Variações sobre o Verão
O canal Arte passa um filme , melhor dito um western de Richard Fleischer com Robert Mitchum: Bandido ou Bandido Caballero, no original. Já não é o oeste americano mas o México insurrecto. Claro que Mitchum há-de tomar o partido dos zapatistas ou villistas, contra a tropa fandanga que explora a terra miserável. Não tem nada a ver com A Quadrilha Selvagem (The wild Bunch) ou com Os Sete Magníficos. Tem graça que de repente apareceram uns filmes ambientados no México que aparte o facto de terem sempre um yankee como principal figura, já não maltratam os mexicanos. Que eu ainda sou do tempo em que mexicano em western ou era patife ou um serviçal falando uma misturada de espanhol e inglês (Take care, señor! There are many bandidos near the frontera) Até Ford, o Magnífico menosprezou os latinos!
Que recordações entretanto me assaltam. Durante a minha estadia em Lourenço Marques tinha um grupo de amigos com quem ia sempre ao cinema. O nosso dinheiro era escasso de modo que caíamos sempre no Scala um cinema de reprises que tinha a vantagem de só passar filmes de acção e, antes do filme principal, passava um episódio de longuíssimas séries que eram o encanto da malta. Aquilo valia tudo: morria aliás tanta gente por episódio que uma vez fizeram-se as contas da série chamada O Barco Misterioso (um desses vapores de rodas carregado de jogadores, aristocratas do sul cantoras fatais, meninas de saias rodadas e o herói) Eu não sei se terá sido o Magalhães quem teve a ideia de contar os mortos no barco. Mas deve ter sido ele apesar de, no dizer do Dr. Brito, o Magalhães ser a viva personificação da negação da matemática. O caso é que em dois meses a quatro sessões semanais tinham morrido cerca de trezentas pessoas, por quedas ao rio, emaranhados nas fatais rodas, tiros no salão de jogo, facadas em recantos obscuros das cobertas, setas de índios (em pleno Mississipi!!!) para já não falar nos que eram arrebatados por crocodilos de uma espécie que devia ser voadora. Entretanto o barco também conhecia crises próprias, incêndios, caldeira a explodir, agua nos porões, rochas submersas, encalhamentos. Enfim: diversão pura que era ainda mais pura porque o fim de cada episódio nos deixava num suspense horrível e titânico que só passava com o início do episódio seguinte onde afinal a tremenda tragédia se desfazia num par de mortos e num salvamento de última hora.
E depois da série vinha o filme propriamente dito: western, claro, western baratucho, de pacotilha, muito tiro, muito cavalo, pouco sexo, que a América que produzia estes filmes era quase tão puritana quanto o Bush actual. Só que os filmes eram menos perigosos que este cavalheiro. Ao fim de hora e meia a sala iluminava e nós saíamos para um mundo real, colonial a preto branco e mais um par de cores que apesar de tudo era bem melhor que o Iraque actual para já não falar de Beirute. Mas deixemos a actual situação e continuemos nos filmes. De vez em quando para variar apareciam comedias italianas, desde as do Dino Risi até outras menos elaboradas mas que a rapaziada preferia (aos 13, 14 ou 15 anos não se pode ser propriamente um cinéfilo!…): filmes de praia, italianas de fazer parar o transito e uns parolos a tentar cortejá-las. Claro que os cretinos levavam sopa porque entretanto aparecia o verdadeiro galã, pobre mas honrado, e convertia aquele absoluto desparrame de mulher ás virtudes do amor puro, simples e pobre. E a fita acabava com o parvalhão cornudo a olhar para o carro enquanto a bela e o sedutor partiam numa vespa ou numa lambretta, ela bem agarradinha ao condutor, ou pelo menos tão agarrada quanto o permitia a sua anatomia transbordante.
