12 julho 2006

Sur le Pont d'Avignon

Isto é só um telegrama, um foguete de posição, uma bandeira feita com uma camisa de quadrados, um sinal: abriu o Festival de Avignon, o mais importante certame de teatro do mundo.
Sessenta anos, já. Sessenta anos depois de Jean Vilar, esse mesmo, o do Théatre National Populaire, o teatro de Gérard Philippe, ter resolvido fazer um festival descentralizado, livre, experimental, onde o público pudesse encontrar actores, encenadores, criadores.
Há um bom par de anos, convenci - um milagre dos mais extrordinários - o meu amigo Cenourinha a passar um par de dias em Avignon, durante o festival. O milagre era fazer o Cenourinha entrar numa sala de teatro, logo ele que só jurava pela sétima arte, o diabo da criatura sabia tudo, tratava o Griffith, ou o seu fantasma, por tu, sabia mais de Heddy Lamarr do que ela própria, já conseguira infiltrar-se numa festa dos Oscares, sabia o nome de todas as ruas de Hollywood, era amigo (!!!) do Kurosawa, tu cá tu lá com a malta dos "cahiers du cinema" fizera figuração num par de filmes italianos, à borla só por amor à arte, enfim só lhe faltava pôr-se atrás de uma máquina de filmar. "Livra, Oliveirinha, livra, tu tás é maluco, eu sou um espectador, um crítico in immo pectore, um projeccionista - era verdade: fora durante quinze dias projeccionista no velho Condes em Lisboa - tudo o que quiseres mas realizador nunca.
O Cenoura esqueecia-se, modestamente, de falar numa actrizinha alemã, bem engraçada, com quem vivera uns tempestuosos meses durante uma produção ítalo-alemã (a pequena fora depois pescada por um produtor que não teria a juventude do meu amigo mas em troca podia comprar uma cadeia inteira de cinemas...). A vida nem sempre é como o cinema. Aqui para nós o Cenoura até nem se importara especialmente, andava de olho numa técnica de montagem, se é que já não andaria bem mais perto...
O teatro é século XIX, prosseguia a cenoural criatura (a propósito a malta chamava-lhe cenoura não porque ele fosse ruivo longe disso, mas tão só porque em tempos namorara uma geitosa que tinha uma cara igual á do coelho "Bug's Bunny" com dois dentes iguais, iguais, iguais e que se pendurava na orelha do meu cinéfilo amigo e lhe dava dentadas que pareciam convites para cama com docel e tudo... Vai daí, como o coelho malandro dos desenhos animados andava sempre a roer uma cenoura... a rapaziada, em dia pouco inspirado, já com umas cervejotas a mais (muitas cervejotas, um hectolitro delas...) deu em chamá-lo "cenourinha" da*** (não vou dizer o nome da pobre rapariga, que diabo! Um cavalheiro é um cavalheiro! Mas se virem por aí uma senhora dos seus sessenta, com dois incisivos desmesurados a trincar uma orelha ou apenas um palmiere perguntem-lhe se passou por coimbra nos sessenta e se conheceu um "cenoura" com manias cinematográficas. se ela não vos der um tiro nem chamar nomes à vossa família, desistam, é outra e recomecem a procurar.
Bom, voltemos ao Cenoura. Com a promessa de irmos depois a Cannes para ver o palácio do festival lá o convenci a ir até á cidade dos anti-papas. Naquele tempo ainda se podia ir assim de um momento para o outro, aldrabar um bocado as pessoas da organização, somos dois portugueses exilados na Suécia (convinha ser exilado, mas de longe, nunca de Paris, para não termos de explicar porque é que não podíamos comprar bilhetes) .
Já nem me lembro do que vimos mas garanto que logo no primeiro dia foi um fartote de comoções. Ao segundo, apanhámos um ballet do Béjart, uma troupe americana (não, não era o living theatre que também o vi mas não lá eram outros igualmente bons, igualmente anárquicos, igualmente comunitários.) alguem aí da audiencia murmura: deve ser o Bread and Puppet... Também não, leitora gentil, também não, eu é que já nem consigo lembrar essa intensa comoção, ou melhor o nome daquela gente, que da comoção lembro-me sobremaneira. ..Mas deixemos a leitora ás voltas com o teatro americano e passemos ao concreto: então não querem lá ver que o Cenoura à noite, alta, altíssima noite, diante duma caneca de cerveja e duma sanduiche de paté com meio metro me diz: Oliveirinha a malta podia ficar cá mais uns dias, que isto promete. Com o espanto até ia entornando a minha caneca que estava ainda a meio. Porra, Cenoura não me faças isto que a cerveja cá custa um balúrdio, pá. E por pouco que não me engasgava pá vê lá o que dizes. Tás doente? O paté faz-te azia, salmonelas ou é só a cabeça que te doi?
Mas o Cenoura impertérrito grantiu-me que tinha mais saude do que o John Wayne e que achava que devíamos fazer mais uns dias de Festival.
Convém dizer que nem sempre estávamos juntos, por vezes um de nós pirava-se para um dos espectáculos off ou ia assistir a um debate pelo que normalmente só nos encontravamos para um jantar económico ou num bistro aberto dia e noite onde por poucos francos podíamos beber umas e outras.
Ao quarto dia o Cenoura desancou-me com uma impressionante fiada de citações teatrais, nomes de pequenas companhias e mais balivérnia teatral. Eu, nem acreditava nos meus ouvidos... Até que, (e aqui façam um fundido e encadeado cinematográfico, se é que sabem o que isso é) o Cenoura foi por mim avistado ao lado duma morena bem morena, moreníssima, dessas que fazem parar os comboios quando não os descarrilam pura e simplesmente. Cenoura!, uivei no mais puro estado de catatónica admiração. Majestoso o cinéfilo reconvertido em amateur teatral permitiu-me a aproximação, embora não a abordagem, que a minha nacionalidade lusitana devia e queria fazer. Para abreviar apresentou-me uma actriz secundária duma troupe espanhola, uma pequena vinda da Córdova califal que, num primeiro encontro com o Cenoura, o ouvira falar de cinema com tal convicção que não resistira à pergunta fatal: é crítico? que não, que não... Actor? Upa, upa! realizador? Desdém com boca entornada. Produtor? Aí o Cenoura tomou um ar grave, e deixou cair esta: V. é perspicaz, mas não espalhe que eu vim cá com o meu secretário (estão a ver quem, claro...) para tentar arranjar gente para o próximo filme com o *** ( o produtor gatuno de actrizes engatadas pelo Cenoura). E é até melhor falarmos só de teatro e nunca de cinema, que a concorrência é feroz, as inimizades muitas e o dinheiro em jogo atinge montantes faraónicos.
Ficámos até ao fim do festival, tive de emprestar dinheiro para um quarto escondido dum hotel no campo de Avignon (ai esta necessidade de passar despercebido..., lamentava-se o Cenoura. Não faz mal respondia a bela andaluza, espreguiçando-se na cama que partilhavam - temos tempo de ir para um palace depois das filmagens... ).
Temendo desenvolvimentos perigosos, dei á sola mal o festival terminou deixando um recado lacónico ao Cenoura que entreatanto partiu para Córdova com a troupe e só apreceu temps depois, com ar de gato que comeu o canário. Sobre essa ausência manteve o laconismo de um verdadeiro cavalheiro pelo que a história acaba aqui.

sur le pont d'avignon
on y danse, on y danse,
sur le pont d'Avignon
on y dance tout en rond.

d'Oliveira fez, e dedica esta a Rui do Carmo pelas razões que ele sabe.

1 comentário:

Silvia Chueire disse...

Deliciosa crônica !