era livre com ele. Que saltara para um abismo de dúvidas sem hesitar. Que o tivera nos braços chorando, o corpo enroscado no dela. Que o tivera em si, perdidos os dois na surpresa de serem um só. Que se perguntara todos os dias porquê. Que construiu todas as hipóteses possíveis. Que conversava todos os dias consigo mesma como se conversasse com ele. Que sabia ser aquele o último amor de sua vida, mas que ainda se dispunha a amar. Que dorme com esses paradoxos. Que ora a um deus – ela que não crê - pela anestesia. Que chora muito baixo para que ninguém perceba e o homem não sinta, apesar da distância, suas lágrimas.


Sentada a mastigar, pedaço a pedaço, o silêncio.


Silvia Chueire

5 comentários:

o sibilo da serpente disse...

Olá, Silvia. Bonitas recordações, doridas, parecem. Mas vale o texto,

Silvia Chueire disse...

Mas,carteiro, não são recordações. É um conto. : )
Obrigada,

Silvia

M.C.R. disse...

Belo texto. Mais diria mas hoje não, anda demasiado sangue no ar.

Silvia Chueire disse...

MCR,

É verdade vc tinha razão.

Nicodemus,

Mudando então de assunto . Só posso marcar a data em torno de 15/08. Mas devo ir na segunda quinzena de setembro.

Abraços,

Silvia

Cleopatra disse...

A intensidade do texto tem nada mais, nada menos, que a força, a verdade, a intensidade do sentir.

Poucos escrevem, ou Têm, a coragem de escrever assim.