Doutras vezes eram os policiais franceses (Eddie Constantine na pele do agente especial Lemmy Caution, falando um francês absolutamente britânico). Murros, mulheres fatais em negligés vaporosos, gangsters de pacotilha, aventuras com um ligeiríssimo fundo politico.
A Inglaterra anunciava-se sob as cores tolas da série Carry on. Umas comedias que hoje não consigo perceber mas que na época me faziam rir a bandeiras despregadas. Quase tanto como os filmes de Cantinflas, o mexicano magnífico esse actor genial que se chamava Mario Moreno. Tão bom quanto o grandíssimo Totó, falso – mas verdadeiro!, para todos quantos o viram - príncipe Curtis, napolitano universal que só a burrice actual e a miséria cinéfila triunfante (as duas sobrepõem-se) ainda não souberam render a devida homenagem. E não esqueçamos Fernandel esse francês do sul que anunciou outros cómicos posteriores. De todo o modo nesse tempo os cinemas enchiam-se e não se falava de crise. Se calhar era porque o cinema não era monocolor e mono-nacional. Eu que tenho o cinema americano em alta estima desconfio que irá também ele ser vítima do seu êxito. Sem a concorrência europeia o cinema americano estiola e repete-se. Mas deixemos isso, essa metáfora da politica actual, porque estamos no Verão e eu estou aqui para falar de férias e de prazeres simples. E de filmes alemães que também havia. Deixo para os dias outonais o sublime Murnau (cujo nome relembra a vila onde terá crescido e onde os expressionistas se reuniam à sombra da bela Gabrielle Muntner e venho relembrar a lindíssima Maria Schell (ai que paixão !!!) e a Romy Schneider da série Sissi. Claro que vi os filmes da Sissi, quanto mais não fosse porque as namoradinhas não falhavam. Aliás vi quase todos os filmes da Schneider e chorei gordas lágrimas quando morreu, vitima ela também do cinema, da vida, do amor. Quem teve a paciência de aqui chegar, junte-se a mim num comovido pensamento pela bela Romy.
Mas a que vem tudo isto, esta ladainha choramingona de um tempo definitivamente passado e de um cinema que falava línguas variadas mas tinha uma única gramática e um público ávido e inocente? Vem que estamos no Verão, companheiros e amigas, na estação em que, como um editorialista pateta de um jornal de referencia assevera com espanto, se desencadearam guerras. A criatura parece não perceber que ninguém iniciava uma ofensiva quando chovia, nevava, havia lama e os caminhos estavam intransitáveis. Alem do que o Verão propiciava saques de alimentos, de trigo, que o inverno áspero não permitia. Mas deixemos isso, que hoje não vim aqui fazer política. Vim apenas lembrar prazeres simples, leituras leves, momentos de descanso, que a vida também é isso. E dizer-vos até daqui umas duas ou três semanas, que eu vou para férias. Já tenho uma pilha de policiais, alguns dvd de comedias antigas, dois ou três livros mais substanciosos. Quem quiser que apareça entre as dez e a uma (portuguesas) na praia de Areas, mesmo à sombra de um pequeno restaurante A Postiña. Procurem um cavalheiro infamemente gordo, moreno, barba branca e curta, debaixo de um guarda sol, de livro em punho e El País ao lado. Terei muito gosto em vos pagar uma caña . O Verão também é isso. E carreguem as baterias para os tempos que se avizinham.
Vosso, mas muito veraneante - só faltam três dias! - d'Oliveira
Que recordações entretanto me assaltam. Durante a minha estadia em Lourenço Marques tinha um grupo de amigos com quem ia sempre ao cinema. O nosso dinheiro era escasso de modo que caíamos sempre no Scala um cinema de reprises que tinha a vantagem de só passar filmes de acção e, antes do filme principal, passava um episódio de longuíssimas séries que eram o encanto da malta. Aquilo valia tudo: morria aliás tanta gente por episódio que uma vez fizeram-se as contas da série chamada O Barco Misterioso (um desses vapores de rodas carregado de jogadores, aristocratas do sul cantoras fatais, meninas de saias rodadas e o herói) Eu não sei se terá sido o Magalhães quem teve a ideia de contar os mortos no barco. Mas deve ter sido ele apesar de, no dizer do Dr. Brito, o Magalhães ser a viva personificação da negação da matemática. O caso é que em dois meses a quatro sessões semanais tinham morrido cerca de trezentas pessoas, por quedas ao rio, emaranhados nas fatais rodas, tiros no salão de jogo, facadas em recantos obscuros das cobertas, setas de índios (em pleno Mississipi!!!) para já não falar nos que eram arrebatados por crocodilos de uma espécie que devia ser voadora. Entretanto o barco também conhecia crises próprias, incêndios, caldeira a explodir, agua nos porões, rochas submersas, encalhamentos. Enfim: diversão pura que era ainda mais pura porque o fim de cada episódio nos deixava num suspense horrível e titânico que só passava com o início do episódio seguinte onde afinal a tremenda tragédia se desfazia num par de mortos e num salvamento de última hora.
E depois da série vinha o filme propriamente dito: western, claro, western baratucho, de pacotilha, muito tiro, muito cavalo, pouco sexo, que a América que produzia estes filmes era quase tão puritana quanto o Bush actual. Só que os filmes eram menos perigosos que este cavalheiro. Ao fim de hora e meia a sala iluminava e nós saíamos para um mundo real, colonial a preto branco e mais um par de cores que apesar de tudo era bem melhor que o Iraque actual para já não falar de Beirute. Mas deixemos a actual situação e continuemos nos filmes. De vez em quando para variar apareciam comedias italianas, desde as do Dino Risi até outras menos elaboradas mas que a rapaziada preferia (aos 13, 14 ou 15 anos não se pode ser propriamente um cinéfilo!…): filmes de praia, italianas de fazer parar o transito e uns parolos a tentar cortejá-las. Claro que os cretinos levavam sopa porque entretanto aparecia o verdadeiro galã, pobre mas honrado, e convertia aquele absoluto desparrame de mulher ás virtudes do amor puro, simples e pobre. E a fita acabava com o parvalhão cornudo a olhar para o carro enquanto a bela e o sedutor partiam numa vespa ou numa lambretta, ela bem agarradinha ao condutor, ou pelo menos tão agarrada quanto o permitia a sua anatomia transbordante.
Doutras vezes eram os policiais franceses (Eddie Constantine na pele do agente especial Lemmy Caution, falando um francês absolutamente britânico). Murros, mulheres fatais em negligés vaporosos, gangsters de pacotilha, aventuras com um ligeiríssimo fundo politico.
A Inglaterra anunciava-se sob as cores tolas da série Carry on. Umas comedias que hoje não consigo perceber mas que na época me faziam rir a bandeiras despregadas. Quase tanto como os filmes de Cantinflas, o mexicano magnífico esse actor genial que se chamava Mario Moreno. Tão bom quanto o grandíssimo Totó, falso – mas verdadeiro!, para todos quantos o viram - príncipe Curtis, napolitano universal que só a burrice actual e a miséria cinéfila triunfante (as duas sobrepõem-se) ainda não souberam render a devida homenagem. E não esqueçamos Fernandel esse francês do sul que anunciou outros cómicos posteriores. De todo o modo nesse tempo os cinemas enchiam-se e não se falava de crise. Se calhar era porque o cinema não era monocolor e mono-nacional. Eu que tenho o cinema americano em alta estima desconfio que irá também ele ser vítima do seu êxito. Sem a concorrência europeia o cinema americano estiola e repete-se. Mas deixemos isso, essa metáfora da politica actual, porque estamos no Verão e eu estou aqui para falar de férias e de prazeres simples. E de filmes alemães que também havia. Deixo para os dias outonais o sublime Murnau (cujo nome relembra a vila onde terá crescido e onde os expressionistas se reuniam à sombra da bela Gabrielle Muntner e venho relembrar a lindíssima Maria Schell (ai que paixão !!!) e a Romy Schneider da série Sissi. Claro que vi os filmes da Sissi, quanto mais não fosse porque as namoradinhas não falhavam. Aliás vi quase todos os filmes da Schneider e chorei gordas lágrimas quando morreu, vitima ela também do cinema, da vida, do amor. Quem teve a paciência de aqui chegar, junte-se a mim num comovido pensamento pela bela Romy.
Mas a que vem tudo isto, esta ladainha choramingona de um tempo definitivamente passado e de um cinema que falava línguas variadas mas tinha uma única gramática e um público ávido e inocente? Vem que estamos no Verão, companheiros e amigas, na estação em que, como um editorialista pateta de um jornal de referencia assevera com espanto, se desencadearam guerras. A criatura parece não perceber que ninguém iniciava uma ofensiva quando chovia, nevava, havia lama e os caminhos estavam intransitáveis. Alem do que o Verão propiciava saques de alimentos, de trigo, que o inverno áspero não permitia. Mas deixemos isso, que hoje não vim aqui fazer política. Vim apenas lembrar prazeres simples, leituras leves, momentos de descanso, que a vida também é isso. E dizer-vos até daqui umas duas ou três semanas, que eu vou para férias. Já tenho uma pilha de policiais, alguns dvd de comedias antigas, dois ou três livros mais substanciosos. Quem quiser que apareça entre as dez e a uma (portuguesas) na praia de Areas, mesmo à sombra de um pequeno restaurante A Postiña. Procurem um cavalheiro infamemente gordo, moreno, barba branca e curta, debaixo de um guarda sol, de livro em punho e El País ao lado. Terei muito gosto em vos pagar uma caña . O Verão também é isso. E carreguem as baterias para os tempos que se avizinham.
Vosso, mas muito veraneante - só faltam três dias! - d'Oliveira
3 comentários:
Gostei. Muito!
A você também desejo boas férias, claro.
Abraços,
Silvia
Bela divagação pelo mundo do cinema! A sua cultura cinéfila dava-me jeito amanhã. Vou passar o dia com um francês, que por sinal é pai de um cineasta e de uma actriz, aliás muito conhecida, a Agnés Jaoui e eu em matéria de cinema sou, não abaixo de zero, mas lá próximo. Gosto muito de cinema mas quase só retenho dos filmes, imagens, ideias, sentimentos. Pouco de autores ou interpretes.
Bom, em todo o caso o dia de amanhã, meu último dia de trabalho antes de férias, promete. Este francês é considerado um dos dez crânios mais credenciados ao nível da criatividade aqui na Europa e, por sinal, uma belíssima companhia. A ver vamos.
MCR, desejo-lhe umas excelentes férias debaixo dessa sombrinha e com o marisco e peixe fresco nas proximidades. Não poderei lá ir porque como já disse algures, vou também para terras de Espanha só que “um pouco” mais abaixo, mas beba qualquer coisa a pensar no pessoal aqui do Incursões que eu, pelo meu lado, não me esquecerei de fazer um brinde.
Carteiro, agradeço-lhe o comentário que fez de desejos de boas férias. Farei por não deixar ficar mal esses votos. Já agora: ontem, a caminho de Baião, lá passamos por Soalhães. Como pode calcular não fomos aborrecer os seus pais de maneira que os biscoitos lá ficaram. Quando lá passamos o meu marido contou que, quando era miudo, ajudou a construir a estrada que liga Soalhães a Campelo. A pedido do Padre, a população juntou esforços para acabar uma obra que, pelos vistos, estava enguiçada.
Pois devia ter ido aos biscoitos, meu olhar! Eu nunca figo estas coisas por acaso. Olhe, eu também me lembro da pavimentação da estrada... :-)
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